São frequentes os episódios em que as circunstâncias se alinham para ilustrar o lamaçal em que funciona, nos dias de hoje, a política que nos é servida como padrão da democracia. Porém, talvez nenhum seja tão completo e revelador do que o suscitado pelo recente telefonema do presidente dos Estados Unidos ao presidente da Ucrânia pedindo-lhe para investigar as actividades ucranianas do anterior vice-presidente dos Estados Unidos.
Existem, é certo, casos em que o absurdo, a cumplicidade e o golpismo se juntam em nome da democracia. Basta-nos olhar para a Venezuela, para o modo como a Líbia sangra, a agressão continua e multifacetada contra a Síria; poderíamos deter-nos até um pouco na maneira inominável como as «observadoras» e os «observadores» da União Europeia «legitimaram» as eleições nas Honduras em que o fascista narcopresidente Juan Orlando Hernandez saltou milagrosamente de uma posição secundária para primeiro lugar na contagem de votos, a seguir a um apagão geral, e acabou por ser «reeleito» – sob a bênção dos Estados Unidos, como estabelecem as normas democráticas regionais.
O crime perfeito
O caso da Ucrânia, no entanto, é perfeito. Conjuga um pouco de tudo o que é corrupção dos valores, princípios e normas políticas elementares – e da ética humanista, naturalmente.
Em resumo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, telefonou ao presidente de turno do regime da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, instruindo-o para mandar investigar as actividades desenvolvidas na Ucrânia pelo ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Joseph (Joe) Biden, a seguir ao golpe de Estado que ajudou a montar em 2013/2014, a célebre «revolução colorida» da Praça Maidan em Kiev.
Biden é, até ao momento, o candidato mais bem colocado do Partido Democrático, o principal rival de Trump na corrida eleitoral aprazada para o Outono do próximo ano. Houve tempos em que as acções desenvolvidas em proveito de um candidato e em prejuízo de outro terminaram com a demissão de um presidente, como aconteceu a Richard Nixon na sequência do caso de espionagem montado no edifício Watergate.
«Donald Trump está agora a tentar deitar mão a estes dados de forma institucional para jogar com eles em campanha. Isto é, recorre aos sujos métodos imperiais para ter acesso oficial às consequências dos sujos métodos imperiais da anterior administração.»
É verdade que Trump parece estar a ser alvo de um processo de impeachment, não essencialmente por este caso mas por razões de baixa política tanto dos democráticos como dos republicanos, isto é, do regime. Trump sabia ao que ia ao telefonar a Zelensky, a marioneta instalada recentemente por Washington e Bruxelas à cabeça do regime ucraniano.
As práticas corruptas de Biden na Ucrânia, à sombra do sistema criado pelo golpe «democratizador», por sinal assente na emergência de forças nazis saudosas dos tempos de Hitler, não são segredo; o próprio ex-vice-presidente norte-americano nem fez muitos esforços para escondê-las.
Ufana-se de ter contribuído para a expulsão do último presidente ucraniano eleito democraticamente – os actos eleitorais depois do golpe não abrangeram todo o país nas mesmas condições, devido à guerra imposta pelo regime às regiões do Donbass – e depois instalou o filho, Hunter Biden, como seu testa-de-ferro na maior empresa exportadora de gás natural da Ucrânia.
Quando um procurador-geral ucraniano pretendeu investigar estes comportamentos, Biden instou o presidente então em funções, Petro Porochenko, a demiti-lo; caso contrário cancelaria a cedência de material militar avaliado em mil milhões de dólares ao regime de Kiev.
Donald Trump está agora a tentar deitar mão a estes dados de forma institucional para jogar com eles em campanha. Isto é, recorre aos sujos métodos imperiais para ter acesso oficial às consequências dos sujos métodos imperiais da anterior administração. Como exibição do lamaçal político nem faltou sequer um comparável exercício de chantagem sobre o presidente ucraniano ao ameaçar cortar um auxílio militar de 250 milhões de dólares a Kiev caso as suas ordens a Zelensky não tenham seguimento.
