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MDM: Só organizadas colectivamente as mulheres podem defender os seus direitos

AbrilAbril esteve à conversa com dirigentes do Movimento Democrático de Mulheres após o seu XI Congresso. Admitem que só com a luta organizada é possível lutar pelos direitos e que essa é uma realidade percebida por cada vez mais mulheres. 

CréditosAna Isabel Martins / MDM

Foi no passado dia 29 de Outubro que o MDM realizou a sua reunião magna, em Lisboa, com o lema «A força das mulheres em movimento, por direitos, igualdade, justiça social e paz». Uma semana depois, na sede do Movimento, ainda não se tinha recuperado do esforço de realização deste encontro, que reuniu cerca de 500 mulheres de todo o País, além de convidadas internacionais, até porque este foi «só» mais um momento no dia-a-dia destas activistas. «A actividade do MDM não pára», dizem com entusiasmo, enquanto mostram os conteúdos editoriais que vêm produzindo, de análise sobre a realidade das mulheres no nosso país, ao mesmo tempo que antecipam o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, que se assinala a 25 de Novembro. 

Sandra Benfica, Tânia Mateus e Isabel Cruz, do secretariado nacional do MDM, traçam o retrato dos desafios que as mulheres enfrentam e das políticas públicas que falta alavancar para que seja uma realidade o que a lei consagra. 

Que balanço fazem do XI Congresso?

Sandra Benfica: O balanço que fazemos é tremendamente positivo. Este foi um congresso muito especial, acho até que poderíamos dizer que foi ímpar tendo em conta até o contexto; na sequência de tudo aquilo que tem acontecido na vida das mulheres e após um período que foi extremamente difícil, em que tanto apelo houve a que as pessoas calassem, que não participassem, confinassem. E, em boa verdade, o MDM nunca esteve calado, nunca esteve parado, foi um movimento que garantiu todas as condições de segurança, garantiu também que não se confinavam os direitos das mulheres. E, portanto, esta presença na vida das mulheres, que é a matriz deste movimento, este estar lado a lado, acompanhando todos os problemas, quer se fale de questões relacionadas com as múltiplas desigualdades, as discriminações, as violências seja em qualquer espaço ou esfera da sua vida, mas também a capacidade que o movimento teve de permanentemente ir assinalando um conjunto de medidas que estavam a ser implementadas e que feriam os direitos das mulheres, deu uma força e uma vontade de participar, que naturalmente também foi reflectida neste congresso.

Todas as mulheres que vieram e foram muitas, de todos os cantos do País, trouxeram, para além de um retrato muito objectivo, ligado à vida das problemáticas mais sentidas pelas mulheres nos seus distritos e nos seus sectores, mas sobretudo trouxeram uma garra, uma vontade, uma alegria na participação, que foi absolutamente extraordinária, com este factor indispensável: a participação das mulheres, sim, mas organizadas colectivamente, para efectivamente conseguirmos superar muitos dos problemas que se têm agudizado na vida das mulheres. 

Tânia Mateus: Acho que este congresso também realçou aquilo que é uma marca distintiva do MDM, que, sendo uma das organizações mais antigas do País na defesa dos direitos das mulheres, demonstrou que é também um encontro de gerações.

Neste congresso estiveram mulheres que estão com o MDM há mais de 50 anos e outras que estão a participar pela primeira vez. Este encontro e troca de experiências entre as mais velhas e as mais novas demonstra que o MDM tem passado, tem memória, mas acima de tudo tem presente e tem futuro. Acho que esta é também uma ideia muito importante que este congresso realçou, não só pelo rejuvenescimento na responsabilização dos seus quadros, nos órgãos nacionais que foram eleitos, mas também pelos problemas que vieram ao congresso, muito ligados às jovens e aos problemas que elas vivem hoje, mas também às suas aspirações.

