Sempre que, ao longo das últimas décadas, somos confrontados com mais uma daquelas infindáveis decisões absurdas, quase sempre desumanas, que são próprias daquilo a chamam democracia liberal – outrora ocidental –, lembro-me amiúde das palavras do saudoso e inesquecível cantor-poeta antifascista José Mário Branco, quando ele, na sua desencantada mas ainda esperançosa «Chulinha», nos recorda: «Quando o mês de Novembro se vingou… Houve aqui alguém que se enganou».
Foi a vingança, o reviralho, como se diz na tradição política portuguesa; foram os enganos, mais propriamente as despudoradas mentiras, que trucidaram os ideais nobres do 25 de Abril de 1974 ao longo dos 50 anos que agora assinalamos.
Houve enganos nossos, é certo. Ou melhor, talvez ilusões desfeitas, uma confiança desmedida – compreensível depois dos anos de chumbo salazaristas – numa dinâmica avassaladora e imparável da democracia e do progresso social para recuperar tanto tempo perdido e sofrido.
«O inimigo atacou forte por aí. A par da conspiração permanente nacional e internacional montou uma poderosíssima estratégia de engano, falsificação e mentira.»
Talvez não seja necessário chegar ao ponto de afirmar que o povo, correndo solto através dos caminhos abertos por Abril, foi vítima desse excesso de confiança, de uma euforia quantas vezes imprudente perante inimigos traiçoeiros, poderosos, com mil caras e séculos de experiência, total ausência de princípios e um assanhado desprezo pelas pessoas.
O povo, de facto, primeiro iludiu-se, enganou-se, não cuidou de se defender, ao mesmo tempo que avançava, expôs-se àquela espécie de inocência traiçoeira que lhe garantia um futuro melhor apenas por ter a razão, a justiça e a História ao seu lado.
O inimigo atacou forte por aí. A par da conspiração permanente nacional e internacional montou uma poderosíssima estratégia de engano, falsificação e mentira. Senhor de um poder sem fronteiras e suficientemente consolidado para o efeito, foi transformando a incompleta derrota de Abril em sucessivas vitórias, a primeira das quais em Novembro de 1975, o primeiro e decisivo passo da vingança contra a democracia.
«Houve realmente alguém que se enganou. Mas houve, principalmente, um povo deliberada e metodicamente enganado.»
Vingança contra uma democracia real que, para o ser, tem de ser antifascista. Ora, a democracia que temos não é antifascista, e não só por haver terroristas bombistas de 1975 reciclados em dignos deputados da República; mas, e sobretudo, porque o sistema a que chamam democracia liberal já nem se incomoda a disfarçar os instintos fascistas em gestos cada vez mais frequentes praticados por uma classe política concebida em Novembro desse ano para usurpar o poder do povo.
Houve realmente alguém que se enganou. Mas houve, principalmente, um povo deliberada e metodicamente enganado. A grande mentira que pesa sobre nós invoca o 25 de Abril contra o 25 de Abril, corrompe a democracia em nome da democracia e pode ufanar-se do seu maior feito: virar grande parte do povo contra o 25 de Abril original, aquele sistema social e político definido e posto em prática pelos militares revolucionários e logo então agarrado pelo povo como coisa sua. O 25 de Abril autêntico, que as gerações de hoje desconhecem.
