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O monstro que sequestrou a democracia (2)

O poder genuíno, em Portugal, esteve sempre e continua nas mãos de PS e PSD, em coligação ou numa alternância fraudulenta em regime semelhante ao de partido único, de partido-Estado.

O primeiro-ministro, António Costa, e o presidente do PSD, Rui Rio, falaram à imprensa após um encontro na residência oficial de São Bento, em Lisboa, 18 de Abril de 2018.
Na política portuguesa há um núcleo estrutural que permanece inabalável, ancorado na convergência de comportamentos e objectivos entre o PS e o PSD, a que às vezes chamam «Bloco Central» CréditosAntónio Pedro Santos / Agência LUSA

A tragédia do país que se perdeu no «jardim»

«Só deve obter-se informação de uma fonte fiável. A nossa é a única verdade»
Jacinda Ardern, ex-Primeira Ministra da Nova Zelândia (Trabalhista)

 

A classe política em Portugal, arrogante na sua mediocridade, megalómana na sua pequenez, sempre a querer mostrar-se na primeira fila dos desmandos que deixam o mundo à beira de uma catástrofe irrecuperável, não passa de um raminho mais ou menos irrelevante, mas muito irresponsável, de uma estrutura tentacular financeira, económica, militar e política que tem a ambição de tomar conta do mundo, transformando-o na sua quinta globalista.

Prepotente internamente, a classe política em Portugal é de uma subserviência irreprimível perante os gestores transnacionais, ao ponto de se tornar apátrida e vender à corrupta e ultraminoritária nata oligárquica globalista a dignidade, os interesses, as riquezas naturais, os recursos humanos, industriais, agrícolas e piscatórios, a sanidade ecológica, a própria cultura do povo e do país.

Para tentar apropriar-se do mundo, o aparelho tentacular imperial suprimiu o direito internacional e colocou no seu lugar a «ordem internacional baseada em regras», que são desconhecidas, variáveis e dependem dos humores das administrações dos Estados Unidos da América, país que gere esta monstruosa estrutura criminosa e sem lei.

A oligarquia globalista que engoliu Portugal como nação define-se a si própria como o «mundo ocidental», depositário único da civilização, dos direitos humanos e da democracia, não admitindo contraditório ou a existência de qualquer outro ordenamento mundial, ainda que sustentado pelo direito internacional centralizado na ONU. Daí a célebre e feliz frase de Borrell, figura exemplar da «política ocidental»: «a Europa (pode ler-se o Ocidente) é o jardim que a barbárie do resto do mundo pretende destruir». É neste «jardim» que Portugal anda perdido.

CréditosStephanie Lecocq / EPA

O que torto nasce…

Porque a formatação de uma classe política é volúvel por natureza, em Portugal a sua evolução também não tem sido linear desde Novembro de 1975, exibindo como marca indelével nada recomendável as condições golpistas que lhe deram vida.

No entanto, há um núcleo estrutural que permanece inabalável, ancorado na convergência de comportamentos e objectivos entre o PS e o PSD, a que às vezes chamam «Bloco Central»; uma aliança informal que dispensou pelo caminho os resquícios de ideologia quando se unificou à luz dos preceitos do Consenso de Washington, o diktat do neoliberalismo, o capitalismo selvagem, hoje a fórmula única e reconhecida de capitalismo. (Caro Professor John Maynard Kaynes, boa tentativa; porém, capitalismo e neoliberalismo são palavras diferentes para significar exactamente a mesma coisa e ambas são incompatíveis com qualquer inquietação ou programa social e humanista).

Outra característica da classe política portuguesa desde a sua génese é o facto de não integrar o PCP, o partido mais antigo do país, o único que lutou – e luta – contra o fascismo e que nunca deixou de se rever na dinâmica e nas conquistas populares alcançadas com a Revolução de Abril, defendendo-as em todas as circunstâncias. Nesta situação existe, por um lado, uma natural autoexclusão porque uma hipotética integração dos comunistas no circo político, tal como ele se comporta, exigiria destes a adopção da política predatória e autocrática do poder – uma impossibilidade absoluta. Por outro lado, é uma exclusão imposta pelas «obrigações» de Portugal para com os «seus amigos e aliados».