E acho que também procurou, não só dizer o que é que aconteceu nos últimos quatro anos, o que é que está a acontecer agora, mas sobretudo o que é que nós queremos para o futuro. É esta projecção para o futuro que eu acho que é um balanço muito importante que o congresso deixou. Temos história, temos memória, e isso também esteve presente na homenagem que se fez às conselheiras e às mulheres que estão sempre com o MDM, mas deixam de estar nos órgãos nacionais. 

Que objectivos ou medidas cabem nessa projecção para o futuro?

Tânia Mateus: Há aqui um objectivo comum que é alcançar a igualdade. Há um património legislativo que contempla e prevê um conjunto de direitos para as mulheres, mas aquilo que a realidade nos diz todos os dias é que há um hiato entre o que a lei diz e a realidade concreta das mulheres. O grande objectivo é exigir e lutar para que haja políticas e medidas que tornem estes direitos uma realidade na vida das mulheres, não só estes, como procurar fortalecer e melhorar um conjunto de direitos que são necessários, quer na área da violência, quer no trabalho, quer nas funções sociais do Estado, o documento baliza aquilo que nós entendemos ser os principais domínios ou dimensões que faltam para que a igualdade seja uma realidade na vida das mulheres. Aquilo que nós dizemos da igualdade na vida é expressa pelo direito à habitação, pelo trabalho com direitos, pelo trabalho qualificado, pelo acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), pelo acesso a uma educação e uma Escola Pública de qualidade, pelo acesso à mobilidade, pela prevenção e combate às violências contra as mulheres, nomeadamente da violência doméstica, no namoro, o combate ao lenocínio... 

Sandra Benfica: Os lemas são sempre muito difíceis, mas esta ideia central do MDM, da necessidade que a igualdade seja sentida e vivida no quotidiano das mulheres está aqui também plasmado nos tópicos que a Tânia já colocou e que nós procurámos resumir nisto: a luta do MDM, hoje, é por direitos, por igualdade, por justiça social e pela paz. Outra marca deste congresso foi a luta pela paz, que é uma matriz deste movimento, e uma permanente solidariedade com as mulheres que em Portugal e no mundo lutam, não apenas pelos seus direitos específicos, mas também, e sobretudo, pelo direito à autodeterminação e independência dos seus povos. Aprofundámos questões sensíveis e complexas, e que se prendem, por exemplo, com o desenvolvimento do complexo industrial militar, o papel da NATO e o estarmos a viver uma situação de imensos perigos para a paz. Mas também esteve presente a solidariedade.

Foi muito interessante ver as expressões de mulheres de vários países dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), mas tivemos connosco a Sultana Khaya, que é uma activista dos direitos do povo sarauí. De certa forma, a Sultana tem-se transformado num símbolo da luta do seu povo pela capacidade que tem de nos trazer toda a dimensão do problema no Saara Ocidental, mas também por aquilo que significa ser uma mulher resistente sobre a ocupação de Marrocos. Se foi extraordinário o depoimento que nos deixou, eu diria que mais extraordinária foi a reacção de todas as mulheres que estiveram presentes no congresso. Aqui ninguém é indiferente ao sofrimento de qualquer mulher, de qualquer povo, que esteja sob a alçada de um domínio destes; agressivo, torturador, violador em todas as dimensões dos seus direitos mais elementares. Esta luta pela paz e a expressão activa da solidariedade com quem no mundo sofre, resiste e luta é uma componente muito importante do movimento. 

Já aqui falaram do rejuvenescimento e no congresso isso ficou patente na intervenção de uma jovem de Viana do Castelo, onde foi criado um núcleo do MDM. Há outros exemplos? 

