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A visita de Pelosi a Taiwan e o estertor de um mundo unipolar

A aterragem da presidente da Câmara dos Representante dos EUA em Taipé desencadeou a quarta crise do Estreito de Taiwan (após 1954-58 e 95-97) e aumentou o perigo de um conflito planetário.

Um anúncio que assinala o 95º aniversário da fundação do Exército de Libertação do Povo (PLA) é exibido na fachada de um centro comercial em Pequim.
Um anúncio que assinala o 95º aniversário da fundação do Exército de Libertação do Povo (PLA) é exibido na fachada de um centro comercial em Pequim.CréditosWU HAO / EPA

Quando os EUA punham e dispunham no mundo e eram a única potência nuclear, impediram, durante 22 anos, a República Popular da China de pertencer à Organização das Nações Unidas (ONU). Durante todo esse tempo, no seu lugar, sentava-se o governo de Taiwan.

Essa situação é alterada com o agravar do conflito sino-soviético que leva os EUA a fazer o primeiro grande acordo com a China.

Em 15 de Julho de 1971, o presidente dos EUA, Richard Nixon, fez a seguinte declaração:

«O anúncio que faço agora está a ser transmitido simultaneamente em Pequim e nos Estados Unidos. Como expliquei em diversas ocasiões nos últimos anos, não poderá haver uma paz estável e duradoura sem a participação da República Popular da China. Por esse motivo, tomei várias iniciativas para abrir as portas à melhoria das relações entre os nossos países. Seguindo esse objectivo, enviei o secretário de Estado, Henry Kissinger, a Pequim, durante a sua actual viagem internacional. Em nome da República Popular da China, o primeiro-ministro Chu En Lai convidou o presidente Nixon a visitar a China no início do próximo ano. O presidente Nixon aceitou o convite com satisfação.»

Este desenvolvimento, na altura surpreendente, foi preparado com uma visita secreta, do então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. Este tinha como objectivo estratégico, para reforçar a hegemonia mundial dos EUA, garantir que a China e a União Soviética se manteriam em lados opostos do tabuleiro geopolítico.

É no quadro dessa política que os EUA aceitam que o país mais populoso do mundo possa pertencer à ONU.

Proclamada em 1949, a República Popular da China teve de esperar 22 anos antes de ser reconhecida pelas Nações Unidas. Até 1971, Taiwan representou a China. Sob o título «Restauração dos direitos legítimos da República Popular da China às Nações Unidas», a resolução 2758 colocou a China no seu lugar legítimo:

«Recordando os princípios da Carta das Nações Unidas;

Considerando que a restauração dos direitos legítimos da República Popular da China é indispensável para a preservação da Carta das Nações Unidas e para a causa que as Nações Unidas devem servir em conformidade com a Carta;

Reconhecendo que os representantes do governo são os únicos representantes legítimos da China nas Nações Unidas e que a República Popular da China é um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança;

Decide restaurar à República Popular da China todos os seus direitos e reconhecer os representantes do seu governo como os únicos representantes legítimos da China nas Nações Unidas, e expulsar imediatamente os representantes de Chiang Kai-shek [ex-presidente da China que se refugiou com os seus exércitos em Taiwan, depois da vitória dos comunistas chineses] da sede que ocupam ilegalmente nas Nações Unidas e em todas as suas agências.

Reunião Plenária da ONU, 25 de Outubro de 1971.»

Os chineses passaram a ser o inimigo

O fim da União Soviética e o crescimento acelerado da economia chinesa, levaram as sucessivas administrações dos EUA a começar a temer a ultrapassagem económicada da China em poucas décadas.

A partir da presidência de Donald Trump, tornou-se claro que os EUA usariam o seu peso, enquanto primeira potência militar no mundo, para impor, fora do quadro do direito internacional, normas que prejudicassem a economia chinesa, atacando empresas chinesas que tivessem avanços tecnológicos significativos, em relação às suas congéneres dos EUA: como no caso da Huawei, que se viu impedida de fornecer a infra-estrutura para o 5G aos países ocidentais.

O governo americano foi mais longe proibindo companhias dos EUA, como a Google, Meta e outras, de terem aplicações nos telemóveis dessa companhia e chegando até a mandar prender executivos dessa empresa, como foi o caso da filha do fundador da Huawei, detida no Canadá a pedido dos EUA. Wanzhou Meng, de 46 anos, filha do fundador da Huawei. Foi detida depois de Washington ter pedido a sua extradição por supostamente ter violado as sanções impostas pelas autoridades norte-americanas contra o Irão.