O que resta de um país…
A democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando. «A política, na sua ‘dignidade, utilidade e fecundidade’ não pode ser asilo de incapazes (…) A política é para os políticos» Novembro pariu um monstro: a classe política. A «classe política», como ela própria se define com uma presunção assente em vocação inquestionável, direito natural, pergaminhos herdados de mil e uma linhagens sagradas, imaculados dotes democráticos – e a prosaica ganância de poder, deve acrescentar-se – começou a ganhar a forma que hoje ostenta em Portugal a partir do momento em que foi dada a primeira grande machadada na dinâmica popular criada pela Revolução de 25 de Abril de 1974. O 25 de Abril e o derrube do fascismo não resultaram da acção de uma qualquer classe política. Foram obra do Movimento das Forças Armadas e da mobilização imediata, espontânea e fulgurante do povo, precisamente para pôr termo aos desmandos de uma classe política, a salazarista, que tratou o país e as suas gentes como coisas próprias e sem prestar contas a ninguém. As transformações por que passou a sociedade portuguesa durante os meses seguintes ao Movimento dos Capitães também não precisaram de qualquer classe política. A iniciativa popular e as linhas programáticas definidas pelos militares do Movimento das Forças Armadas traçaram caminhos, muitos deles inovadores, para estabelecer uma democracia de todos e para todos na qual a vontade do povo nunca deixasse de contar e de estar presente. Abriam-se as portas de uma democracia coerente com a sua definição: o poder do povo. «O 25 de Abril e o derrube do fascismo não resultaram da acção de uma qualquer classe política. Foram obra do Movimento das Forças Armadas e da mobilização imediata, espontânea e fulgurante do povo, precisamente para pôr termo aos desmandos de uma classe política, a salazarista, que tratou o país e as suas gentes como coisas próprias e sem prestar contas a ninguém» O período em que a participação popular determinou o essencial das decisões políticas e económicas dispensou, portanto, qualquer mecanismo de governação que se aparentasse com uma «classe política». Quando esta ressurgiu como o único centro de poder no qual o povo se limita a delegar, sem depois ter mais qualquer intervenção ou controlo no desenvolvimento e desfecho do processo de decisão, a democracia encontrou uma barreira tanto mais autoritária quanto mais fortes forem a luta e as reivindicações populares. A classe política, como demonstra a história dos seus comportamentos, afunila a democracia, põe-na «a salvo» da vontade do povo, acabando rotineiramente por asfixiá-la. Fecha as portas à genuína democracia. A liberdade reencontrada graças à Revolução de Abril foi o instrumento essencial da mudança política que associou o pluralismo dos partidos à componente militar libertadora e à criatividade popular, manifestando-se esta através de uma teia de associações de base vocacionadas para intervirem, a vários níveis, na estruturação do novo poder, na recriação do Estado, na transparência das empresas e nas tomadas de decisão. Porque a democracia real não se consuma sem participação e intervenção popular. A democracia tem de ser, naturalmente, participativa. E participar, para que não haja equívocos, não é apenas votar de vez em quando. Uma particularidade notável dessa fase foi o facto de os partidos políticos recém-criados – e outros que não tinham então mais de um ano de vida – sentirem ainda necessidade de reflectir as vontades dos seus militantes e apoiantes, vendo-se assim obrigados a associar a própria sobrevivência e a conquista de espaço político-eleitoral à genuína auscultação das bases. O impacto social do 25 de Abril fez com que os recém-criados partidos tivessem uma componente popular significativa – ainda que a contragosto dos seus fundadores e dirigentes, que preferiam massas eleitorais sossegadas, acriticamente seguidoras e obedientes, de preferência pouco ou nada esclarecidas. «Na sequência do 25 de Abril, em suma, desenhava-se uma democracia em que os partidos seriam uma parte essencial da estrutura de decisão, mas não os donos absolutos do poder. No entanto, a componente vingativa e revanchista que abocanhou o golpe de 25 de Novembro de 1975 cortou cerce essa perspectiva, apesar dos apelos à moderação lançados por alguns militares lúcidos. Anunciava-se já o embrião de uma nova classe política» Não era ainda chegado o tempo, que não demorou, em que os aparelhos dos novos partidos passaram a decidir tudo em confraria restrita, marginalizando a base militante, até extingui-la. A transformação gradual para alcançar a «estabilização» funcional dos mecanismos de decisão de cada um deles nem sempre foi e é pacífica, naturalmente, porque o número de cargos públicos, privados e partidários é sempre menor do que o número de candidatos às mordomias – e quase nunca chega para satisfazer a gula das clientelas. Na sequência do 25 de Abril, em suma, desenhava-se uma democracia em que os partidos seriam uma parte essencial da estrutura de decisão, mas não os donos absolutos do poder. No entanto, a componente vingativa e revanchista que abocanhou o golpe