Sandra Benfica: Esta jovem de Viana do Castelo faz uma coisa muito interessante porque ela conta o seu processo e através dele o processo de outras jovens. Ela vai pela primeira vez a uma manifestação de mulheres ao Porto [8 de Março]. «Eu fui e quando voltei olhei para dentro», disse ela. Claro que olhou para ela, mas também para o seu distrito, para a condição de vida das mulheres do seu distrito. E a força que trouxe daquela manifestação obrigou-a, moralmente, se quisermos assim, a intervir. No fundo, como nós dizemos, tomar nas mãos a solução dos seus problemas. É uma intervenção muito bela, no sentido em que diz muito bem do sentir que muitas mulheres, que vivem em situações que muitas vezes não identificam, nem o nível, nem o grau da discriminação e desigualdade e até de violência a que são sujeitas, e que no encontro com as outras, na participação política, que faz crescer esta consciência, que é social, mas também pessoal. Mas penso que temos condições para alargar o trabalho do movimento a mais sítios com as condições que neste momento estão reunidas.

Tânia Mateus: Eu queria dar o exemplo de outro núcleo que nasceu, mas que costumamos dizer que é filho da pandemia. Num contexto de isolamento e confinamento, criou-se um conjunto de potencialidades suscitadas pelas novas tecnologias, e que demonstra que o MDM não esteve confinado e procurou manter contacto com as mulheres, mesmo nos períodos em que não podíamos sair. E, num concelho como o Bombarral (distrito de Leiria), há um núcleo que nasce durante a pandemia e no próximo dia 25 de Novembro vai realizar um jantar, através de uma parceria com uma colectividade na Delgada. E vou agora citar Raquel Gallego, que na sua intervenção no congresso disse: «Mulher organizada é mulher libertada.» 

Isabel Cruz: O que foi interessante, tendo em conta o território todo, foram algumas coisas comuns que aconteceram e que no fundo também explicam qual é o nosso papel. O MDM não é o único que luta pelas condições de vida e de trabalho das mulheres, obviamente, mas é interessante perceber como é que a intervenção do MDM potencia a luta organizada noutros âmbitos. A intervenção [no congresso] da jovem de Portalegre sobre as questões do teletrabalho teve uma mensagem boa, que foi: Como é que se intervinha ali em termos sindicais para trazer mais mulheres para a luta? Como é que o descontentamento das mulheres se podia traduzir em luta organizada e ela deu o exemplo do MDM. Outro exemplo foi em Bragança.

«Aquilo que nós dizemos da igualdade na vida é expressa pelo direito à habitação, pelo trabalho com direitos, pelo trabalho qualificado, pelo acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), pelo acesso a uma educação e uma Escola Pública de qualidade, pelo acesso à mobilidade, pela prevenção e combate às violências contra as mulheres (...).»

Tânia Mateus

As mulheres que trabalham na Varandas de Sousa (ex-Sousacamp) nunca tinham ido a uma única manifestação, a primeira a que foram foi no Porto, este ano, no âmbito do 8 de Março. A seguir fizeram greve. Também foram ao Porto, no dia 15 de Outubro [manifestação da CGTP-IN], e no regresso a casa já iam a pensar na sua participação na manifestação do Dia da Mulher do próximo ano, no Porto. Claro que elas não têm vida para militar no MDM, porque são horas e horas de trabalho, mas o que é engraçado é que acendeu-se uma luzinha e são condições brutais, porque é um sítio onde toda a gente se conhece, não há trabalho. Mesmo assim elas conseguiram vencer o medo. Esta foi no fundo a mensagem que demos para o futuro mais imediato: por muito que as condições sejam péssimas, e são difíceis, inseguras, as mulheres não se calam.      

Uma das ideias destacadas na resolução que aprovaram é que não há igualdade sem serviços públicos. Como é que olham para a actual situação política, depois de um período de avanços em várias matérias?

Tânia Mateus: Se há coisa que as várias crises, sejam elas de que natureza forem, já demonstraram, e se há coisa que a pandemia nos mostrou e provou é que sem bons serviços públicos de qualidade não há resposta adequada. Aliás, se olharmos para outros países onde não existem sistemas de saúde como o Serviço Nacional de Saúde (SNS), e podemos fazer quase uma analogia, acho que é inequívoco para a esmagadora maioria da população que, se não fosse o SNS, a situação teria sido muito pior. 

