Protestos nas Canárias com o Saara ali tão perto

Centenas de manifestantes concentraram-se no sábado em frente às representações do Estado espanhol nas duas capitais canárias, Las Palmas e Tenerife, para mostrar o seu repúdio à alteração de posição do governo central sobre a autonomia do Saara Ocidental, informa a Cadena Ser.

Recentemente, o governo de Pedro Sánchez alterou radicalmente a posição histórica de Espanha sobre a questão saarauí, trocando a exigência de um referendo de autodeterminação, determinado por todas as resoluções da Organização das Nações Unidas (ONU) desde os finais dos anos setenta, pelo apoio a uma autonomia do território sob a soberania marroquina, como defende a potência ocupante.

Em Las Palmas, segundo a Cadena Ser, foi lido e aprovado um manifesto que reivindica a via pacífica das urnas como única alternativa à guerra. Octavio Melíán, presidente da Associação Canária de Solidariedade com o Povo Saarauí, organizadora do protesto, assegurou que o apoio nas Canárias ao povo saarauí permanece vivo e é também fruto «dos vínculos tradicionais que unem as ilhas ao Saara Ocidental», uma antiga colónia espanhola de onde «mais de 15 mil canários foram desalojados quando o estado abandonou o território em 1975».

Para Melián, por esse motivo e por o arquipélago ter servido de refúgio para muitos saarauís em fuga da repressão exercida por Marrocos em quase cinco décadas de ocupação, o apoio à Frente Polisário, que luta pela independência do Saara Ocidental, é cada vez maior entre nas Ilhas Canárias.

Em Santa Cruz de Tenerife, o delegado da Frente Polisário nas Canárias, Hamdi Mansour, depois de agradecer a comparência, de representantes dos partidos Podemos, Esquerda Unida e Coligação Canárias, afirmou que um Governo progressista «não pode desvincular-se da sua responsabilidade histórica nesta situação», relata o canariasahora.

Segundo a mesma fonte, muitas famílias saarauís residentes na região juntaram-se ao protesto por um Saara livre, entre elas Naja, Chamanda, Ismail, três mulheres que trouxeram com elas os seus filhos e intervieram recriminando o Governo de Espanha por «ter vendido pela segunda vez o seu povo».

A decisão do primeiro-ministro Pedro Sánchez «não representa o povo espanhol, e muito menos o povo saarauí», declarou o presidente da Associação Saara-Canárias Concórdia, Salem Murtaj, que salientou o duplo critério utilizado por Sánchez na política internacional, nomeadamente aceitando a invasão de Marrocos no Saara enquanto apoia a Ucrânia contra a invasão russa: «na Ucrânia apoias a legislação internacional e no Saara apoias a ditadura marroquina», afirmou, sublinhando que o primeiro-ministro nem sequer contou com o apoio «dos seus sócios de Governo».

Causa saarauí tem amplo apoio na região

As forças políticas nas Canárias expressaram, neste sábado, em torno da questão do Saara Ocidental, um amplo consenso de apoio a uma solução negociada, que respeite o Direito Internacional e acate as decisões da ONU, incluindo a coligação governativa liderada pelo Partido Socialista das Canárias (PSC), escreve o canariasahora.

O presidente do governo regional, questionado sobre a imigração clandestina para as ilhas a partir de Marrocos, qualificou de «positiva» a «normalização» com aquele país, que tem nas mãos o controlo desse fluxo migratório, mas defendeu que una solução do conflito «que seja duradoura, justa e aceite por todas as partes», referindo-se à Frente Polisário e ao Reino de Marrocos.

Os parceiros dos socialistas no governo regional foram mais críticos para Pedro Sánchez. A Associação Socialista de Gomera declarou não compartilhar a «mudança radical e de última hora» do governo central. Podemos qualificou de «indecência histórica» a posição do primeiro-ministro espanhol, que acusou de se «pôr de joelhos» e de ceder à «chantagem» do Governo de Marrocos.