de 25 de Novembro de 1975 cortou cerce essa perspectiva, apesar dos apelos à moderação lançados por alguns militares lúcidos. Anunciava-se já o embrião de uma nova classe política. Foi possível identificar prematuramente os traços da grande família política em formação, sequiosa de poder, na manifestação anti-25 de Abril realizada na Alameda Afonso Henriques alguns dias antes do golpe de 25 de Novembro de 1975 e já fazendo parte da conspiração. PS, PSD, CDS, grupúsculos «maoístas» e sectores terroristas órfãos do salazarismo como o ELP e o MDLP arrebanharam multidões para o evento, atemorizando-as com a iminência de uma «ditadura comunista» – sem dúvida, as provocações de bandeira falsa e as teorias da conspiração não são apenas coisas de hoje. O ambiente criado nessa noite, contudo, parecia mais a irrupção vingativa de um conclave de espectros salazaristas do que os primeiros passos de uma nova classe política vocacionada para «institucionalizar a democracia». Esse contexto sombrio marcou desde logo, e muito pela negativa, o carácter da classe política agora em funções: arrogante, intolerante, irresponsável, culturalmente indigente, vingativa, de um cinismo cruel e uma hipocrisia doentia, mentirosa contumaz, permanentemente tentada pelo autoritarismo interno e a subserviência externa. Os últimos anos expuseram, porém, um traço de carácter ainda mais desumano e repugnante da classe política: o segregacionismo, a xenofobia e o racismo, que andaram disfarçados durante muito tempo em discursos e atitudes cobardemente demagógicas embrulhadas em virtuosas palavras. O tratamento criminoso e mortal que é dado aos refugiados africanos e do Médio Oriente tentando escapar das guerras coloniais/imperiais e das consequências trágicas de séculos de colonização ocidental pôs finalmente a nu a classe política que se define como farol da civilização. «‘A política para os políticos’ tornou-se, de modo contumaz e propagandístico, o slogan da tirania fascista retomado pela remoçada estrutura governante; e o povo, deixando-se anestesiar por um conformismo indutor de uma inércia auto-flageladora, apressou-se a engolir esse anzol da propaganda, cumprindo-se assim um primeiro passo para o apodrecimento do futuro: a clivagem entre o país político e o país real. Foi o momento em que voltaram a roubar a voz ao povo» O cenário ficou ainda mais revelador quando chegou a guerra da Ucrânia, em 2013/2014, ocasião em que o mesmo «Ocidente» apostou o bem-estar dos seus cidadãos, a economia, a vida de centenas de milhares de pessoas e até a sobrevivência do planeta Terra na defesa de um regime articulado por saudosos de Hitler, racista e supremacista, empenhado em «matar tantos sub- humanos quanto puder». Será possível apoiar militarmente e sem reservas, em nome da «democracia», um regime destes sem ser cúmplice das atrocidades que pratica? Naquela já longínqua noite de Novembro de 1975, o dr. Mário Soares e o embaixador Carlucci, dos Estados Unidos da América – em vésperas de se tornar director da CIA –, supervisionaram o ajuntamento golpista da Alameda Afonso Henriques. Olhando o processo em retrospectiva histórica deve dar-se-lhes o crédito de serem os pais da classe política que modelou e gere actualmente este protectorado a rogo dos Estados Unidos e seus satélites. Indubitavelmente uma certeira relação de causa e efeito. Bastou chegar ao primeiro governo constitucional, com o dr. Soares à cabeça, uma consequência lógica e merecida do processo de «correcção» do 25 de Abril, para a expressão «classe política» voltar a ser invocada como instrumento normal, imprescindível e único do poder político, agora sim considerado democrático. E para que, desde logo, a sua afirmação fosse plena e sem estorvos era necessário devolver os militares às casernas e o povo ao seu redil de rebanho obediente e sossegado. «A política para os políticos» tornou-se, de modo contumaz e propagandístico, o slogan da tirania fascista retomado pela remoçada estrutura governante; e o povo, deixando-se anestesiar por um conformismo indutor de uma inércia auto-flageladora, apressou-se a engolir esse anzol da propaganda, cumprindo-se assim um primeiro passo para o apodrecimento do futuro: a clivagem entre o país político e o país real. Foi o momento em que voltaram a roubar a voz ao povo. Com os militares nos quartéis, de onde – acabado o tempo de nojo da guerra colonial – foram convidados a sair para fazer guerras coloniais/imperiais da NATO na Jugoslávia (incluindo Kosovo), Iraque, Afeganistão, África Central e o mais que ainda receamos estar para ver; com o povo no seu lugar de governado, alheado, quanto muito silenciosamente revoltado – como antigamente – e muitas vezes sem saber o que fazer com o boletim de voto sazonal, a classe política sentiu condições para avançar no sentido que sempre desejou e para o qual nasceu: enterrar o 25 de Abril. Na altura chamaram a este processo o do ingresso do país na «democracia ocidental», que era a sua «vocação natural» na antecâmara de uma «desejada» integração europeia – considerada «desígnio nacional» sem que aos cidadãos fosse dada qualquer oportunidade para se pronunciarem sobre isso. A