«O MDM não é o único que luta pelas condições de vida e de trabalho das mulheres, obviamente, mas é interessante perceber como é que a intervenção do MDM potencia a luta organizada noutros âmbitos.»

isabel cruz

Se há algo que nos comprovou é que se não for a protecção social, através de uma Segurança Social universal e pública, as pessoas ficam desprotegidas, sem garantia de ter uma subsistência mínima para viver e só estou a focar estas dimensões essenciais dos serviços públicos. E que, no caso das mulheres, isto assume uma particular especificidade e importância. Porque se olharmos, por exemplo, no que se refere à protecção social, que está intimamente ligada à penetração no mundo do trabalho e aos salários, não à penetração, porque as mulheres estão plenamente activas e trabalham, mas àquilo que tem a ver com as diferenças, desigualdades e discriminações salariais que ainda persistem, e aos baixos salários de todos. Porque homens e mulheres têm baixos salários, mas ainda se vivem casos em que as mulheres ainda ganham menos do que os homens, não tanto pelo salário base, pela discriminação directa, mas muitas vezes pelas [discriminações] indirectas, pelos prémios, pelas compensações, pelas promoções, em que muitas vezes as mulheres são colocadas de parte precisamente porque são mulheres ou porque são mães ou têm de cuidar da família. Mas se há de facto estas dimensões dos serviços públicos, eles são uma peça-chave determinante para concretizar os direitos das mulheres e tornar a igualdade possível. Porque a igualdade não pode ser só uma palavra. As palavras existem na lei, mas para eu ter alternativas no meu dia-a-dia eu tenho que ter escolhas. 

Escolhas efectivas.

Tânia Mateus: Reais escolhas, não pode ser uma ideia abstracta. É como dizer que eu tenho a alternativa de viver numa casa maior, ou poder proporcionar aos meus quatro filhos um quarto para cada um, quando o meu salário, a minha condição de vida e do meu companheiro não permite ter uma escolha porque, objectivamente, os nossos rendimentos conjuntos não permitem escolher, e por isso é que durante o confinamento, por exemplo, só na casa de banho não havia ninguém a ter aulas. É esta questão que falta, esta diferença entre o que diz a lei e a realidade. É como dizermos que a prostituição é uma escolha, é como acharmos que uma mulher que se prostitui o faz por opção e por escolha. Se pensarmos que o acesso à habitação é nenhum, que os salários são como são, que a precariedade no mundo do trabalho, em que há mulheres em determinadas camadas que não conseguem sair de uma espiral de precariedade, de [trabalho] temporário em temporário para ganhar meia dúzia de tostões, de facto não há escolha possível. Nós batalhamos para que haja escolhas e os serviços públicos são uma peça fundamental, acima de tudo as políticas públicas, como por exemplo na habitação. Se olharmos para a maternidade como uma função social e de renovação das gerações, há um papel que o Estado tem de cumprir, por via de políticas públicas, para assegurar que a maternidade seja efectivamente uma escolha.

Isabel Cruz: Isto não quer dizer que a Escola Pública ou o SNS estão bem como estão. No caso da educação, é preciso alterar uma quantidade de enquadramentos que passam também pela formação dos professores e pela valorização do seu papel. 

Que apreciação fazem dos recuos a que vimos assistindo no plano internacional, ao nível da interrupção voluntária da gravidez (IVG)?

Sandra Benfica: Pois, nós já tivemos essa dose em 2015 (ver caixa abaixo) e é bom que a gente não se esqueça. E lembrou-nos, caso alguém estivesse distraído, que um direito tem de ser defendido sempre. Depois de conquistado, não se pode baixar os braços. Nunca perdoaram o percurso longuíssimo que se fez para podermos ter a lei da IVG. Aliás, também não há nenhuma lei que seja tão escrutinada do ponto de vista da saúde como esta, embora tenha havido também alguns retrocessos na divulgação dos relatórios.