«[…] há um núcleo estrutural que permanece inabalável, ancorado na convergência de comportamentos e objectivos entre o PS e o PSD, a que às vezes chamam «Bloco Central»; uma aliança informal que dispensou pelo caminho os resquícios de ideologia quando se unificou à luz dos preceitos do Consenso de Washington»

Não é novidade, e hoje está mais do que demonstrado, como se abordará aqui em próxima ocasião, que a NATO – e a CEE/União Europeia por arrastamento – não permitem a aceitação de comunistas na área de governo, mesmo que ganhem eleições, aliás um princípio muito criativo da «democracia liberal». A hipótese não é académica: o Partido Comunista Italiano venceu umas eleições gerais e, em outras ocasiões, esteve muito próximo disso, o que levou o então primeiro-ministro, o democrata-cristão Aldo Moro, a aceitar o seu apoio para que o governo pudesse funcionar com maioria parlamentar. Depois disso, em Março de 1977, Aldo Moro foi assassinado pelas «Brigadas Vermelhas», um heterónimo dos serviços secretos militares italianos interligados com a Gládio, um exército terrorista clandestino da NATO, braço armado do anticomunismo e da ditadura neoliberal. Como já se escreveu em ocasiões anteriores: eles não hesitam em matar, como foi testemunhado em 1990, a propósito do caso Moro, pelo veterano político italiano Giulio Andreotti, várias vezes primeiro-ministro em representação da Democracia Cristã. As suas fundamentadas revelações sobre a selvática «estratégia de tensão» no país desenvolvida pela NATO nos anos setenta e oitenta do século passado, essencialmente contra os comunistas italianos, não deixam dúvidas sobre o que é a «democracia liberal», ou «ocidental», interpretada pela NATO. O respeito pela vida humana não é o limite.

A regra da segregação anticomunista imposta pela Aliança Atlântica não admite excepções. O entendimento muito conjuntural entre o PS e o PCP no quadro dos acordos que Paulo Portas, um ícone da faceta conspiradora e propagandista da classe política, qualificou como «geringonça», não constituiu qualquer «cedência» ou «distracção» da NATO porque não incidiu sobre a globalidade do processo governativo – como ficou demonstrado na ocasião do rompimento.

Quase todas as organizações políticas que passaram pela Assembleia da República integraram ou integram a classe política, a grande maioria em situação de alguma marginalidade em relação ao poder executivo, com excepção do CDS (agora substituído por uma hidra de duas cabeças – Salazar e Pinochet, Chega e Iniciativa Liberal) venerada pelo aparelho mediático, «democraticamente» acolhida e respeitada pela restante congregação, que não hesita em tentar cativá-la com ademanes de namoro. Há também os casos de organizações que servem como uma espécie de reserva, entram e saem da classe política, em amável cumplicidade, conforme as conveniências de umas e outra.

Créditos

Partido único, partido-Estado

O poder genuíno, porém, esteve sempre e continua nas mãos de PS e PSD, em coligação ou numa alternância fraudulenta em regime semelhante ao de partido único, de partido-Estado. As sobrevalorizadas «divergências» entre ambos com que os media nos entretêm, quase sempre em ambiente teatral, não interferem minimamente nas decisões de fundo do sistema de poder. E quando estão em causa deliberações de cariz económico e social, sobretudo contra o trabalho, os trabalhadores, os reformados e os desprotegidos em geral, a afinidade é completa, são gémeos impossíveis de distinguir porque a cartilha neoliberal, a que juraram fidelidade em vez da Constituição da República, assim o impõe.