Do partido Nova Canárias vieram as críticas mais duras. O beneplácito do governo de Madrid à proposta de Marrocos para que a autonomia do Saara Ocidental se faça sob a tutela e soberania daquele país foi considerado por Nova Canárias como uma atitude «própria de um Estado sem princípios». O partido é um dos grandes defensores dos direitos do povo saarauí no arquipélago, tendo uma das suas militantes, Inês Miranda, sido expulsa há alguns meses pelo governo marroquino, junto a outros activistas da causa saarauí.

Na oposição, o Partido Nacionalista Canário, falou de «punhalada» a decisão de Madrid, a Comunidade Canárias pediu explicações ao Governo e até o Partido Popular (PP) local lamentou a mudança de rumo «sem consenso» e unilateral».

Deputados de diversas forças políticas estão a solicitar a comparência do primeiro-ministro espanhol no parlamento canário, para debater as suas posições favoráveis a Marrocos, tanto mais preocupantes quanto face à la «decisão unilateral e ilegal do reino alauita de ampliar a sua fronteira marítima, ocupando águas territoriais do arquipélago e do Sáhara».

Recorde-se que o arquipélago das ilhas Canárias fica a pouco mais de 100 quilómetros da costa africana, próximo a Marrocos e ao Saara Ocidental.

Um subsolo rico, um vizinho poderoso e um povo que não se rende

O subsolo do Saara Ocidental é muito rico em recursos naturais, com grandes jazidas de fosfatos, petróleo, gás natural e zircónio. É um grande exportador de areia para cimento, com milhares de toneladas a chegarem todos os anos às Canárias. As suas águas são ricas em pesqueiros.

Todas estas riquezas, cuja importância acresce no actual contexto de guerra económica, são exploradas não pelo povo saarauí mas por Marrocos, potência ocupante desde 1975.

O território do Saara Ocidental esteve sob o domínio espanhol até 1976 (Saara Espanhol), sendo já então cobiçado por Marrocos e pela Mauritânia. A partir de 1968 desenvolvem-se movimentos independentistas, seguindo a tendência da maioria dos povos e nações africanos. Nesse ano foi criado o Movimento de Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro.

Depois de manifestações em El Aiun, em 1970, que terminaram com fortes medidas repressivas, foi criada em Maio de 1973 a Frente Popular para a Libertação de Saguia el-Hamra e Rio do Ouro (Frente Polisário), que começou a luta armada contra Espanha.

Desde 1967 que a ONU colocou a Espanha a necessidade de proceder à descolonização do território, mas a disputa do mesmo entre Marrocos, Mauritânia e Espanha bloquearam soluções.

Finalmente o governo espanhol comunicou à ONU a intenção de promover um referendo de autodeterminação em 1975, o qual foi aprovado pela resolução 3458B de 10 de Dezembro de 1975 – que nunca foi cumprida mas permanece em vigor à luz do Direito Internacional

Entretanto, no mesmo ano, em Agosto, sob pressão dos Estados Unidos, o futuro rei de Espanha, Juan Carlos I, estabeleceu um acordo secreto com Marrocos pelo qual reconhecia a anexação do território em troca do reconhecimento pelos americanos do seu estatuto como rei.

Em Novembro de 1975 deu-se a invasão do Saara Ocidental por Marrocos e pela Mauritânia, que passaram a governar de facto o território com a Espanha, enquanto a Frente Polisário, apoiada pela Argélia, proclama a República Árabe Saarauí Democrática e inicia uma guerra de libertação contra os invasores.

A Mauritânia retira-se do território em 1979 mas Marrocos, apoiado no seu poderio militar, ocupa ainda hoje a maior parte do Saara Ocidental. A guerra do povo saarauí prossegue, apesar de isso, em condições militares muito difíceis, e uma faixa do território na fronteira com a Argélia contiunua nas mãos da Frente Polisário.