Mas nós, em 2015, tivemos um processo que a propósito de uma petição na Assembleia da República, no último dia da legislatura, 22 de Julho de 2015, às 19h e qualquer coisa, foi mesmo o último a ser votado… décadas de luta e de conquista concreta, através de um referendo e depois da legislação e da sua aplicação, e partes substanciais dos direitos que estavam conferidos com a lei da IVG foram anuladas. Na altura dissemos: «Esta foi a última a ser votada, há-de ser a primeira a ser revertida.» E assim foi. Se alguém lesse o que ali está, com um olhar que não fosse apenas focado na IVG, veria que ali está focado também o olhar relativamente ao que se entende que são as mulheres e os seus papéis tradicionais, e qual é o valor que elas efectivamente têm na sociedade portuguesa, e o que muita daquela gente pensa sobre nós. Quando nos dizem que temos de ser acompanhadas, termos não sei quantos médicos, vermos as ecografias dos bebés, sermos encostadas à parede, como se nós não tivéssemos inteligência, capacidade de desenvolvimento do nosso raciocínio, de tomar opções quando as temos, como a Tânia referiu. Portanto, esta menorização, subalternização, desrespeito pelas mulheres é uma tónica que também é um retrocesso nos direitos. Porque esta ideia de respeito pelas mulheres, pela sua integridade, pela sua inteligência, pela sua autonomia, pela sua independência, são valores em si mesmos que têm tido retrocessos profundíssimos.

Ainda assim, a IVG não é um direito pleno no nosso país.

Sandra Benfica: A IVG é um perigo. Continuamos a acompanhar, desde logo até do ponto de vista local, porque não nos serve de muito ter uma lei se ela depois não é praticada. Por exemplo, em Lisboa, no Hospital Amadora Sintra, que é um dos maiores da nossa região, que, além do volume de utentes, tem uma população que é encaminhada para ali muito marcada pela precariedade, pela pobreza, por alguma exclusão social, por uma série de problemas sociais, nunca fez nenhuma IVG desde que abriu portas. Não faz porque todos os seus médicos são objectores de consciência, desde sempre.

Tânia Mateus: No [Hospital de] Santa Maria, apenas um médico não é objector de consciência. 

Sandra Benfica: Tivemos inclusivamente uma reunião com o director do hospital [Amadora Sintra]. E, portanto, nós perguntamos o que acontece às mulheres destes concelhos quando estão perante uma situação em que não há consultas nos centros de saúde. Veja-se a vergonha em Odivelas, em Algueirão-Sintra, a que a comunicação social deu maior projecção nos últimos tempos. É interessante ir para a porta de um centro de saúde às 3h ou 4h da manhã, por exemplo em Odivelas, e ver a quantidade de mulheres que está ali a essa hora para conseguir uma consulta. O que é que acontece a uma grávida? O que é que acontece a uma mulher que está grávida e não deseja prosseguir a sua gravidez?

É uma violência.

Sandra Benfica: Isto é em si mesmo uma violência. O MDM também tem uma perspectiva sobre as violências que não é propriamente aquela que está exclusivamente contida nas instâncias internacionais, e muito menos aquela que os diferentes governos têm decidido eleger. Nós falamos da multiplicidade das violências sobre as mulheres, que acontecem em todos os espaços: acontecem em casa, no espaço público, na publicidade, nos programas de televisão e nas revistas, com a objectificação que se faz do corpo das mulheres. Também se faz no trabalho, e não é só por via do assédio moral ou sexual. Não é violência uma mulher que trabalha 12 horas por dia e recebe um salário de miséria? Ou que tem de pedir autorização para poder ir mudar um tampão ou um penso higiénico, porque lhe descontam? Isto não é violência em contexto laboral? É violência. Isto para dizer que nós consideramos que há uma persistência e uma agudização do que podemos denominar de velhas formas (porque são ancestrais). A violência em contexto da intimidade nos casais, independentemente da sua orientação sexual, mas sobretudo no casamento, nas uniões de facto, no namoro, tudo isto persiste e agrava-se.