Europa «estava connosco», garantiam os chefes e a propaganda do regime, pelo que, para o comum dos portugueses, embalado na vaga de «orgulho» e de gratidão devida à aceitação na elite dos poderosos, não havia perigo de o país cair numa armadilha, que afinal já estava montada e para a qual foi traiçoeiramente empurrado – pela classe política. «À «democracia ocidental» chama-se hoje «democracia liberal», o que, a bem dizer, para o cidadão tanto faz porque a repercussão das suas vontades, necessidades e interesses nas decisões nacionais continua a ser a mesma: nula. Limita-se a sofrer os efeitos do capitalismo selvagem, o neoliberalismo, contidos na inocente e tão prometedora como mistificadora palavra «liberal» A desnecessária adjectivação da democracia e do regime foi também uma inerência da pertença à NATO, organização de que esta nova «democracia ocidental» fazia parte desde os tempos em que era uma ditadura fascista. Uma transição sem nada de intrigante ou contraditório, sabendo nós como a NATO se comporta. À «democracia ocidental» chama-se hoje «democracia liberal», o que, a bem dizer, para o cidadão tanto faz porque a repercussão das suas vontades, necessidades e interesses nas decisões nacionais continua a ser a mesma: nula. Limita-se a sofrer os efeitos do capitalismo selvagem, o neoliberalismo, contidos na inocente e tão prometedora como mistificadora palavra «liberal». Assim sendo, nenhuma pessoa precisa de invocar, e muito menos reclamar, os seus desejos e direitos porque, graças à classe política e aos seus apêndices, isso seria uma desnecessária perda de tempo. Não ouvimos assegurar a toda a hora, desde o presidente e o primeiro-ministro ao mais engalanado pivot de televisão ou o mais douto comentador e analista, que «os portugueses sabem…», «os portugueses conhecem…», «os portugueses estão cientes…», «os portugueses desejam»… «os portugueses nunca permitiriam…», «os portugueses jamais perdoariam»? Ora se tão poucos sabem tanto de tantos, se a elite do regime conhece de maneira tão segura – sem enganos nem dúvidas – o que pensam e querem os portugueses, nada há nada de mais cómodo para o povo. Nem precisa de abrir a boca, basta-lhe de vez em quando deitar o papelinho na urna para garantir a «legitimidade da democracia». Deve depois recolher-se ao permanente estado sonâmbulo e salazarento onde se aprende que «a minha política é o trabalho», mesmo que seja precário, sem direitos ou nem sequer exista. «[...] se tão poucos sabem tanto de tantos, se a elite do regime conhece de maneira tão segura – sem enganos nem dúvidas – o que pensam e querem os portugueses, nada há nada de mais cómodo para o povo. Nem precisa de abrir a boca, basta-lhe de vez em quando deitar o papelinho na urna para garantir a «legitimidade da democracia». Deve depois recolher-se ao permanente estado sonâmbulo e salazarento onde se aprende que «a minha política é o trabalho», mesmo que seja precário, sem direitos ou nem sequer exista» A classe política, enfim, está hoje onde sempre quis estar, exercendo o direito exclusivo que considera pertencer-lhe: o do poder absoluto. Pura ilusão, como ela mesma sabe. O que existe é uma estratégia de engano burilada com a cumplicidade, o conhecimento perfeito do seu papel e a fidelidade inteira da própria classe política à voz do verdadeiro dono: o poder financeiro, especulativo e económico transnacional e globalista, o carrossel do neoliberalismo. A «democracia liberal» extinguiu o povo; é somente um instrumento operacional da ditadura financeira e económica que ainda sonha em governar o mundo inteiro. Tudo decorre, com os inevitáveis mas sempre sanáveis desaguisados, num ambiente de grande família, ampliada graças aos parentescos com o aparelho mediático convenientemente privatizado (incluindo o que restou mantendo a falsa chancela de «público»), as associações patronais (das quais faz parte um «sindicato» inventado para as servir), os padrinhos da economia e os barões das finanças, os lordes da advocacia, os purpurados da igreja (a Concordata continua em vigor?), sem esquecer os torcionários da troika, os sociopatas do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia. Uma família muito alargada, afinada e unida na convergência das suas práticas; uma grande família ou, levando em consideração a teia mafiosa onde se move, uma verdadeira famiglia, una vera famiglia. A classe política molda-se como uma medusa, é um corpo monstruoso e viscoso que se adapta à dinâmica das circunstâncias, à cadência dos oportunismos, às medidas que considera necessárias para atingir os objectivos, desde a liberalidade rigorosamente vigiada, a que chama «liberdade», até ao autoritarismo puro e simples, o fascismo, se for preciso. Esta versatilidade, fruto da instabilidade em que o mundo se move, tem aspectos dignos de uma sumária reflexão. Existindo o liberalismo, a casta política detectou a ameaça do seu suposto contrário, o «iliberalismo». Não existem elementos suficientes para apurarmos se a classe política transnacional entende ou não o «iliberalismo» como uma forma de democracia, talvez transviada, inquinada, atrevida no sentido em que se permite desafinar no seio do