Espelho perfeito
A Ucrânia de hoje espelha o modo como se comporta o regime de Washington, interna e externamente, quase sempre arrastando os seus aliados nessas práticas. Também por isso este caso é tão exemplar.
O golpe de 2014, organizado pelos Estados Unidos, a NATO e a União Europeia para instaurar «a democracia» na Ucrânia, integra uma estratégia mais alargada contra a «ameaça russa». Em Kiev, para estancar as «más intenções» de Moscovo, catapultaram-se para o poder organizações nazis, influentes sobretudo nas forças armadas e militarizadas e na guerra conduzida contra as populações russófonas no leste do país.
Apesar disso, o golpe não deixou de ser uma «revolução democrática», como ainda hoje garantirá, por exemplo, a dirigente socialista e ex-eurodeputada Ana Gomes, que esteve presente na Praça Maidan durante os acontecimentos.
Quem aí esteve igualmente foram os mandantes do golpe como Victoria Nuland, assistente do Departamento de Estado norte-americano, o falecido senador republicano e fascista John McCain e o embaixador em Kiev, Geoffrey R. Piatt. Diplomata que iremos encontrar mais tarde na embaixada norte-americana em Atenas organizando um cisma na Igreja Cristã Ortodoxa – para isolar a componente russa – e montando várias falsificações políticas, como eleições em países dos Balcãs, designadamente na Bósnia-Herzegovina, e o processo de criação da Macedónia do Norte, que envolveu desde burlas em referendo à compra ostensiva de deputados em Skopje.
Para se ter a noção da envergadura do arco de corrupção registe-se que o caso da Macedónia foi despoletado pelo embaixador norte-americano Piatt em cooperação com o governo da Grécia, então chefiado por Alexis Tsipras.
Quem esteve também em Maidan, embora mais na sombra, foi Joe Biden, colocando a chancela da administração Obama no golpe e, juntando o melhor de dois mundos, antecipando os negócios familiares na promissora actividade do gás natural.
Pântano nauseabundo
A história da Ucrânia «democrática» tem apenas cinco anos mas está repleta de circunstâncias que alimentam o lodo em que se move a chamada «política ocidental», sempre inspirada no exemplo norte-americano: a ascensão de forças nazis, a perseguição de forças democráticas, designadamente o Partido Comunista, atentados terroristas como o da Casa dos Sindicatos em Odessa em 2 de Maio de 2014, a guerra imposta ao Donbass e que flagela sobretudo populações civis, as criminosas provocações do abate do avião da Malaysian Airlines que fazia o voo MH17 e do incidente naval no Estreito de Kerch, a desastrosa e corrupta administração do milionário e fascista presidente Porochenko, a degradação económica do país a níveis que não têm comparação na Europa, a corrupção generalizada.
«Quem esteve também em Maidan, embora mais na sombra, foi Joe Biden, colocando a chancela da administração Obama no golpe e, juntando o melhor de dois mundos, antecipando os negócios familiares na promissora actividade do gás natural.»
Uma situação que se enquadra na perfeição com as atitudes de Donald Trump contra o seu rival Biden e as actividades deste na Ucrânia, país tratado por ambos como uma colónia. Uma situação que ilustra também o arrastamento da União Europeia e da NATO nas sagas «democratizadoras» de Washington, na Ucrânia como na Líbia, no Afeganistão como no Iraque, na Venezuela como no Iémen. A política «ocidental», autoproclamada farol da democracia e dos direitos humanos, transformada num pântano nauseabundo.
É assim o padrão político e democrático recomendado – imposto será a palavra mais justa – a todo o mundo, se necessário com canhões e recorrendo a tipos sortidos de terrorismo, que tanto podem ser de fachada islâmica como retintamente nazis.
Os que não se submetem já sabem com o que devem contar: a justiça de Washington e do seu braço armado, a NATO, não perdoa. Uma justiça legitimada por comportamentos como o de Trump ou Biden, das cliques republicana e democrática norte-americanas, dos eurocratas de Bruxelas. Exemplar.