«Não é violência uma mulher que trabalha 12 horas por dia e recebe um salário de miséria? Ou que tem de pedir autorização para poder ir mudar um tampão ou um penso higiénico, porque lhe descontam? Isto não é violência em contexto laboral?»

SANDRA BENFICA

Mas há formas distintas, não menos violentas, que têm um tratamento hipócrita e um exemplo concreto que se dá é, se falarmos por exemplo da prostituição, que dá lucro e da qual não se devia falar apenas no individual, mas do que significa enquanto crime organizado e enquanto negócio, que rende ao proxenetismo muitos muitos milhões de euros anualmente e que serve para alimentar uma tríade de crimes que por aí existem. E nós vemos como está a situação. Conseguimos, lutámos, persistimos no nosso trabalho, não arredamos pé um milímetro relativamente à nossa posição, mas sabemos que se estão a preparar novas tentativas.

Através do lobby do proxenetismo, como vimos recentemente na petição que chegou à Assembleia da República... 

Sandra Benfica: Não é para defender os direitos das mulheres, o que se está a procurar é defender os que querem continuar a lucrar e, particularmente, ampliar os seus lucros, com o negócio da prostituição. Mas se falarmos do tráfico humano, que é uma área de intervenção também muito específica do MDM, já ninguém é favorável e existe um discurso absolutamente hipócrita.

Quem tem este discurso, que considera o tráfico uma coisa absolutamente insuportável – e é, são os mesmos que possibilitam, ao nível do trabalho, as pessoas trabalhem em situações de escravatura, de sobrexploração, sem condições de trabalho e de segurança no trabalho, que se aplicam aos trabalhadores que estão em situação de tráfico e que se aplicam a muitos trabalhadores que não estão em situação de tráfico. São os mesmos que acham que a exploração sexual de crianças e mulheres no contexto de tráfico é uma coisa horrível – e é, mas fecham os olhos e até querem apresentar projectos para validar o negócio dos exploradores, que metem mulheres e crianças no negócio da prostituição. 

Esta é uma luta que não se pode restringir ao exemplo concreto da prostituição, do tráfico, etc., é uma luta que é mais geral e profundamente ideológica, e não se luta contra as violências sem ter todas estas dimensões colocadas.

O facto de ser uma luta ideológica explica o silenciamento e o estigma que denunciam na resolução?

Sandra Benfica: Claro! O MDM sempre foi silenciado, mas não seria de esperar outra coisa, primeiro porque a nossa intervenção tenta não ser superficial, não contribuímos para o sangue que alimenta os jornais e procuramos ter a nossa actividade com grande responsabilidade. E incomoda, como é evidente. 

Tânia Mateus: Mas também incomoda porque [o MDM] sempre contrapôs esta ideia de que o corpo da mulher só é dela quando for para vender alguma coisa, e acho que isto incomoda porque quando se tenta colocar as violências num patamar dual, dos comportamentos individuais, e não tanto no sistema. E esta ideia incomoda. Mesmo em relação à IVG, o corpo só é meu para decidir se eu quero vender o meu útero, mas não para decidir, por exemplo, sobre uma IVG, porque eu não desejo ser mãe neste momento ou nunca. Só nestes momentos não sou plena de decisão, da mesma maneira que decido prostituir-me? É um pouco esta ideia que o MDM procura contrapor e isso vai em contraciclo com aquilo que é dominante, por isso é ignorado. E porque fala do contexto, porque se preocupa em ir às causas e não só as causas do comportamento, naquilo que a Sandra colocava há pouco, da relação dentro de casa. Há contextos que são propícios, se nós vivemos numa sociedade em que se explora, se escraviza e se domina um sobre o outro é muito fácil dominar a mulher pelo homem. Mas não podemos olhar para isto só do ponto de vista do comportamento, mas do contexto. Os contextos políticos, socioeconómicos têm uma influência naquilo que é o comportamento individual, mas não podemos mudar mentalidades e comportamentos se não mudarmos a forma como vivemos colectivamente.