coro bem comportado. Percebe-se, apreciando objectivamente o fenómeno, que afinal se trata de fazer a mesma política, recorrendo a métodos talvez menos ortodoxos, para alcançar os mesmos resultados – o primado da economia neoliberal. Porém, esta conclusão não é absoluta, ou toda a regra tem excepção. Por exemplo, sendo o regime da Hungria «iliberal», da mesma maneira que o da Polónia – aproximando-se este mais do fascismo – as cátedras onde se avalia a pureza «liberal» são mais tolerantes e totalmente cooperantes com o sistema de Varsóvia. Haverá iliberalismo liberal? Deixemos a reflexão por aqui. Não pode esperar-se coerência nos vigilantes do «liberalismo» quando afinal este sistema arrisca a própria existência numa aliança guerreira com a governação nazi ucraniana, que considera um «modelo de democracia». Se ainda houver quem ache este quadro enigmático, acredite que é facílimo de decifrar. O que faz mover a classe política, no fundo, é o desprezo pelas pessoas, a sua utilização como instrumentos para explorar e deitar fora. No cumprimento dessa tarefa predatória está a razão de ser da sua existência e, por conseguinte, a sua sobrevivência. A classe política é inimiga do povo e permite-se recorrer a todos os métodos que sejam necessários para o conter anestesiado. De modo a que a especulação e a roda do casino financeiro não tenham sobressaltos mesmo quando chegam as crises. O povo será então resgatado da inexistência e chamado a resolvê-las. A este processo de tortura chama-se «austeridade» – que aliás se tornou permanente. «O que faz mover a classe política, no fundo, é o desprezo pelas pessoas, a sua utilização como instrumentos para explorar e deitar fora. No cumprimento dessa tarefa predatória está a razão de ser da sua existência e, por conseguinte, a sua sobrevivência. A classe política é inimiga do povo e permite-se recorrer a todos os métodos que sejam necessários para o conter anestesiado» Como entidade informe, a classe política não coincide com o universo político, embora conspire em permanência para que assim seja. E a «política» praticada pela «classe», apresentada como uma ciência extraída de uma espécie de mundo ocultista e apenas acessível aos «eleitos» – não confundir com os escolhidos pelo povo se as eleições fossem verdadeiramente livres –, nada tem a ver com uma política genuína: a gestão do nosso dia-a-dia pelo povo, em nome do povo e nos interesses do povo. Uma política em que a simplicidade do bom senso, o conhecimento da vida e da dinâmica social, a experiência acumulada de lutas e conquistas ao longo de séculos e a vontade de combater as desigualdades e desumanidades bastam para desmascarar as engenhocas mistificadoras e as ficções enganosas próprias de uma falsa ciência, tóxica, fundamentada em realidades virtuais ou simplesmente desejadas por aprendizes de feiticeiros. Em boa verdade, os «politólogos», na sua esmagadora maioria, são analfabetos quando o que está em causa é realmente a política ao serviço dos cidadãos e da dignidade das suas vidas, de acordo com os interesses da esmagadora maioria das pessoas. Os «politólogos» a quem deram voz pública como professores do povo são, afinal, videntes narcísicos, íntimos da verdade absoluta e que, abolindo as pessoas das suas fábulas académicas – a Academia reflecte cada vez mais a cultura embrutecedora e exploradora que é um dos pilares da classe política – conhecem em cada momento, porque se «mestraram» ou «doutoraram» para isso, o que interessa ao cidadão, o que este deseja e como pode alcançá-lo. Desde que não seja, como é óbvio, um looser, um perdedor, porque então a «meritocracia» tecnocrática fá-lo-á arrepender-se de estar vivo. Não, em definitivo a política não é para os políticos; é das pessoas e para as pessoas. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
O monstro que sequestrou a democracia (1)
Quando roubaram outra vez a voz ao povo…
Gonçalves Rapazote, deputado da União Nacional e ministro do Interior do regime fascista, com responsabilidade pela PIDE. Discurso de 1965O desenvolvimento de una vera famiglia
Dissolveram-se os rótulos, unificou-se a opinião
Contribui para uma boa ideia
Avaliar a envergadura da mistificação nada tem de abstracto. Um olhar sobre o Portugal de hoje revela o pouco que resta de um país sonhado naqueles dias entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Um período vibrante, criativo, patriótico, solidário, difamado por narrativas obscenas transformadas em história oficial por uma classe política venal, estrangeirada – apátrida, mesmo – e sempre tendencialmente corrupta; e uma comunicação social assente na mentira, na manipulação dos factos, no controlo da opinião pública e mestre na arte de anestesiar os cidadãos. Convergindo ambas num regime de democracia adulterada que não admite alternativa, cada vez mais diaboliza o contraditório e que, com o afã de explicar às novas gerações um 25 de Abril que nega e calunia a realidade do 25 de Abril, encoraja a ascensão gradual e metódica do velho e novo fascismo; enquanto persegue sem pudor, e sem limites, as forças consequentemente antifascistas com uma sanha que o próprio Salazar não desdenharia.