Já em Dezembro 2017, no seu documento estratégico sobre segurança nacional, os EUA colocavam a China como a maior ameaça ao seu domínio e «segurança». O texto apontava a China e a Rússia como rivais que ameaçavam a prosperidade e os valores dos Estados Unidos. «Após ter sido descartada como um fenómeno do século passado, a competição entre grandes poderes voltou», dizia o documento, recuperando a linguagem da Guerra Fria.

Ambos os países alimentam um conflito no mar do Sul da China, onde Washington não aceita o mapa de águas territoriais reivindicadas pela China. Os EUA apostam numa aliança militar com outras potências regionais para cercar a China, a Segurança Quadrilateral (Quad), que junta Japão, Austrália, EUA e a Índia na região Ásia-Pacífico. A Casa Branca deseja que a China diminua seu arsenal, enquanto o gigante asiático responde que se sentará para negociar «se os Estados Unidos estiverem dispostos a reduzir [o seu]».

A China considera que sua ascensão corrige injustiças históricas e devolve o país ao lugar que justamente lhe corresponde. Chegou também à conclusão de que EUA são uma potência que quer impedir a ascensão da China no cenário global para não perder a sua liderança. É uma convicção generalizada: tão presente entre os círculos de poder como nas conversas das pessoas comuns. Os Estados Unidos, por sua vez, acham que Pequim ameaça seus interesses estratégicos.

Com a deterioração da relação, isso também influenciou a percepção mútua das duas sociedades. Um estudo do Pew Research Center de Abril de 2020 apontava que 66% dos norte-americanos têm opinião desfavorável sobre a China – a maior proporção desde que a pesquisa começou, em 2005 –, contra 26% que a vê como positiva. Por sua vez, uma pesquisa da Universidade Renmin de Pequim entre uma centena de académicos chineses mostra que 62% deles acredita que os Estados Unidos querem lançar uma guerra fria contra seu país.

Nesse momento, o novo entendimento é que as relações entre a China e os Estados Unidos «não voltarão a ser as mesmas», disse, citado pelo jornal Global Times, Liu Weidong, um dos investigadores associado à Academia Chinesa de Ciências Sociais, um dos grandes laboratórios estatais de ideias.

Biden agrava a política de ataque à China de Trump

De alguma forma, a mudança para a administração Joe Biden confirmou essa análise. Apesar do agravar da Guerra na Ucrânia, com a invasão de tropas russas, os EUA não parecem interessados em baixar a tensão e os seus choques com a China.

Depois de uma série de declarações irresponsáveis do presidente dos EUA, Joe Biden, e de um aumento da actividade militar dos EUA ao largo da costa da China, a visita de Pelosi é o mais recente teste à política, de longa data, dos EUA, que há décadas sustenta as relações EUA-China. Washington tem aceitado oficialmente que Taiwan não é um país independente mas faz parte da China, apoia a ideia geral da sua reunificação, mas reserva a opção de a defender militarmente se a China usar a força para retomar a ilha.

A China sempre se opôs a qualquer acção dos EUA que pareça afastar o país deste acordo e aproximar-se do reconhecimento aberto da soberania de Taiwan, mas tem sido historicamente demasiado fraca para impor essa solução.

A visita de Pelosi não é a primeira vez que um presidente da Câmara dos Representantes dos EUA visita Taiwan. Em 1997, Newt Gingrich, também aterrou em Taipé poucos dias depois de sua viagem a Pequim e Xangai. O Ministério das Relações Exteriores da China criticou Gingrich após sua visita a Taiwan, mas a resposta foi limitada à retórica. Simplesmente, da última vez, a China não era um país tão poderoso e os EUA não tinham colocado nos seus documentos estratégicos o país asiático como uma ameaça a abater.

Algumas vozes do establishment criticaram Pelosi pela imprudência e irresponsabilidade que teve, desde Tom Friedman no New York Times, conhecido pelos seus contactos privilegiados aos serviços de segurança dos EUA, até ao conselho editorial do Washington Post.

«A principal prioridade global para os Estados Unidos é agora a guerra da Rússia na Ucrânia e as consequências que a acompanham nos mercados globais de alimentos e energia. A administração Biden não pode permitir-se a quaisquer distracções, muito menos uma repetição da Crise do Estreito de Taiwan de 1995-1996, que muitos americanos esqueceram, mas que durou oito meses e dois dias», relembrou, em editorial, o Washington Post.

«Nada de bom resultará disso. Taiwan não será mais seguro ou mais próspero como resultado desta visita puramente simbólica, e muitas coisas más poderão acontecer. Estas incluem uma resposta militar chinesa que poderia resultar na submersão dos EUA em conflitos indirectos com uma Rússia com armas nucleares e uma China com armas nucleares ao mesmo tempo», escreveu Tom Friedman.