Sandra Benfica: Só para terminar, dizer que temos um lema: os proxenetas não marcham ao nosso lado. Por proxenetas não nos referimos apenas aos que estão encostados na rua a tomar conta, mas de todos. Todos aqueles que conseguem manter redacções de jornais à custa dos anúncios da prostituição nos sites e nas suas páginas. 

Tânia Mateus: Ou de quem defende a legalização do lenocínio, mas no dia 25 de Novembro está na rua a defender os direitos das mulheres contra as violências. 

Sandra Benfica: Mas sente-se um clima diferente relativamente a esta questão. Também já acabou o tempo em que parecia que havia só uns que falavam sobre o assunto. E nós sentimos, porque é uma intervenção nacional e diária do MDM nesta matéria, que há alterações muito significativas, e temos uma nota de esperança, que é a capacidade de atracção à luta que este tema tem, particularmente dos mais jovens: raparigas, mas também rapazes.

«Por proxenetas não nos referimos apenas aos que estão encostados na rua a tomar conta, mas de todos. Todos aqueles que conseguem manter redacções de jornais à custa dos anúncios da prostituição nos sites e nas suas páginas.»

Sandra BEnfica

E, portanto, estamos prontas para prosseguir, alargando, informando, debatendo ideias, com abordagens novas que vêm, mas centradas nisto: não nos interessa só combater as tentativas de lenocínio. Temos que exigir políticas que possam efectivamente, em primeiro lugar, prevenir que mais mulheres venham engrossar o contingente da prostituição no nosso país, e precisamos que o Portugal tenha finalmente um plano nacional de combate à exploração na prostituição. Já foi aprovada na Assembleia da República a ideia e agora falta construí-la, porque as mulheres que estão na prostituição necessitam destes apoios, necessitam de ter efectivamente uma opção se desejarem sair da prostituição, e se tiverem essa alternativa, tem de ser uma alternativa plenamente implementada e a funcionar, que dê respostas a si, e que dê respostas também aos seus filhos, porque nós sabemos quais são os principais obstáculos na vida das mulheres na prostituição, que as retêm na prostituição. Se temos essa identificação, então é preciso que este plano venha resolver este problema. Não é dar-lhes um estatuto de trabalhadora especial, ainda por cima, e assim o direito a passar uns recibos verdes, não se sabe muito bem a quem. 

E é preciso dizer também aos homens que o corpo das mulheres não tem que estar disponível para fazerem com ele aquilo que bem quiserem. Enquanto se alimentar isto, autoriza-se que jovens rapazes e os homens considerem então que se se normalizou ao nível da política, porque é que eles estão impedidos de aceder à prostituição? Isto é um problema muito sério, porque nós sabemos que entre os consumidores de prostituição agravam-se outros problemas que precisam de ser enfrentados. A prostituição continua a fazer-se no nosso país a partir dos 13, 14 anos, e a situação está a agravar-se com a degradação das condições sociais e económicas, mas é preciso dizer que isto não aceitável.

Marx dizia que o nível da civilização humana se pode avaliar pela relação entre um homem e uma mulher. Tendo em conta os números da violência doméstica, em que nível diriam que estamos?