«A regra da segregação anticomunista imposta pela Aliança Atlântica não admite excepções. O entendimento muito conjuntural entre o PS e o PCP no quadro dos acordos que Paulo Portas, um ícone da faceta conspiradora e propagandista da classe política, qualificou como «geringonça», não constituiu qualquer «cedência» ou «distracção» da NATO porque não incidiu sobre a globalidade do processo governativo – como ficou demonstrado na ocasião do rompimento»

Por isso, aquelas minudências adoradas pelos «politólogos» quando nos distraem com os seus joguinhos manobrando em tabuleiro imaginário as tendências de «esquerda» (o PS, obviamente), «extrema-esquerda» (o PCP, como dogma), «centro», «esquerda radical», «centro-esquerda», «esquerda-centro», «centro-direita», direita mais ou menos moderada ou extrema (mas nunca fascista, entenda-se) fazem parte das encenações recorrentes em que todos os participantes estão efectivamente de acordo mas, quando se enfronham seriamente no seu papel de «adversários políticos», conseguem parecer deveras engalfinhados. É a «política» da classe política para que se cumpram os preceitos «democráticos» e um pluralismo próprio da «democracia liberal» no qual os opinantes oficiais da grei em TV’s, rádios e jornais de «referência» pertencem esmagadoramente ao PS e ao PSD, ou então unicamente ao PSD e até ao agónico CDS. Por vezes, mas não com os «cachets» reservados aos mestres da adivinhação e da prestidigitação – iluminados videntes sabe-tudo que dispensam contraditório – abrem-se espaços de exibição para o Bloco de Esquerda e o Chega/Iniciativa Liberal. Haja pluralismo.

Desgastaram-se os rótulos partidários, apagou-se o pouco que restava de ideologia, a própria palavra «democracia» já quase não se ouve, os partidos com «vocação para governar» (Paulo Portas dixit) esbateram fronteiras entre si, a classe política instaurou o regime único, um partido operacionalmente único, um sistema económico-financeiro-político único – o capitalismo selvagem – o pensamento único, a opinião única, neste caso a partir do momento em que a comunicação social caiu globalmente no regaço privado, por generosidade do Estado, onde a chamada informação não passa de um simples artigo de consumo fabricado unicamente para dar lucro e fazer propaganda do poder. É a classe política em funções, arremetendo sem freios contra os interesses das pessoas e do país.

António Mexia, presidente da EDP, com o ex-ministro da Economia Manuel Pinho, na Casa da Musica, no Porto. 7 de Julho de 2006 CréditosEstela Silva / Agência LUSA

Um país arrasado pela «correcção democrática» de Abril

Nestas condições foi possível que todos os passos transformadores para erradicar o 25 de Abril fossem dados sem qualquer auscultação popular, sem o povo ser verdadeiramente informado do que estava a passar-se e quais as consequências. Assim aconteceu com a anexação pela CEE e depois pela União Europeia; com os tratados federalistas reduzindo Portugal ao papel de protectorado de entidades transnacionais não eleitas que extravasam o espaço europeu; com a substituição do escudo por uma moeda que continua a espalhar miséria entre os portugueses; com as privatizações fraudulentas e «amiguistas» de sectores base e históricos do aparelho produtivo nacional; com a venda a retalho das parcelas lucrativas da economia portuguesa; com a participação em guerras ilegais de agressão e a doação de armas a um regime que espezinha a democracia; com a liquidação da indústria e da agricultura portuguesas, cancelando deliberadamente o seu potencial por obediência ao diktat europeu; com o abandono da soberania e da independência nacional, inclusivamente perdendo o controlo sobre o conteúdo do Orçamento de Estado de cada ano; com a transformação antinacional do tecido social e económico português.

