|Itália

Eleições. A extrema-direita fascista chega ao poder

Pela primeira-vez, desde a queda de Mussolini, a Itália vai ter como primeira-ministra uma dirigente neofascista.

A líder neofascista agradece aos seus apoiantes. 
CréditosETTORE FERRARI / EPA

Com um sistema eleitoral torcido, feito para impedir a sobrevivência dos partidos populistas e para liquidar os pequenos partidos mais à esquerda, e com uma subida, em poucos anos, dos neofascistas de 4% para 26,1%, a direita voltou ao poder em Itália, depois de várias décadas de governos de orientação austeritária e cumprindo as imposições da União Europeia e do euro.

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Como Draghi e os últimos 30 anos abriram caminho à extrema-direita

A queda do «Super Mario» provocou pânico em Bruxelas e a indignação dos meios de comunicação social. A vitória da extrema-direita é quase uma certeza.

A política neoliberal de Draghi foi a auto-estrada para a extrema direita. 
CréditosDR / EFE

Os meios de comunicação social italianos deram uma cobertura maciça a várias «manifestações pró-Mario Draghi» – não contando mais do que algumas dezenas de pessoas. Talvez a mais cómica, é de uma das maiores agências noticiosas do país, Adnkronos, que falou com algumas pessoas sem-abrigo que se tinham manifestado para mostrar o seu apoio a Draghi. Um deles foi citado dizendo: «Draghi está a fazer a diferença. A Itália recuperou o prestígio e a credibilidade graças a ele. Como sem-abrigo, posso testemunhar o facto de haver agora uma maior atenção para connosco e isso é graças a Draghi».

A extrema-direita está prestes a varrer as sondagens e o centro-esquerda decidiu copiar o seu tom, linguagem e enquadramento; já a esquerda está há muito desaparecida da disputa eleitoral. Enrico Letta, líder do Partido Democrático, abriu a campanha eleitoral com um tweet com uma imagem de Mario Draghi levantando a mão e esta mensagem em letras maiúsculas: «A Itália foi traída. O Partido Democrata defende-o. E você, está connosco?». Esta mensagem realça esta realidade: os social-democratas italianos preencheram o seu vazio ideológico com um cartaz do seu ídolo do momento: o «Super Mario», o antigo presidente do Banco Central Europeu.

Quais são as propostas do partido de centro-esquerda? Não encontraram nada melhor para se promoverem do que tirar partido da suposta atracção de um primeiro-ministro tecnocrático que se define como «um banqueiro» e que, em teoria, tinha um mandato temporário ligado, sobretudo, à gestão de fundos europeus. Apelar ao sentimento de traição nacional e liderar o clube de fãs de Draghi não deve propriamente motivar os trabalhadores a não serem seduzidos pelos cantos de sereia da extrema-direita.

A realidade da gestão do governo do «Super Mario» não correspondeu exactamente às expectativas: Draghi deixa para trás um país em farrapos. As últimas previsões macroeconómicas da Comissão Europeia previam que a Itália iria experimentar o crescimento económico dos mais lentos da União Europeia (UE) no próximo ano, com apenas 0,9%, devido a um declínio nos gastos dos consumidores, motivados pelo aumento dos preços e à quebra nos investimentos empresariais – um resultado do aumento do endividamento do país e da subida abrupta dos custos de energia, bem como de perturbações no fornecimento de gás russo.

Esta crise tem tido o seu preço na sociedade italiana: 5,6 milhões de italianos – quase 10% da população, incluindo 1,4 milhões de menores – vivem actualmente em pobreza absoluta, o nível mais alto de que há registo. Muitos destes estão a trabalhar, e esse número está destinado a aumentar à medida que os salários reais em Itália continuam a diminuir. Entretanto, quase 100 000 pequenas e médias empresas (PME) estão em risco de insolvência – um aumento de 2% em comparação com o ano passado.

Como afirmou o jornalista Thomas Fazi, «Draghi pouco ou nada fez para proteger os assalariados, as famílias e as pequenas empresas do impacto destas políticas. De facto, as poucas medidas "estruturais" decretadas pelo seu governo visaram todas promover a privatização, liberalização, desregulamentação do mercado de trabalho – tais como abrir à privatização os poucos serviços públicos que permaneceram fora do âmbito do mercado, flexibilizar ainda mais a mão-de-obra, colocar pela primeira vez em décadas praias privadas a concurso público, ou tentar expandir os serviços de táxi de modo a incluir operadores de partilha de táxis como Uber, suscitando protestos maciços.»

Claro que se poderia argumentar que outros países estão a passar por problemas semelhantes, mas seria um erro absolver Draghi. Ele tem sido um dos mais firmes apoiantes das medidas que conduziram a esta situação, tendo sido uma força motriz na pressão para sanções duras da União Europeia (UE) contra Moscovo – sanções que estão a paralisar as economias da Europa, ao mesmo tempo que deixam a Rússia em grande parte incólume.

Draghi vangloriou-se mesmo das medidas ousadas adoptadas pela Itália para retirar o país da dependência do gás russo – o resultado é que a Itália é agora o país que paga os preços mais elevados da electricidade por grosso em toda a UE. O absurdo destas políticas torna-se evidente quando consideramos a sua tentativa de reduzir a dependência da Itália do gás russo através do relançamento de várias centrais eléctricas alimentadas a carvão, altamente poluentes, e tcharammmm (orquestra a sublinhar o fim de um número de magia): O carvão que a Itália importa vem em grande parte da Rússia.

Porque é que vai ganhar a extrema-direita?

