«Só uma transformação radical das nossas economias e sociedades pode salvar-nos de uma catástrofe climática acelerada». É o agora ou nunca. As conclusões são do organismo da Organização das Nações Unidas (ONU) para as alterações climáticas, explanadas num relatório publicado esta quarta-feira.
Infelizmente, as afirmações da ONU, e de milhares de cientistas, surgem em contraciclo no que toca às posições assumidas recentemente pela maioria dos governos dos países mais ricos, controlados por forças políticas e económicas com interesse em manter as nossas «economias e sociedades», desiguais e poluidoras, tal como estão, protegendo os privilégios dos grandes capitalistas.
Há uma razão para tanta inacção, para além da patológica necessidade de acumular mais e mais riqueza: serão sempre os mais pobres, aqueles que menos contribuíram para a actual situação climática, a sofrer na pele as consequências da voragem das nossas «economias e sociedades».
A situação actual, pelo menos em comparação com as previsões de há cinco anos, são agridoces. A possibilidade de um aumento da temperatura que precipitasse a extinção da espécie humana parece estar definitivamente descartada: as piores previsões, neste momento, apontam para um aumento da temperatura na ordem dos 3ºC.
Temperaturas continuaram a subir e serão os povos a pagar a factura dos grandes lucros das petrolíferas
Em boa verdade, essa é a única boa notícia. O aumento de temperatura que se verifica actualmente, na ordem dos 1,2ºC, é suficiente para causar eventos climáticos dramáticos, causando a morte de milhares de pessoas e a fuga de milhões, para escapar a cheias ou ondas de calor violentas. A nova realidade climática implicará um «sofrimento sem fim» para a grande maioria da população mundial, lamenta a ONU.
As inundações das monções no Paquistão são paradigmáticas da situação dramática com que se confrontam várias populações em todo o mundo: um terço do país esteve debaixo de água durante semanas, forçando dezenas de milhões de pessoas a deslocar-se e destruindo os rendimentos do algodão e do arroz do país.
Também aqui é importante reforçar esta ideia: a desigualdade, perante as alterações climáticas, não é exclusivamente económica. O Paquistão produziu, desde o início da produção industrial no país, o equivalente às emissões de carbono dos EUA em 2022.
«Quanto mais aprendemos sobre os níveis de aquecimento ainda relativamente moderados, mais duros e mais difíceis de navegar parecem ser» as consequências climáticas do cenário mais provável, refere David Wallace-Wells, jornalista, num artigo publicado recentemente no New York Times.
O Climate Action Tracker (Monitor da Acção Climática), uma organização independente que monitoriza os compromissos dos governos, no âmbito do Acordo de Paris (onde se assumiu a meta dos 1,5ºC em 2100), refere que a chance de alcançar esse valor é de uns meros 5%.
«Com base apenas nos objectivos de 2030, o final do século terá um aumento da temperatude de 2,4°C, com mais de 95% de probabilidade de exceder 1,5°C. Se incluirmos objectivos vinculativos a longo prazo, estimamos que o aquecimento no final do século será de 2,1°C, provavelmente abaixo de 2,3°C e com mais de 90% de probabilidade de exceder 1,5°C».
Analisando exclusivamente a acção dos governos, nas condições actuais, o aumento da temperatura chegará aos 2,7ºC, praticamente o dobro do convencionado em Paris.
Tecnologia verde cada vez mais sofisticada, acessível e disseminada
O pessimismo de Wallace-Wells em relação aos esforços dos países, principalmente daqueles que, historicamente, foram responsáveis pela grande parte das emissões de carbono, contrasta com a esperança com que vê o grande salto que foi dado no que toca às energias verdes (solar, eólica, etc.).
«Desde 2010, o custo da energia solar e das baterias de lítio diminuiu em mais de 85%. O custo da energia eólica baixou 55%. A Agência Internacional de Energia previu recentemente que a energia solar se tornaria "a fonte de electricidade mais barata da história". Um relatório da Carbon Tracker estima que 90% da população mundial viva em locais onde a energia renovável tem o potencial de ser mais barata do que a energias poluidoras».
«A China, que já está a instalar quase tanta capacidade de produção de energia renovável como o resto do mundo junto, está também a fabricar 85% dos painéis solares mundiais (e a vender cerca de metade de todos os veículos eléctricos comprados no mundo)».
O clima do futuro parece muito pior do que aos fenómenos climáticos extremos a que assistimos actualmente, mas mais esparançoso do que muitos esperavam não há muito tempo, conclui Wallace-Wells. «O mundo está a mover-se mais rapidamente para descarbonizar do que outrora parecia ser responsável e, no entanto, não o faz suficiente rápido para evitar a verdadeira turbulência».
Dezenas de milhares de pessoas exigiram a mudança na COP26. Os lucros falaram mais alto
O relatório da ONU divulgado na quarta-feira expressa a debilidade dos actuais compromissos. Na prática, o planeta, no seu conjunto, vai aumentar as emissões em 10,6% até 2030, em comparação com os níveis de 2010. Isto apenas representa uma melhoria em relação à avaliação do ano passado, que constatava que os países estavam numa trajectória de 13,7%.
Na Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas em Glasgow (COP26), realizada em 2021, todos os países concordaram em rever e reforçar os seus planos climáticos, afirmou Simon Stiell, da ONU. Facto é que, passado um ano, apenas 24 planos climáticos novos ou actualizados foram apresentados, algo que as Nações Unidas consideram «decepcionante».
«As decisões e acções governamentais devem reflectir o nível de urgência, a gravidade das ameaças que enfrentamos e a escassez do tempo que nos resta para evitar as consequências devastadoras de uma mudança climática desenfreada», alerta.
Governos conservadores e da extrema-direita europeia preparam a defesa dos interesses económicos das grandes empresas poluidoras
Dois dias após a divulgação do relatório da ONU, o novo primeiro-ministro britânico, o multimilionário e conservador Rishi Sunak, anunciou que não estaria presente na COP27, a conferência da ONU para as alterações climáticas, quebrando a promessa da sua antecessora.
Não é caso único. A 18 de Outubro foi anunciado que, pela primeira vez desde 1987, a Suécia não teria um Ministério do Ambiente no novo Governo conservador, suportado pela extrema-direita. O sector foi integrado pelo Ministério da Energia e Indústria. No acordo entre as forças conservadoras, neo-liberais e de extrema-direita, as questões climáticas são mencionadas uma única vez, para salientar problemas energéticos.
Em Itália, o recém-formado Governo de extrema-direita, liderado por Giorgia Meloni, acabou com o Ministério para a Transição Energética, criando o renovado Ministério do Ambiente e da Segurança Energética, liderado por Gilberto Pichetto Fratin, antigo secretário de estado da Indústria no Governo de Draghi e sem nenhum currículo na área ambiental.