Do longo combate ao espírito real do 25 de Abril e às transformações sociais alcançadas nos quase 600 dias de revolução resta hoje uma entidade nominalmente designada Portugal, um protectorado da União Europeia impedido de utilizar ferramentas de governação indispensáveis a um Estado independente; um apêndice da aterradora máquina de guerra expansionista do império; um minúsculo território a que a partilha de interesses da oligarquia transnacional que exerce o poder no chamado mundo ocidental atribuiu o papel de reserva turística – depois de destruído e vendido praticamente todo o património produtivo do país.
Houve aqui alguém que nos enganou, a mesma casta que hoje nos governa e que, nos idos de Novembro de 1975, logo se apressou a exigir o regresso dos militares aos quartéis uma vez consumado o golpe, tratando o MFA e o Conselho da Revolução como excrescências incompatíveis com o modelo de regime, dito democrático, que pretendia instaurar – e instaurou.
«Houve aqui alguém que nos enganou, a mesma casta que hoje nos governa e que, nos idos de Novembro de 1975, logo se apressou a exigir o regresso dos militares aos quartéis uma vez consumado o golpe, tratando o MFA e o Conselho da Revolução como excrescências incompatíveis com o modelo de regime, dito democrático, que pretendia instaurar – e instaurou.»
Uma casta que se autodenominou classe política, que usa e abusa do espaço de liberdade de actuação que lhe foi aberto pela coragem antifascista dos militares revolucionários – e que nunca teria ousado dar o corpo ao manifesto para derrubar o salazarismo. Pelo contrário, na sua concepção, na actuação conspirativa e golpista foi mais um instrumento da CIA, com os indispensáveis colaboracionistas e agentes internos, naquela que terá sido uma das primeiras e mais bem conseguidas revoluções coloridas do império.
O êxito alcançado como que entranhou o espírito golpista no tecido da hoje chamada «democracia liberal» e do qual tivemos recentemente dois exemplos, apenas com dois anos de intervalo, através de uma mistela envenenada amalgamando o aparelho judicial e órgãos de poder, com destaque para o chefe de Estado. Manobras que culminaram na realização de duas eleições gerais, inquinadas desde a origem, que instalaram a direita ultramontana no governo e catapultaram mais de 60 fascistas retintos para o Parlamento – contando com os que ainda permanecem acoitados no PSD e no CDS. Não, não é possível detectar qualquer vislumbre de inocência nos autores destes procedimentos.
Um produto tóxico
Neste contexto de golpismo e viciação dos mecanismos democráticos ao longo de quase 49 anos podemos e devemos escalpelizar a comunicação social actual, a herdeira directa dos meios que conspiraram activamente contra a revolução, deram asas à propaganda perversa e às trapaças políticas que consolidaram o golpe de Novembro. Meios sempre e sempre mais eficazes e que hoje cultivam o ambiente de subserviência à NATO e à União Europeia, o militarismo, o branqueamento dos fascismos, como o nazismo ucraniano e o sionismo, o totalitarismo económico e financeiro neoliberal, a restrição dos espaços de opinião, de liberdade cultural e de escolha política.
Muitos competentes, corajosos e generosos jornalistas da imprensa, rádio e televisão lutaram heroicamente contra a censura salazarista, enfrentaram o regime e alguns passaram pelas câmaras de tortura e pelas celas da ditadura. Ora o que observamos no jornalismo dominante actualmente é a cumplicidade com novos métodos censórios, cada vez mais sofisticados; a promiscuidade com a classe política e os centros de poder; a subserviência provinciana perante a doutrinação da NATO e da União Europeia; a incapacidade – ou ausência total de vontade – para desmontar a hipocrisia comportamental da chamada civilização ocidental, sobretudo quando esta procede de maneira absolutamente contraditória em relação aos valores humanistas de que se apropriou unicamente para efeitos de propaganda.
«Meios sempre e sempre mais eficazes e que hoje cultivam o ambiente de subserviência à NATO e à União Europeia, o militarismo, o branqueamento dos fascismos, como o nazismo ucraniano e o sionismo, o totalitarismo económico e financeiro neoliberal, a restrição dos espaços de opinião, de liberdade cultural e de escolha política.»