Por tudo isso, as sondagens são claras: a direita deve esmagar nas eleições italianas convocadas para 25 de Setembro, e o partido herdeiro dos neofascistas, Irmãos de Itália, aparece como primeiro nas preferências dos italianos. O discurso dominante, na comunicação social e comentadores, é que foi a queda do governo de Mario Draghi que abriu o caminho à extrema-direita.

É óbvio que se esse governo, que nunca foi sujeito ao voto popular, não tivesse perdido o apoio dos partidos que o suportavam, devido à crescente crise social agudizada pelas consequências económicas da guerra na Ucrânia, não haveria para já a necessidade de convocar eleições. Mas e se a verdade profunda da crise e do crescimento da extrema-direita não fosse a queda do governo, mas a sua existência e a continuidades das suas políticas nos últimos 30 anos?

De alguma forma pode-se dizer que a crise política é apenas sintoma de um conflito mais fundo que por ela é escondido. Foram os governos liberais e tecnocráticos, com a prévia liquidação das forças políticas de esquerda, devido a anos de traição acumulada dos seus líderes, direitização e falta de vontade de construir uma alternativa política ao capitalismo, que abriram a porta de par em par à extrema-direita.

O sintoma da crise da política é uma crise da representação, com cada vez mais eleitores, sobretudo dos sectores populares, a não participarem nas eleições, mas é sobretudo uma crise da liquidação da política, que é o confronto entre formas de ver o mundo e de exercer o poder. O governo tecnocrático dos «competentes», como o de Draghi, é a forma última desse esvaziamento total da democracia, impedindo o povo de poder escolher políticas diferentes.

Quando a tecnocracia esconde a política de sentido único

Num artigo recente, o sociólogo italiano Marcello Musto, autor de um interessante livro sobre Os Últimos Anos de Marx, assinalou o interesse que o co-autor do Manifesto Comunista dedicou à crítica dos chamados «governos técnicos». Num artigo jornalístico que escreveu para o York Tribune, um dos diários com maior difusão no seu tempo, com o título «Um governo decrépito. Perspectivas para o gabinete da coligação», Marx analisou os acontecimentos políticos e institucionais que levaram ao nascimento de um dos primeiros governos tecnocráticos da história moderna: o executivo de Aberdeen, que governou o Reino Unido desde Dezembro de 1852 até Janeiro de 1855.

A entrada deste executivo em funções foi feita sob o som do entusiasmo da comunicação social e opinião publicada. O Times celebrou a formação desse governo como o ingresso da Inglaterra numa «época em que o espírito de partido está destinado a desaparecer e que somente o génio, a experiência, a capacidade de trabalho e o patriotismo darão acesso aos cargos públicos», o jornal pediu para o gabinete de Aberdeen o apoio dos «homens de todas as tendências», porque «os seus princípios exigem o consenso e apoios universais.». Como notou Marcello Musto, nada de muito diferente da música celestial que acolheu a tomada de posse do governo do antigo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, em Fevereiro de 2021.

Os encómios ao homem que dirigiu o BCE, entre 2011 e 2019, juntaram liberais, conservadores e a esquerda moderada num coro unido contra os «irresponsáveis políticos e a favor do «salvador» Draghi.

Num artigo de 1853, Marx ironizou com a pretensão dos editorialistas do Times de qualificar de «técnicos» os representantes do poder dominante que tinham visivelmente uma agenda totalmente política. Aquilo que o principal jornal britânico via como um sinal de modernidade e de superação de conflitos políticos, para Marx não passava de uma farsa, para vender o mesmo do costume com um novo embrulho. Onde o Times via «um governo composto inteiramente por novos personagens, jovens e prometedores», Marx via algo completamente distinto: «o mundo ficará estupefacto ao inteirar-se que esta nova era da história está a ponto de ser inaugurada nada menos que por gastos e decrépitos octogenários, burocratas que participaram em quase todos os governos existentes e por haver desde o fim do século passado, assíduos nos gabinetes ministeriais e duplamente mortos, pela idade e pela usura, e só mantidos, com artifícios, em vida.»

Para Marx era claro que esta tentativa de fazer desaparecer as lutas políticas era um expediente para garantir a execução, para sempre, de uma política determinada.

«Quando nos prometem a desaparição de todas as lutas entre os partidos, incluindo a desaparição desses mesmos partidos, o que quer dizer o Times?», interrogava o autor do Capital.

A questão, como bem sublinha Marcello Musto, continua totalmente actual. A pseudo desaparição das lutas políticas e da existência de diferentes escolhas para edificar a sociedade, em troca de governos de pessoas competentes, com a teoria – como defendeu o antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva – que com as mesma informação todas as pessoas chegariam às mesmas conclusões, esconde os diferentes interesses dos grupos sociais e o total domínio das receitas neoliberais sobre a governação e os rumos políticos. Não só esta domina a política, estabelece a agenda e dá forma às suas decisões, como conseguiu retirar do controle democrático todas as questões da política económica: garantindo que independentemente das mudanças de governos e dos resultados eleitorais que as políticas sejam as mesmas, em relação à manutenção da ditadura dos mercados.