Sandra Benfica: O problema das estatísticas é sempre muito grande. Preocupa-nos o facto de nunca ter havido tanta campanha, tanta sensibilização, tanta iniciativa, e os números continuarem a disparar. Precisamos de ir mais fundo nisto. A percentagem que vem no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) não nos dá outros indicadores que são fundamentais, desde logo do estudo das causas que persistem na vida das pessoas para que [a violência] exista. Já agora, ter aqui também atenção a algo: os números referentes à violência doméstica não se referem apenas à violência na intimidade. Referem-se ao agravamento da violência em contexto doméstico contra os idosos, praticada pelos cônjuges, mas também pelos filhos, e vice-versa. Mas há uma coisa que se sabe. Sabe-se que, de cada vez que se agravam as condições económicas e sociais – não estou a dizer que isto é um fenómeno das pessoas pobres –, agrava-se todo um conjunto de violências na sociedade com o reflexo também na intimidade. E portanto voltamos ao macro, voltamos a esta ideia central: enquanto não se resolverem muitos destes problemas não conseguimos melhorar as estatísticas, nem a vida das pessoas. 

O RASI (2018) diz algo assim: 40% das intervenções dos órgãos de polícia criminal no contexto de violência doméstica encontraram situações de alcoolismo e de estupefacientes. Não estou a dizer que estes consumos desculpam este comportamento, porque a violência é sempre inaceitável. Mas nós queremos ir às causas e à sua resolução. E perguntar-se-á o que aconteceu, por exemplo, aos serviços de atendimento, não só no SNS, mas também noutros institutos, relacionados com o problema do alcoolismo e de estupefacientes. Perguntar-se-á onde estão disponíveis os serviços, por exemplo, de saúde mental. É que mesmo nas situações em que há uma denúncia, os serviços não funcionam, há subfinanciamento total, não há uma rede - a rede que existe não é uma rede pública. É uma rede que vive da entrega a privados de diferentes naturezas jurídicas, com financiamento público, mas que funciona mediante haja ou não financiamento. Recentemente, o MDM esteve a dar formação a 15 técnicos de um universo da Câmara Municipal de Lisboa que se relaciona directamente com esta problemática. Os trabalhadores manifestaram-se interessados e no fim perguntaram o que fazer. Perguntámos pelo protocolo interno e não conheciam. Portanto, a descoordenação dos serviços, a articulação quase inexistente, a campanha que se fez em torno da formação dos técnicos e que nós conseguimos provar que é baixíssima... ou seja, falta coordenação, articulação e reforço destes serviços, integrados numa rede pública. E depois a questão da reincidência. Como é que é feito este acompanhamento? A ideia é apenas punirmos ou evitar que volte a acontecer?

Tânia Mateus: Só acrescentar um aspecto que saltou de um seminário que realizámos em 2021, que é revelador. Estas estruturas de apoio à violência são asseguradas por instituições que proporcionam estas respostas às mulheres em nome do Estado, financiadas para tal, mas esse nível de atendimento e de apoio só é dado em função da janela de financiamento que têm por parte do Estado e de fundos comunitários. Muitas delas estão confrontadas com alturas em que não há financiamento, portanto não conseguem manter aquela estrutura a dar aquela resposta. Não conseguem manter, não há mais ninguém a dar resposta, e isto também nos coloca perante um problema que é, nós estamos entre janelas de fundos comunitários e agora há um hiato, não há financiamento para ninguém. Isto é, há diminuição de respostas e de apoios que fazem parte da rede nacional, mas que não estão a funcionar ou têm horários das 9h às 13h, porque efectivamente aquela associação sozinha não tem condições financeiras para assegurar um funcionamento e prestar um serviço público, em nome do estado e sem financiamento. Significa que, tanto em campanhas de prevenção como de intervenção concreta, o nível de resposta diminui consideravelmente sempre que há desinvestimento. 

Mas a expressão de Marx é exactamente aquilo que estávamos aqui a colocar: é que há um conjunto de dimensões colectivas que são reveladoras do comportamento das pessoas. E se há algo que a vida nos demonstra é que sempre que há maiores crises e fragilidades há uma acentuação das condições de violência, e isso está intimamente ligado com a diminuição das funções e dos serviços públicos. 

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