«No meio desta avalancha de medidas extremamente nocivas para a população em geral, a classe política assaltou e destruiu também a Reforma Agrária com um ódio demente, uma sanha pidesca e operações terroristas próprias do banditismo sociopata. […] O Alentejo, tratado desta maneira, deixou de ser o «celeiro de Portugal». Agora, os cereais, o pão e a alimentação em geral dos portugueses dependem quase totalmente de dispendiosas importações. Os bens alimentares tornaram-se vítimas dos caprichos do divino mercado, mais ainda quando este se «autoregula» ao ritmo de sanções idiotas, criminosas e ilegais»

No meio desta avalancha de medidas extremamente nocivas para a população em geral, a classe política assaltou e destruiu também a Reforma Agrária com um ódio demente, uma sanha pidesca e operações terroristas próprias do banditismo sociopata. Percebeu-se que a violência sem lei, a arrogância e a essência fascista dos sectores latifundiários e seus servidores nos centros de poder não tinham desaparecido; mantinham-se activos e prontos a restaurar métodos salazaristas nos campos do Alentejo e Ribatejo. Em 27 de Setembro de 1979, a GNR assassinou a tiro dois trabalhadores agrícolas na herdade de Vale do Nobre, no concelho alentejano de Montemor-o-Novo: José Geraldo «Caravela, de 57 anos, e António Casquinha, de apenas 17. Morreram da mesma maneira que Catarina Eufémia, abatida em Baleizão 25 anos antes, pela mesma GNR. Os métodos da «democracia ocidental» irmanaram-se com os da sua antecessora salazarista, na ocasião para aplicar a famigerada «lei Barreto», uma obra da governação do dr. Soares em aliança com os gangues de latifundiários. O antigo ministro da Agricultura, António Barreto, transformado entretanto, e com toda a justiça, numa espécie de filósofo oficial do regime, comentou em 2010 os acontecimentos de 1979 explicando que «foi preciso usar alguma violência controlada». Recordando a velha máxima salazarista que aconselhava «um safanão dado a tempo», ministros de Salazar não diriam melhor.

O Alentejo, tratado desta maneira, deixou de ser o «celeiro de Portugal». Agora, os cereais, o pão e a alimentação em geral dos portugueses dependem quase totalmente de dispendiosas importações. Os bens alimentares tornaram-se vítimas dos caprichos do divino mercado, mais ainda quando este se «autoregula» ao ritmo de sanções idiotas, criminosas e ilegais. Que a classe política adopta em piloto automático, seguindo as ordens dos seus superiores mesmo sabendo que agravam ainda mais a vida difícil da maioria das famílias.

Em paralelo, este processo transformador para «corrigir» os «excessos» de Abril desenvolveu-se ultrajando leis básicas da República, como a lei eleitoral e, sobretudo, a Constituição da República, deliberadamente desprezada – um fortíssimo testemunho do sequestro a que a democracia está submetida pela classe política.

Créditos / ICIJ

A grande farra

A classe política é o poder, ou melhor, apropriou-se dos instrumentos de poder e da própria democracia, transformada assim em caricatura de si própria, evocada e invocada com modos circunspectos ou cinicamente risonhos em discursos falsos e manipuladores. As eleições têm um invólucro democrático dentro do qual o partido-Estado, recorrendo ao universo dos seus agentes mediáticos, propagandistas, financeiros e aos mecanismos que pôs ao seu serviço no aparelho de Estado, mina as regras eleitorais de modo a impor seus eleitos, «vendidos» como detergentes a cidadãos iludidos. Para que a margem de erro seja mínima em relação aos resultados pretendidos, o sistema de poder recorre a sondagens habilidosas, algumas sem pudor em martelar as estatísticas. Os votos são tratados como lixo, os programas partidários e a propaganda da classe política são praticamente ilegíveis e carregados de impossibilidades, promessas ocas, inutilizáveis até como papel sanitário.

A classe política é o porreirismo, o amiguismo, o compadrio, o nepotismo, a corrupção automatizada, a cleptomania incurável, a mentira como hábito, a mistificação como inerência, a hipocrisia como estilo de comunicação, a burla e a crueldade sociais como sistema. Há assentos na classe política que são transmissíveis de geração em geração dentro da mesma família, mesmo que o rótulo político seja diferente. As transferências dentro da mistela partidária processam-se consoante o sentido de oportunidade e de previsão de cada qual quanto a cargos ambicionados quer no governo ou nas estruturas do aparelho de Estado, agora usado, para todos os efeitos, como se fosse um modesto balcão criado para servir e financiar a soberana iniciativa privada.