«Nos últimos trinta anos, o poder de decisão passou da esfera política para a esfera económica. Certas opções políticas foram transformadas em imperativos económicos que disfarçam um projecto altamente reaccionário por detrás de uma máscara ideológica apolítica. A transferência de parte da esfera política para a economia, como uma esfera separada impermeável às exigências sociais, e a transferência de poder dos parlamentos – já suficientemente esvaziada de valor representativo pelos sistemas eleitorais maioritários e pela revisão autoritária da relação entre o poder executivo e legislativo – para os mercados e as suas oligarquias constituem sérios obstáculos à democracia no nosso tempo. As classificações ou sinais da Standard & Poor's de Wall Street – esses enormes fetiches da sociedade contemporânea – valem muito mais do que a vontade do povo. Na melhor das hipóteses, o poder político pode intervir na economia (por vezes as classes dirigentes precisam dele para mitigar as destruições geradas pela anarquia do capitalismo e a violência das suas crises [como quando salvam os bancos com o dinheiro dos contribuintes]), mas sem que seja possível discutir as regras dessa intervenção, quanto mais as escolhas substantivas.», considera o sociólogo italiano.

Para além do governo Draghi, que esteve no comando nos últimos 17 meses, numa coligação que envolvia o Partido Democrático, de centro esquerda, a Força Itália de Silvio Berlusconi, os populistas do Movimento Cinco Estrelas e a Liga de extrema-direita, a Itália tem sido repetidamente governada por supostos governos apolíticos e dos «melhores», que no meio da instabilidade política têm como único objectivo: garantir que tudo continue ok para o capital financeiro e para que os «os mercados funcionem correctamente».

Mais de 30 anos de «não há outra alternativa»

Desde o fim da Primeira República italiana houve numerosos governos tecnocráticos ou sem representantes de partidos políticos. Estes incluem o governo de Azeglio Ciampi, antigo governador do Banco de Itália durante quinze anos, entre 1993 e 1994 (e subsequentemente eleito Presidente da República de 1999 a 2006); o governo de Lamberto Dini, antigo director geral do Banco de Itália após uma longa carreira no Fundo Monetário Internacional, em 1995-1996; e o governo de Mario Monti, antigo Comissário Europeu para a Concorrência com experiência anterior relevante na Comissão Trilateral do Grupo Rockefeller, no comité director do Grupo Bilderberg e como consultor internacional do banco Goldman Sachs, de 2011 a 2013.

O grupo Goldman Sachs esse viveiro de governantes e ex-governantes que – acolheu o português Durão Barroso no seu seio – deu recentemente dois primeiro-ministros à Itália, Monti e Draghi, e que está profundamente envolvido na especulação desenfreada que deu origem à crise económica mundial de 2008.

Como faz notar Marcello Musto, «nos últimos anos, tem vindo a argumentar-se que novas eleições não deveriam ser convocadas após uma crise política; a política deveria ceder todo o controlo à economia. Noutro artigo de 1853, com o título de «Operações do Governo», Marx declarou que «a coligação ("técnica") governo representa a impotência do poder político num momento de transição». De facto, os governos já não discutem qual a orientação económica a seguir. Agora as orientações económicas dão origem aos governos.»

Na Europa, o mantra neoliberal tem repetido inúmeras vezes que, para restaurar a «confiança» dos mercados, é necessário avançar rapidamente no caminho das «reformas estruturais», uma expressão agora usada como sinónimo de devastação social, ou seja: baixar os salários, rever os direitos laborais na contratação e despedimento, aumentar a idade da reforma e privatizações em grande escala. Os novos governos tecnocráticos, chefiados por indivíduos com antecedentes em algumas das instituições económicas mais responsáveis pela crise económica, seguiram este caminho, afirmando fazê-lo «para o bem do país» e »para o bem-estar das gerações futuras». Além disso, o poder económico e os principais meios de comunicação tentaram silenciar quaisquer vozes dissonantes neste refrão que dura há décadas.

Dez anos após Mario Monti e o seu governo de tecnocratas, outro ex-executivo do Goldman Sachs fixou residência no Palácio Chigi. Tal como o seu antecessor, e tal como Emmanuel Macron durante a campanha presidencial francesa de 2017, Mario Draghi afirma transcender a divisão entre direita e esquerda elevando-se acima das partes e trazendo a visão esclarecida do perito, mantendo-se escrupulosamente dentro dos limites estabelecidos por Bruxelas: ortodoxia fiscal e neoliberalismo. O antigo presidente do Banco Central Europeu (BCE) conseguiu reunir todos os partidos italianos, da esquerda para a extrema direita, incluindo aqueles que prosperaram ao opor-se a este programa. De facto, recebeu o apoio conjunto do Movimento Cinco Estrelas e da Liga, dois partidos que três anos antes ganharam as eleições parlamentares com a promessa de quebrar com austeridade e de se oporem às imposições da União Europeia.

O facto de ministros de extrema-direita terem assento no governo de Draghi não tem movido muitas pessoas, nem nas chancelarias europeias nem nos meios de comunicação social, onde esta coligação nacional foi apresentada como um modelo de bom senso. Também ninguém se ofendeu com esta peculiar democracia italiana onde os eleitores podem votar por maioria em Março de 2018 contra as políticas de austeridade impostas por Bruxelas e depois, sem sequer serem consultados novamente, encontram-se em Fevereiro de 2021 com um governo que defende estas mesmas políticas.

Para memória futura fica aqui a história dessa peculiar inversão, analisada por Stefano Palombarini, nas páginas do Le Monde Diplomatique, embora repetida já em vários países.

«A carta do BCE era pior que a dos terroristas»

Agosto de 2011, Draghi está a poucos meses de ser presidente do BCE, o seu antecessor, Jean-Claude Trichet, envia uma carta secreta a Silvio Berlusconi, chefe do governo italiano, a carta é também assinada pelo seu sucessor Mario Draghi. Nela se impõem uma série de medidas em troca do BCE apoiar a economia italiana: cortes na despesa pública e nas pensões, liberalização no sector dos serviços, revisão das regras em matéria de despedimentos, redução dos salários dos funcionários públicos. O primeiro-ministro italiano não tem meios para se opor a eles, porque sem a ajuda do BCE, as taxas da dívida aumentariam e a situação tornar-se-ia rapidamente insustentável. Mas a maioria de direita está demasiado dividida para se comprometer com um tal programa.