A China é, afinal, uma potência nuclear e os estrategas militares norte-americanos têm planos para atacar o país se este invadir Taiwan.

«A China está perfeitamente consciente de que a visita de Pelosi, para além das pequenas divergências expressas pela própria Casa Branca ou pelos militares dos EUA quanto à adequação do momento escolhido, faz parte de uma dinâmica de intensificação dos laços entre Washington e Taipé que abrangem as esferas política, económica, tecnológica, militar, etc..., e que não é provável que se detenha aqui.», faz notar o especialista Xulio Rios, no site CTXT.

Mas Pelosi voltou para Washington, onde não se espera que insista em quaisquer medidas concretas de apoio à ilha na Câmara dos Representantes que preside. E Taiwan fica onde estava, a poucos quilómetros da China continental, que tem vantagens estratégicas em caso de conflito. Especialmente se os EUA pesarem o envolvimento directo numa hipotética guerra que poderia muito bem representar, de forma brutal, a luta definitiva pela transição da actual hegemonia unilateral para uma ordem multipolar.

Para os EUA, o episódio pode constituir uma oportunidade para apresentar à opinião pública uma China que ameaça a estabilidade regional, um perigo para a sobrevivência da ordem liberal, e também para mostrar o seu compromisso com as democracias em oposição às ditaduras, como Pelosi afirmou. No entanto, considerar esta viagem como uma «provocação» é, ao mesmo tempo, perfeitamente compreensível na região e no mundo, o que põe em causa a razão última de um passo que muitos descreveram como «frívolo» numa altura em que os tambores de guerra estão a soar alto na Ucrânia.

Taiwan, por outro lado, com um governo que afirma estar comprometido com o status quo, mas que aplica a táctica do salame (passo a passo, em vez de grandes rupturas) para se afastar gradualmente das consequências que o compromisso de uma só China têm sobre a sua eventural soberania, com o apoio de Washington e Tóquio e de outros países ocidentais. Mas pode acabar por pagar directamente, como a Ucrânia, pela participação activa no acender da Guerra Fria que alguns nos EUA anseiam.

É verdade que Taipé tem hoje mais apoio estrangeiro do que nunca, apesar do declínio do reconhecimento diplomático, de apenas 14 países na ONU, mas não deve ser esquecido que é apenas mais um peão na estratégia global dos EUA para conter a China. E apostar que os EUA se envolverão directamente numa hipotética guerra contra a China é simplesmente imprudente e ignora as lições da sua própria história recente: Washington rompeu com Chiang Kai-shek, ainda em vida de Mao, para chegar a um acordo. Os EUA não pactuaram com a China do «reformista» Deng Xiaoping, mas com a da Revolução Cultural. Os princípios são princípios, mas são os interesses que têm precedência.

É de esperar que a China mantenha a sua «paciência estratégica» e siga o sábio conselho de Sun Tzu. As suas prioridades são a estabilidade e o desenvolvimento. Uma guerra sobre Taiwan seria demasiado arriscada e poderia levar a uma catástrofe que afectaria o seu processo de emergência. A melhor garantia para o futuro é afirmar a sua soberania económica a nível global e construir a partir dela a ordem alternativa que prevê com a sua rede de parceiros, que está gradualmente a moldar.

Nuvens negras no céu

A economia chinesa, por outro lado, está a atravessar um momento delicado devido ao compromisso de manter a covid-19 severamente à distância e com um crescimento de 2,5% no primeiro semestre do ano; a meta de 5,5% para este ano parece particularmente difícil.

A China não pode dar-se ao luxo de não reafirmar as suas linhas vermelhas, e Taiwan é uma das mais importantes de entre elas.

A questão chave para a China é evitar mais perdas de influência na opinião pública taiwanesa e deve ter cuidado na sua reacção para evitar que a crise leve a um maior apoio eleitoral ao secessionismo nas eleições do próximo Novembro.

A China considera Taiwan não só como indispensável para o seu processo de modernização, mas também como o lugar com o qual poderia pôr fim à hegemonia dos EUA na região e no mundo, a fim de recuperar o que considera «normalidade histórica», interrompida há 200 anos pelo comércio do ópio e das canhoneiras ocidentais e pela a imposição aos chineses de um protectorado humilhante.

Mas o grande perigo é que esta crise acelera o risco de um conflito mundial nesta década, no momento já particularmente perigoso com a guerra da Ucrânia

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