Há centenas de milhões de euros e dólares nos cofres governamentais para dar ao nazi Zelenski ou investir nas «jornadas da juventude», mas os salários e pensões aumentam míseros soldos que nem sequer fazem comichão à inflação. Os trabalhadores deixaram de o ser, promovidos a «colaboradores», espécie de voluntários empenhados na expansão e riqueza da comunidade empresarial, de braço dado com os patrões mas sem horário, família e vida própria, devotados à nobre causa patronal em troca de esmolas concedidas por boa vontade, à qual é devida gratidão e obediência.

As misérias dos casos TAP, Espírito Santo, Sócrates, as traficâncias nos processos de privatização, as falências bancárias fraudulentas, as riquezas instantâneas aceites como milagres ou «jeito para os negócios», os contratos públicos por ajuste directo estabelecidos com amigos, compadres e parentes, as gigantescas burlas contra os consumidores permitidas aos oligarcas do comércio alimentar, as grandes colecções privadas de arte com origens misteriosas mas patrocinadas e «mecenarizadas» pelo Estado, os testas de ferro de membros do governo e os membros do governo servindo de testas de ferro e muitos outros fenómenos afins são o espelho da vida real no interior da bolha tóxica da classe política.

«Há assentos na classe política que são transmissíveis de geração em geração dentro da mesma família, mesmo que o rótulo político seja diferente. As transferências dentro da mistela partidária processam-se consoante o sentido de oportunidade e de previsão de cada qual quanto a cargos ambicionados quer no governo ou nas estruturas do aparelho de Estado, agora usado, para todos os efeitos, como se fosse um modesto balcão criado para servir e financiar a soberana iniciativa privada»

As sessões de inquérito das comissões parlamentares conduzem-nos a mundos do absurdo, ao universo assombroso dos súbitos surtos de imbecilidade e amnésia, dos silêncios fantasmagóricos, da mediocridade cavalgando através dos atalhos sombrios de uma classe política onde se preza a «transparência» como nenhum outro bem. E nada acontece neste filme de vampiros, nada tem consequências, a verdade parece mentira e a mentira transforma-se em verdade; a comunicação social explica tudo e o seu contrário desde que a mensagem seja a mais soporífera possível para manter o «povo sereno» – tudo está bem, «vai correr tudo bem».

Na classe política uma mão lava a outra, há cargos reservados para quem os há-de merecer em função de sujeiras e falcatruas, a ética é uma parvoíce e os princípios uma estúpida inutilidade.

Nos cenários parlamentares e nos palcos mediáticos assistimos a intensos debates, acesas linhas divergentes de argumentação, por vezes não falta o insulto sibilante, a ameaça insidiosa sobre podres que poderão surgir à luz do dia; há berros, juras, murros na mesa, zangas para sempre, parece que se discute o futuro do país quando afinal estas cabecinhas inquinadas de quem afirma representar-nos sabem muito bem o que querem dele, de preferência já hoje ou amanhã para somar às bem-aventuranças de ontem. É a grande farra da impunidade.

Sessão solene comemorativa dos 47 anos da Revolução de 25 de Abril na Assembleia da República em Lisboa, a 25 de Abril de 2021. Em 25 de Abril de 1974, um movimento de capitães derrubou a ditadura fascista mais longa da Europa, num golpe militar que, com o povo nas ruas, se transformou naquela que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos CréditosAntónio Cotrim / Agência Lusa