«Roma ficou furiosa. Giulio Tremonti [antigo ministro das Finanças] disse mais tarde a alguns ministros das Finanças da Europa que, em Agosto, o seu governo recebeu duas cartas ameaçadoras: uma de um grupo terrorista e outra do BCE. "A do BCE foi a pior", disse», segundo uma investigação do Wall Street Journal.

A 19 de Outubro, Sarkozy viajou para Frankfurt para dizer ao antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, que só uma acção forte por parte do banco central no mercado da dívida podia salvar a Zona Euro. «A tarefa do BCE não é financiar governos», respondeu Trichet.

É na sequência deste encontro, entre Trichet e Sarkozy, no qual também participou Angela Merkel, que surge o «tal» telefonema confidencial da chanceler para Roma. Segundo o Wall Street Journal, naquela noite fria de Outubro, Merkel ligou para o presidente italiano, Giorgio Napolitano, e «pediu-lhe gentilmente para mudar o seu primeiro-ministro».

Após a Cimeira Europeia de 26 de Outubro e o encontro do G20, a 3 de Novembro, em Cannes, Berlusconi perdeu o apoio da coligação governamental que liderava e na votação do Orçamento, a 8 de Novembro, foi incapaz de reunir uma maioria absoluta – o que confirmou votos dissidentes vindos do seio do arco político que sustenta o seu Executivo.

Depois da votação no parlamento, Giorgio Napolitano chamou Silvio Berlusconi e foi o próprio presidente italiano que anunciou que o primeiro-ministro se iria demitir. Dias mais tarde é anunciado o nome de Mario Monti, um «perito» sem rótulo político, para liderar o governo italiano.

Isto marcou o início de um período que duraria sete anos e veria quatro presidentes do conselho de ministros sucessivos: depois de Monti vieram Enrico Letta, Matteo Renzi e Paolo Gentiloni. A acção destes governos, inteiramente dedicados às reformas institucionais neoliberais, baseia-se no acordo entre o Partido Democrático (centro-esquerda) e a ala direita de Berlusconi. O apoio veio das classes ricas e de uma fracção significativa das classes médias, numa singular superação das filiações baseada na divisão entre a direita e a esquerda: foi o «bloco burguês», uma coligação social semelhante à que seria agregada alguns anos mais tarde por Macron em França.

Março de 2018, as partes que tinham seguido o roteiro do BCE foram severamente sancionadas nas urnas. O bloco burguês desmorona devido à sua incapacidade de se expandir para uma fracção significativa das classes trabalhadoras, mesmo quando as classes médias se afastam dele. Força Italia, o partido de Berlusconi, e o Partido Democrático, que há dez anos tinham 70% dos votos, têm agora apenas 32%. Ao mesmo tempo, aqueles que tinham estado na oposição alcançaram um resultado notável. A Liga de Matteo Salvini emergiu como a principal força da direita e da extrema-direita, enquanto que o Movimento Cinco Estrelas torna-se o maior partido do país, aproximando-se de um terço dos votos expressos.

Fevereiro de 2021, embora o equilíbrio no parlamento não se tenha alterado desde as eleições de Março de 2018, um terceiro governo deve ser nomeado. Os dois anteriores (a aliança entre a Liga e o Movimento Cinco Estrelas, depois a aliança entre o Movimento Cinco Estrelas e o Partido Democrático) esfriaram, tendo cada um deles durado pouco mais de um ano. Foi então que Draghi, antigo presidente do BCE que tinha escrito o breviário dos governos do bloco burguês, foi convidado a formar um governo. Surpreendentemente, o antigo banqueiro foi acolhido como um homem providencial, não só pelos partidos que, ao implementarem o seu programa, tinham caído nas urnas, mas também por aqueles que, ao se oporem a ele, se tinham imposto na cena política.

As próximas eleições porão em marcha um novo ciclo, possivelmente saudado por um governo de centro-direita liderado por Giorgia Meloni. Mas à medida que a situação social e económica continua a piorar, estes ciclos são também cada vez mais curtos. Um futuro governo de centro-direita – «populista» ou não – teria pouca ou nenhuma capacidade para resolver as crises deixadas por Draghi. Como sempre, os tiros serão chamados em Bruxelas e Frankfurt.

Com o lançamento do seu recente Instrumento de Protecção da Transmissão (TPI), o BCE dotou-se de um instrumento que tecnicamente lhe permite fazer «o que for preciso» para controlar os spreads do euro, evitando assim potencialmente futuras crises financeiras. Tal intervenção, contudo, está condicionada ao cumprimento do quadro fiscal da UE e das «reformas» delineadas nos planos de «fundo de recuperação» de cada país. Mas estas não farão nada para pôr fim à crise social e económica em curso; de facto, certamente que a irão agravar. Por outras palavras, o próximo governo italiano, se quiser manter-se financeiramente à tona, terá pouca escolha senão seguir os diktats económicos da UE.

Neste contexto, quanto tempo até que os últimos resquícios de legitimidade democrática em países como a Itália se desmoronem? E depois? Em última análise, a próxima crise do euro tem muito mais probabilidades de rebentar nas ruas da Europa do que nos mercados financeiros.