O jornalismo dominante e os meios de comunicação frequentados pela esmagadora maioria da população portuguesa e do espaço ocidental trocaram a informação pela propaganda, a paz pela guerra e o militarismo, a democracia pelo totalitarismo neoliberal, o primado da lei pelas regras avulsas e arbitrárias emitidas de Washington, o pluralismo pela opinião única, o diálogo pela arrogância, o esclarecimento pelos comentários unanimistas, viciados e multiplicados por gente impreparada, culturalmente indigente, avençada por organizações conspirativas, serviços secretos e sistemas transnacionais de poder.
A resultante deste processo é um produto tóxico multifacetado que dilui as capacidades críticas dos cidadãos, mina o seu processo de reflexão sobre a sociedade em que se inserem, anestesia a sua vontade de contestar, induzindo-os a viver numa espécie de realidade paralela como seres hipnotizados e amorfos – em suma, um rebanho.
Ernest Bevin foi um chefe trabalhista britânico, ministro dos Negócios Estrangeiros e primeiro-ministro nos primeiros anos do pós-guerra.
Bevin, como trabalhista, era um feroz anticomunista, segundo os seus biógrafos; e ficou na História como um dos mais entusiastas e empenhados fundadores da NATO. Foi um dos 12 subscritores do Pacto do Atlântico em 1949.
Recordo a figura de Ernest Bevin porque, sendo um atlantista da mais rija cepa, tinha um pensamento político abrangente muito interessante e significativo que, explanado há mais de 75 anos, hoje é tão actual como então. Dizia este progenitor da NATO que «o preço da liberdade é a eterna vigilância». Note-se que ele fala da nossa «liberdade» actual e não podemos deixar de admirar a sua franqueza e, sobretudo, a sua premonição. Ou então, nesta espécie de democracia há coisas que nunca mudam.
«Divertir, entreter, enganar»
Bevin também conhecia a fundo o potencial e os objectivos reservados à comunicação nos ambientes e regimes políticos tutelados pela NATO e outras instâncias de concentração imperialista. Segundo ele, «um jornal tem três tarefas: "uma é divertir, outra é entreter, o resto é enganar"».
É justo que consideremos admirável a perspicácia deste dirigente britânico ao conseguir antever, a uma distância de três quartos de século, a realidade em que hoje vivemos.
Ao jornal podemos acrescentar a rádio, a televisão e a multiplicidade de canais da comunicação dominante, incluindo a internet; e depois submeter esta amálgama às mais apuradas doutrinas de propaganda (Goebbels parece hoje um prosaico amador) e às mais sofisticadas capacidades tecnológicas. Teremos então a visão de Ernest Bevin exponencialmente projectada para patamares estratosféricos de indigência, estupidificação e aldrabice através dos veículos da comunicação social corporativa globalista.
«Segundo Ernest Bevin[, um atlantista da mais rija cepa], "um jornal tem três tarefas: 'uma é divertir, outra é entreter, o resto é enganar'"»
Se todos recordarmos aqui – e basta fazê-lo superficialmente – o comportamento dos canais privados de televisão, ficaremos mais impressionados ainda com o talento visionário de um dos pais fundadores da NATO. «Divertir» é estupidificar, alienar, esvaziar qualquer conteúdo de referências culturais formativas e esclarecedoras; «entreter», da maneira como esses meios o fazem, é o método para formatar cidadãos alheados, passivos, agarrados ao acessório de vidas que não são as suas enquanto se conformam com as próprias existências, mergulhados numa inércia que os impede de combater por melhores condições e pela afirmação de direitos; «enganar», enfim, é o objectivo primeiro e último: os espaços ditos de informação são os cenários privilegiados de mentira, convenientes omissões, comentários à la carte e mistificações para aperfeiçoar uma opinião única, apurá-la o mais possível de acordo com a cartilha do fascismo económico neoliberal, antecâmara de uma qualquer das mil e uma caras do fascismo político – snobe, trauliteiro ou sonso e de falinhas mansas.
A existência de televisões privadas e a adaptação da televisão pública ao espírito «privado», ou seja, a sua transformação num instrumento de poder do bloco que teóricos fascistas da nossa praça designam como «arco da governação», foi, desde sempre, uma arma de guerra da dinastia novembrista lusitana.
«A existência de televisões privadas e a adaptação da televisão pública ao espírito "privado" [...] foi, desde sempre, uma arma de guerra da dinastia novembrista lusitana.»