Amigos para sempre

Uma vez encerrados os tempos regimentais para que se cumpram as tarefas da classe política tudo volta a ser como se nada tivesse acontecido. Inimigos irreconciliáveis dos dois ou mais partidos «rivais» confraternizam poucas horas depois nas penumbras de seitas mais ou menos secretas, ou ajustando aventais ou sangrando na heroicidade masoquista do cilício; outros que ameaçaram esmurrar-se sob as bandeiras dos respectivos partidos irão reencontrar-se na reunião do Conselho de Administração do banco outrora público ou da lustrosa empresa privada que há pouco o Estado subsidiou, cargos que partilham fraternalmente por mútua nomeação partidária e com recompensas financeiras bastante agradáveis; há também os que irão comungar ombro-a-ombro na eucaristia dominical, ou partilhar os greens de «gólf» e depois, quiçá, rever-se pela noite fora usufruindo dos calores de virtuosas festas privadas; alguns degustarão iguarias e paladares vinícolas raros no camarote privado comum onde assistem aos jogos do seu clube.

Muitas e muitos adversárias e adversários políticos também partilham frequentemente as reuniões das direcções de oportunas e convenientes fundações criadas e movidas por uma diversidade de respeitáveis objectivos e intenções, além de proporcionarem o investimento de dinheiros com origens muito ou nem tanto conhecidas.

A confraternização de intrépidos adversários políticos pode estender-se durante incursões nocturnas através de ruas urbanas em auxílio piedoso de pessoas sem-abrigo, famintas, despejadas de casa e do emprego, enfim as infelizes vítimas da sorte madrasta, talvez da vontade inexplicável de Deus, nunca por acção da desumanidade da classe política, das barbaridades governativas – ou seja, deles próprios.

«Considerando-se a proprietária da democracia, a classe política silencia e persegue as opiniões que não cabem nos seus limites de tolerância próximos de zero; defende os «direitos humanos» não segundo um conceito universal mas os aplicáveis apenas ao «Ocidente», acima de tudo os das minorias privilegiadas a quem serve. E desrespeita o trabalho e os trabalhadores, sobretudo quando podem servir de estorvo à farra de corrupção incentivada pela orgia em redor do casino financeiro, mola real do neoliberalismo»

A classe política, com as suas fissuras muito mais de índole pessoal, normalmente ocasionadas por desencontros em matéria de ambições e ganância do que relacionadas com divergências «ideológicas» ou «estratégicas» de cariz político-partidário, funciona como um clube privado onde dispõe em benefício próprio dos serviços do Estado e dos cidadãos, não ignorando que podem estar a burlar o país e as pessoas. O hábito e a rotina acabam por eliminar quaisquer resquícios de consciência que possam ter aflorado num ou noutro caso. Mas como diz o povo, «o que mais custa é a primeira vez».

Considerando-se a proprietária da democracia, a classe política silencia e persegue as opiniões que não cabem nos seus limites de tolerância próximos de zero; defende os «direitos humanos» não segundo um conceito universal mas os aplicáveis apenas ao «Ocidente», acima de tudo os das minorias privilegiadas a quem serve. E desrespeita o trabalho e os trabalhadores, sobretudo quando podem servir de estorvo à farra de corrupção incentivada pela orgia em redor do casino financeiro, mola real do neoliberalismo. Por alguma razão o tentacular aparelho globalista neoliberal deixou praticamente de produzir riqueza material, substituindo-a «ecologicamente» pela virtualidade da especulação financeira, com os riscos inerentes principalmente para quem acaba sempre por sofrer as maiores consequências das hecatombes bancárias e bolsistas.

A classe política não reconhece qualquer expressão de vontade democrática que seja exterior aos seus padrões dogmáticos e corrompidos. Estendeu um manto de autoritarismo e controlo sobre a sociedade, reduziu o ser humano a uma peça de uma engrenagem temível à qual a propaganda e a manipulação de mentes e consciências atribui todas as virtudes quando, afinal, concentra as práticas e comportamentos cruéis que violentam o ser humano e degradam a sociedade.

Não pode haver democracia plena sem dissolver a classe política como monstro corporativo nacional e transnacional. É uma acção de higiene e saúde pública, de restauração da cidadania, da democracia e da liberdade, uma urgência que compromete todos nós, cidadãos. Ou então ela sequestra por completo as nossas vidas, sem remissão.

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