Tipo de Artigo: 
Análise
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Os resultados das eleições italianas dão 26,1% ao partido neo-fascista dos Irmãos de Itália; 19% ao Partido Democrático de centro esquerda; 15,5% aos populistas do Movimento Cinco Estrelas; 8,9% à extrema-direita xenófoba da Liga Itália; 8,3% à direita da Força Itália, de Berlusconi; 7,7% à coligação liberal de centro-direita Azione e Itália Viva, do ex-primeiro-ministro Matteo Renzi; 3,5% à coligação ecossocialista Verde mais esquerda, que junta a Esquerda Italiana com os ecologistas; 2,9% para os europeístas do Mais Europa; 1,9% para os anti-europeus do Italexit; 1,4% da União Popular, que junta a Refundação Comunista com o antigo presidente da câmara de Nápoles Luigi de Magistris e outros grupos de esquerda; e 1,1% para a Itália Soberana e Popular, que junta um dos Partidos Comunistas com outros grupos de esquerda populista.

Devida a uma lei cozinhada por Matteo Renzi, para impedir o acesso ao poder do Movimento Cinco Estrelas, o sistema eleitoral favorece os partidos que vão em coligação: existe uma parte proporcional mas outra parte dos deputados são distribuídos em círculos uninominais, o que permite que a direita com pouco mais de 40% dos votos, vá ficar com uma maioria absoluta muito confortável no senado e no parlamento.

Durante esta madrugada, a presidente do partido Irmãos de Itália (FdI), Giorgia Meloni, herdeira do partido fascista Movimento Social Italiano, declarou vitória nas eleições legislativas de domingo em Itália, reivindicando a liderança do próximo governo.

No primeiro discurso após a votação de domingo, Meloni garantiu que o partido irá governar «para todos» e «para que os italianos se possam orgulhar de ser italianos», deixando visivelmente de fora as centenas de milhares de trabalhadores e famílias de origem estrangeira que vivem e criam a riqueza no país.

«Os italianos enviaram uma mensagem clara de apoio a um governo de direita liderado» pelo FdI, disse Meloni, que deverá tornar-se a primeira mulher a liderar o executivo de Itália, à imprensa, na capital, Roma.

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Como suicidar a esquerda

Se a esquerda já não existe em Itália, é basicamente porque decidiu não existir mais.

Líder comunista italiano Enrico Berlinguer a discursar na festa do jornal do PCI.
Créditos Luigi Ghirri / DR

No início dos anos 90, o sistema político italiano implodiu. A investigações dos juízes das «mãos limpas» deitaram abaixo a Democracia Cristã, de centro-direita, - dirigida por Giulio Andreotti, acusado de ligações à máfia - que tinha sido o pilar de todos os governos desde 1948, e o seu aliado Partido Socialista, igualmente corrupto, de Betinno Craxi.

Aquilo que começou como uma operação judicial acabou por mostrar uma crise muito mais profunda, tendo rompido com o modelo de governação do país que se baseava no domínio da Democracia Cristã (DC) e na expressão organizada do descontentamento feita pelo Partido Comunista Italiano (PCI).

Ao mesmo tempo, o PCI, o maior partido comunista europeu em termos de número de militantes e votos, abandonou a designação de comunista, após a queda do Muro de Berlim, em 1989.

O anticomunismo permeou toda a vida política, e o PCI só em parte beneficiou do clima de revolta. Nas eleições de 1976 para a Câmara de Deputados, o PCI obteve 12 614 650 votos, ou seja, 34,37% dos votos - o seu recorde; chegou a ter cerca de 1 850 000 militantes.

Este poder é claramente temido pelos apoiantes da ordem. Desde o início do confronto Leste-Oeste em 1947, salienta o historiador Eric Hobsbawm, «era evidente que os Estados Unidos da América não permitiriam em circunstância alguma que os comunistas chegassem ao poder em Itália. Segunda maior força eleitoral do país, a organização permaneceu às portas do governo num sistema dominado pela Democracia Cristã, que controlava todas as ramificações do Estado através da imposição de lógicas clientelistas, mesmo mafiosas.», citado num artigo de Antoine Schwartz, no Le Monde Diplomatique.

A adopção das teses do «compromisso histórico», de colaboração entre PCI e DC, e a sua manutenção, mesmo depois do assassinato de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, com a justificação do combate ao terrorismo e à crise económica, arrastaram a primeira grande queda eleitoral do PCI, que levaram Enrico Berlinguer a tentar inflectir a linha política, para um partido mais movimentista e reivindicativo. Essa tentativa de mudar para uma linha mais à esquerda, teve a oposição crescente de muitos dirigentes do partido. A morte de Berlinguer durante a campanha das europeias de 1984, vai deixar esse movimento de rectificação a meio.

«O grupo de liderança, incluindo o nível local, era muito céptico. Não compreendeu esta mudança política, esta nova radicalidade, e tinha nostalgia não pela política de compromisso histórico que nunca tinha sido aplicada, mas pela política de solidariedade nacional que significava governar com a DC. Quando Berlinguer mudou, avançou muito mais para a esquerda numa abordagem movimentista (de volta às fábricas, movimento feminista, pacifista, etc.) alguns dos líderes já não compreendiam (ou eram contra). E assim, na década de 1980, a corrente reformista fez uma guerra aberta contra o Berlinguer. E Berlinguer defendeu-se nas reuniões da direcção dizendo: "Muito bem, se não concordarem comigo, demito-me e teremos um congresso com moções contraditórias". Os reformistas recusaram, porque conheciam o carisma de Berlinguer e o apoio popular que ele desfrutava no seio do partido. Mas até à sua morte, Berlinguer teve de enfrentar a oposição de uma parte da liderança. No momento da sua morte, o jornalista e líder do Manifesto, Valentino Parlato, falou da morte do "toque de corneteiro que antecipou a carga...". Este é obviamente um episódio fundamental na história do fim da esquerda italiana.», afirma o historiador Guido Liguori, autor de um dos principais livros sobre a liquidação do PCI.

No final da década de 1980, os funcionários do aparelho do partido sentiram que este estava em declínio, o colapso do bloco comunista e a desilusão que este gerou reforçaram esta situação. A queda registada nas eleições legislativas de 1987 foi um choque: o PCI obteve, no entanto, 26,5% dos votos. Um homem deveria liderar e encarnar esta vontade de renovação: Achille Occhetto, nomeado novo secretário em 1988. Homem do aparelho - anteriormente conotado com a ala esquerda do PCI, liderada por Pietro Ingrao - tornou-se o mestre de construção de uma estratégia de transformação liderada por reformadores ansiosos por parecerem modernos e chegarem às cadeiras do poder.

«As ideias de Occhetto abraçaram inegavelmente o novo zeitgeist [espírito da época] liberal. "Somos os filhos de 89", dizia o líder no bicentenário da Revolução Francesa - afastando-se da descendência feia dos revolucionários [jacobinos] de 1793. Em vez de uma visão centrada no conflito social, Occhetto favorece uma retórica que exalta o progresso democrático - aquilo que é alcançado em pequenos passos e não perturba os círculos de poder. Uma vez que é necessário abandonar os ancoradouros, aqui está ele a atirar borda fora este marxismo antigo e obsoleto. O reformismo político está em foco e Occhetto quer que a sua organização se junte à Internacional Socialista. O futuro tem o cheiro azul dos "Estados Unidos da Europa", do "caminho europeu para o socialismo" traçado pelo Jacques Delors. Ser "moderno" significa também repensar o papel do Estado: "O país precisa de um Estado que gere menos", diz o líder, "e que, por outro lado, é mais capaz de fornecer projectos e definir regras para uma pluralidade de assuntos, tanto públicos como privados"», assinala Antoine Schwartz. 

O abandono dessa identidade acelerou um processo de adopção gradual da «Terceira Via», teorizada pelo sociólogo Anthony Giddens , que foi traduzida politicamente por Tony Blair, no Reino Unido, e Bill Clinton, nos Estados Unidos.

A deriva do PCI, em PDS, DS, e finalmente em Partido Democrático colocou o partido bastante mais à direita, mesmo da social-democracia, adoptando as teses sociais-liberais.

No Partido Democrata, a linha apoiante da «Terceira Via» é largamente maioritária: as reivindicações dos trabalhadores são vistas como um obstáculo no caminho para a modernização da economia. A convergência com a fracção neoliberal da direita teve lugar com a chegada ao poder de Matteio Renzi, que saiu posteriormente do PD, para fazer um partido ainda mais à direita, o Partido Itália Viva.

Pouco se sabe sobre o passado político de Matteo Renzi para além de que ele era batedor e «nunca leu Gramsci». Muito simplesmente, Renzi é o filho de elementos da elite democrata-cristã. O Partido Democrático tem antigos membros do PCI e da DC a viverem juntos no seu seio. No entanto, em termos de conteúdo, está longe do «compromisso histórico», advogado por Berlinguer, A linha política do PD, ao estilo de Renzi, consistia em copiar as suas medidas sobre as especificações definidas pelas instituições europeias.

A queda de um gigante

Na obra prima do neorrealismo, O Ladrão de Bicicletas (1948) de Vittorio de Sica, o herói do filme vai à polícia numa tentativa de recuperar a sua ferramenta de trabalho, a sua bicicleta roubada, e mandam-no embora sem piedade e sem esperança. O que faz então Allio Ricci, o desesperado proletário? Vai à sede local do Partido Comunista Italiano (PCI) no subúrbio da classe trabalhadora de Roma, Val Maleina, para tentar encontrar ajuda e conforto.

O PCI era um partido de massas, com mais de 1,85 milhões de militantes no final dos anos 70, com uma forte influência em movimentos de massas, como a principal confederação sindical do país, a CGIL, e na confederação de associações ARCI, com mais de três milhões de inscritos. Um partido com enorme presença na sociedade, na história, nos trabalhadores e intelectuais que se eclipsou em pouco tempo.

Logo depois do abandono da designação de comunista, mais de um terço dos militantes saiu quase imediatamente: paulatinamente, o partido de massas que tinha uma forte hegemonia, em grande parte da sociedade, esvai-se e é substituído pelo partido institucional e da comunicação como única forma de chegar às populações. As formações que dele derivaram, e que foram, cada vez mais, para a direita e deixaram de representar os sectores sociais populares e não têm a forte influência que este teve nos meios intelectuais.

De facto, para além de um partido ou de um símbolo, esta renúncia enfraqueceu todo um movimento político, sindical e intelectual, todo um ecossistema militante que em tempos foi capaz de desenvolver as suas próprias concepções do mundo, difundindo o seu gosto pela cultura na sociedade, e defendendo a sua aspiração a um mundo melhor.

Nas eleições que se seguiram ao abandono da identidade comunista, o PDS (Partido Democrático de Esquerda) obtém apenas 20% dos votos e a Refundação Comunista, constituída por parte daqueles que não aceitaram a dissolução, 6%. Mas rapidamente, por via administrativa, esse problema também é resolvido.

«Há outro elemento importante envolvido na crise da esquerda em Itália. Sob a predominância da hegemonia liberal-democrática, o sistema eleitoral foi alterado. Nos anos 90, o sistema proporcional foi abandonado em favor do sistema maioritário, o que forçou as coligações. Assim, a Refundação Comunista teve de fazer parte de coligações de centro-esquerda onde o centro ou a esquerda moderada era predominante. O primeiro governo Prodi morreu porque Prodi não respeitou os acordos com a Refundação que apoiavam o governo a partir do exterior. Dez anos mais tarde, houve outra tentativa com o segundo governo Prodi e esta também durou apenas dois anos, pelas mesmas razões. Não foi implementado um único ponto do programa de esquerda. Isto causou uma forte crise no eleitorado e a Refundação deixou o governo. Em 2008, o sistema eleitoral também foi decisivo. Todos os partidos da esquerda da PD tinham elaborado uma lista chamada "Arcobaleno" (Arco-íris), que supostamente iria obter muito mais votos do que o limiar eleitoral para ser eleito. Mas Veltroni e o PD jogaram a útil carta de voto. "Só o voto útil pode impedir Berlusconi de regressar ao poder". Foi assim que falhou a tentativa de construir um pólo político à esquerda da DP: por causa do espectro de Berlusconi e do voto útil. Enquanto alguns meses antes, Refundação ainda tinha um grupo parlamentar substancial e Fausto Bertinotti, o seu líder, se tinha tornado presidente da Câmara, a esquerda foi completamente destruída nestas eleições. Mas penso que na raiz de tudo está a nova hegemonia liberal, mesmo dentro da própria esquerda.», explica o historiador Guido Liguori.

Alguns dos quadros vindos do PCI, agora nessas formações que lhe renegaram o nome, chegaram a cargos como primeiro-ministro e Presidente da República, mas a política que executaram foi a dos partidos de direita que substituíram no poder.

Em vez de mudarem a vida das pessoas, mudaram de vida

Com o fim do PCI, a capacidade de resistência da esquerda italiana desmoronou-se literalmente, deixando-a desamparada face ao surgimento de uma nova direita ofensiva liderada pelo Berlusconi, que fundou a Força Italia em 1994. É notável", observou o filósofo político Ralph Miliband, «que os especialistas que procuram explicar a adesão de grandes sectores da classe trabalhadora à ideologia conservadora não tenham procurado enfatizar a contribuição dos líderes social-democratas para a desmobilização política produzida tanto pelas suas palavras como pelos seus acto.».

A «terceira via» dá prioridade à igualdade de oportunidades sobre a igualdade de condições de vida e baseia-se numa crença cega nos benefícios do mercado livre; o desejo de renovar a esquerda nesta linha tem o principal efeito de afastar o bloco das classes trabalhadoras.

Este processo de abandono do terreno popular por parte da esquerda não se dá só em Itália, mas dado a força que chegou a ter o PCI, torna-se bastante mais notória aí.

No seu livro A Tirania do Mérito, o filósofo estado-unidense Michael Sandel, fala desse fenómeno, a tomada da representação por parte de elites económicas e com formação superior. «No Reino Unido, em 1979, 37% dos parlamentares trabalhistas eram originários da classe operária; em 2015, já só sete por cento tinham essas raízes», actualmente são menos de 4%. «Em França, mais de 70% da população não tem diploma universitário, mas muitos poucos desses cidadãos conseguem aceder a um lugar parlamentar», nota o filósofo.

«Converter o Congresso e os parlamentos num quase exclusivo das classes «credenciadas» não serviu para que os governos desses países fossem mais eficazes, só tornou os parlamentos menos representativos. Também afastou a população trabalhadora dos partidos tradicionais de esquerda», observa Sandel.

Para o filósofo, o acesso à educação não é independente da classe social, e mesmo se fosse, ela por si não resolveria o problema da desigualdade, mais do que a educação, o que está em causa é o acesso ao poder.

Nesse sentido, o historiador norte-americano Thomas Frank defendeu que os democratas ficaram distraídos de tanto falar em educação e mérito, que renunciaram a fazer uma reflexão clara sobre as políticas que agravaram as desigualdades. Como o facto de a produtividade dos trabalho ter crescido a partir dos anos 80 e os salários terem ficado estagnados. Para o historiador, a desigualdade não se explicava sobretudo pela falta de educação, mas pela perda de poder negocial na sociedade: «O verdadeiro problema não está na inadequada inteligência dos trabalhadores, mas na inadequação do seu poder.», conclui.

Para o economista Thomas PPiketty, em artigo publicado no Le Monde, a grande novidade no presente é que a visibilidade da questão social «perdeu intensidade, em parte, porque quando a esquerda esteve no poder perdeu a sua ambição transformadora e aliou-se muitas vezes ao liberalismo triunfante depois da queda do comunismo.»

A perda de estruturas políticas com ambição e que organizem os sectores sociais da classe operária e populares somam-se as profundas alterações sociais que resultam dos processos de globalização conjugados com a integração europeia.

«A Classe operária italiana beneficiou da fraqueza da burguesia. Depois, com a globalização, foi dissolvida. O crescimento parou definitivamente em 1992. E desde então, as gerações perdidas têm sido condenadas, inclusive na universidade, a lutar por empregos precários a 1.200 euros por mês. Isto provoca atitudes puramente defensivas que nada têm a ver com os “amanhãs que cantam”. Estamos a experimentar um declínio real. 40% dos jovens estão desempregados; no ano de 2018 , pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, a esperança de vida caiu no nosso país.», faz notar o sociólogo Marco D'Eramo.

Uma maioria social heterogénea

A desaparição da esquerda, desmobilizou as classes populares e abriu portas para o crescimento do populismo em sectores das pequena e média burguesia e até do operariado em crise que tinham votado comunista.

A política tem o horror ao vazio, e o conflito social reconfigurou-se com aparências enganadoras. Onde havia luta de classes e esquerda e direita, passou a haver outro tipo de conflitos. A consciência de classe foi substituída pela raiva individual e a luta contra o poder dos mais ricos foi transformada em medo do outro e em xenofobia.  

«As eleições legislativas italianas de Marços de 2018 - foram vencidas pelo Movimento Cinco Estrelas e pela Liga - marcaram tanto o fracasso eleitoral do bloco burguês como a consolidação da sua hegemonia, que se reflecte na capacidade de dirigir a estratégia dos seus opositores. Tendo em conta o prazo eleitoral, a Liga tinha dado a si própria a imagem (falsa) de um partido anti-euro e nacionalista, enquanto o Movimento Cinco Estrelas dizia opor-se à "casta" de eleitos e "elites" privilegiadas: ambos os movimentos afirmavam estar situados no espaço político para além da direita e da esquerda, tal como definido pelo bloco burguês.», explica  Stefano Palombarini no Le Monde Diplomatique.

«Num dos pólos que estruturam este espaço é uma aliança relativamente homogénea que se considera aberta, europeísta, progressista, e que tende a ocultar o papel central da reforma neoliberal no projecto que carrega. Mas esta aliança, o bloco burguês, é uma minoria social.

O bloco burguês não é apenas uma estratégia para a formação de uma aliança social específica, na qual as classes média e alta, anteriormente divididas pela divisão direita-esquerda, se unem para apoiar as reformas neoliberais: é também um projecto cultural e ideológico que visa a completa reestruturação do espaço político. Um projecto que pode ser visto em acção em muitos estados, e que tem sido completamente bem sucedido em Itália.

Neste país, o posicionamento dos actores políticos e as expectativas do eleitorado já não estão organizados em torno da polarização esquerda-direita, mas num espaço definido pelas oposições entre europeístas e nacionalistas, cosmopolitas e identitários, federalistas e soberanistas.

Uma campanha mediática tem assumido constantemente a tarefa de separar os programas políticos "responsáveis" (isto é, de acordo com a transição neoliberal) das posições "populistas" (um rótulo reservado a todos aqueles que se lhes opõem).

No pólo oposto, existe uma maioria social heterogénea que se agrega de forma variável em torno da rejeição da casta, da hostilidade ao euro ou de um impulso nacionalista tingido de xenofobia. O primeiro governo de Giuseppe Conte, baseado na aliança entre os dois vencedores de 2018, mostrou a dificuldade de identificar uma estratégia de mediação capaz de transformar esta maioria social num bloco compacto.

Mas o destino pouco mais glorioso do segundo governo Conte (Movimento Cinco Estrelas - Partido Democrático) mostra que, na presença de relações de poder hegemónicas que levam à negação da relevância da divisão direita-esquerda, as hipóteses de reconstruir a esquerda, mesmo numa versão rosa muito pálida, são próximas de zero.

No espaço estruturado pela ideologia do bloco burguês, a única estratégia política coerente é, portanto, a do bloco burguês. Isto explica a surpreendente conclusão do drama italiano com a unidade nacional em torno de um projecto liberal e europeísta que é socialmente minoritário. Esta conclusão é, no entanto, provisória. Outros actos se seguirão, e as classes sacrificadas por reformas estruturais passadas e futuras serão os protagonistas. Em que papel e de que forma? É demasiado cedo para dizer, tal como é demasiado cedo para saber se estas classes irão procurar um novo caminho democrático após a desilusão gerada por um resultado eleitoral que experimentaram, em 2018, como uma grande vitória, e que acabou por produzir o Draghi.

O que vai acontecer a seguir dependerá em grande parte da capacidade dos actores que se opõem às reformas neoliberais para trazer de volta ao cerne do conflito político as suas consequências concretas em termos das lutas sociais contra a diminuição dos salários, da explosão das desigualdades, da redução da protecção social e da degradação dos serviços públicos. Esta é a forma de desafiar a hegemonia do bloco burguês, e de o derrotar».

Tipo de Artigo: 
Análise
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De acordo com resultados parciais, a coligação de direita e extrema-direita - liderada pelo FdI e que reúne ainda a Liga, de Matteo Salvini, e o partido conservador Força Italia, de Silvio Berlusconi - obteve entre 43% dos votos nas legislativas.

O bloco de centro-esquerda, liderado pelo Partido Democrático, de Enrico Letta, deverá ter 26% dos votos.

«É hora de os italianos voltarem a ter um governo que sai de uma decisão nas urnas e é algo em que todos têm que prestar contas», sublinhou Meloni.

A participação nas eleições gerais da Itália, no domingo, foi de cerca de 63,81%, abaixo dos 72,9% registados nas eleições de 2018, disse a ministra do Interior italiana, Luciana Lamorgese.

Meloni lamentou a abstenção de 36%, a mais elevada de sempre, e assegurou que o objetivo será «reconstruir a relação entre o Estado e os cidadãos».

Um século depois da Marcha de Roma, que colocou Mussolini no poder, uma sua herdeira vai ocupar o poder, numa Europa em guerra, em que os vários poderes económicos, políticos e mediáticos têm-se ocupado do branqueamento de nazis, integrando-os no jogo da alternância do poder capitalista. 

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