O processo desenvolveu-se paralelamente ao assalto aos meios de comunicação públicos pelas clientelas dos partidos governantes, seguido da privatização, em saldos de feira da ladra, à maneira cavaquista, de todos os jornais então em mãos estatais. Esta metodologia assente em benevolentes e viciadas quermesses paroquiais funcionou como forno crematório da quase totalidade dos títulos históricos da imprensa portuguesa, incluindo vários que se tinham mantido privados: O Século, República, A Capital, Diário Popular, Diário de Lisboa. Diário de Notícias e Jornal de Notícias sobreviveram, se bem que, no caso do matutino lisboeta, seja difícil chamar sobrevivência àquele estado vegetativo.
o diário: um acto brutal e um exemplo
Não posso deixar de abordar aqui o assassínio premeditado do jornal o diário, o único órgão dissonante da doutrina do regime, a voz isolada que reflectia os interesses e direitos das camadas mais desfavorecidas da população. Tal como no caso do jornal República, gerido com um alarido que chegou até à agenda de uma cimeira da NATO, o diário foi vítima de uma conspiração com ramificações internas associadas ao soarismo, um takeover não consumado mas que teve como consequência a inviabilização e extinção do jornal. Um acto brutal de censura, um atentado sem quaisquer escrúpulos contra as liberdades por parte de um poder que, decididamente, se dá mal com a diversidade, o pluralismo de opinião e as práticas antifascistas. Sem me alongar nos pormenores de uma história escabrosa que ainda está por contar, recordo apenas que duas das personagens mais envolvidas no processo, uma como colaborador influente e outra como administrador principal da empresa proprietária de o diário, foram pouco depois promovidas a ministros com pastas muito relevantes, respectivamente, nos governos socialistas de António Guterres e José Sócrates: Joaquim Pina Moura, ministro das Finanças e da Economia; Mário Lino, ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.
«Quanto aos grupos proprietários de canais privados de televisão é relevante notar que são controlados por interesses associados a mecanismos de poder imperiais, entre eles a mais conhecida seita do poder conspirativo globalista, o Grupo de Bilderberg.»
No panorama da imprensa nasceram entretanto, e sobrevivem, ainda que com dinâmicas opostas, o tablóide Correio da Manhã e o presunçoso diário snobe da classe média Público, variantes da mesma propaganda doutrinária neoliberal e que assentam naquela ficção oriunda do reino do fantástico segundo a qual os jornais que são propriedade de oligarquias podem ser independentes e reflectir interesses contrários aos dos proprietários.
Quanto aos grupos proprietários de canais privados de televisão é relevante notar que são controlados por interesses associados a mecanismos de poder imperiais, entre eles a mais conhecida seita do poder conspirativo globalista, o Grupo de Bilderberg.
A perda de influência dos jornalistas
Nestes ambientes, a influência e as qualidades profissionais dos jornalistas tornaram-se quase irrelevantes, ainda que com incidências muitas vezes perversas ao nível das hierarquias e das chefias, que aceitam executar tarefas censórias contra as quais tantos colegas de há meio século lutaram e se sacrificaram.
Foi a traição à Constituição assumida deliberadamente, e como sistema, pela «classe política» nascida do novembrismo que marcou o lamentável percurso de Portugal até ao estado degradante em que se encontra. Durante as últimas décadas, uma «classe política» sem referências humanistas, volúvel e estrangeirada – o adjectivo mais adequado é apátrida –, usurpou a democracia e montou um regime económico, político, social e mediático em Portugal no qual se comporta como uma entidade marginal em relação à Constituição que jurou respeitar. À entrada das celebrações do 50.º aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, o povo português é governado segundo práticas anti-constitucionais. Passaram-se 47 anos sobre a aprovação da Constituição da República, mas da efeméride poucos se lembraram. A data foi ignorada pelos poderes públicos, a «classe política» continuou a comportar-se como se tal coisa não existisse, a «sociedade civil» acha que tem muito mais com que preocupar-se; apenas algumas organizações cívicas – «sectores afectos ao 25 de Abril», como se diz na CNN em tom de quem fala de extraterrestres – evocaram a vigência, a actualidade e o carácter normativo da lei das leis do país. Em boa verdade, será mesmo que a Constituição existe? Serve realmente como base de funcionamento do regime político, económico e social ou, para os órgãos de poder, não passa de um estorvo para cumprir ou desrespeitar consoante as circunstâncias que lhes interessam? Da Constituição da República fala-se quando chega algum veto de Belém sobre um assunto específico, quantas vezes avulso e aleatório transformado em matéria transcendente pela promiscuidade entre a comunicação social e algumas agendas políticas, fazendo então mexer o sonolento Tribunal Constitucional. Ou então emerge episodicamente através das mesmas traficâncias político-mediáticas quando o assunto é a sua própria revisão, deixando-se bem claro que o intuito é fabricar um texto constitucional à medida dos interesses, caprichos e arbitrariedades do regime estrangeirado, em vez de ser este a respeitar a Lei Fundamental do país. Ou seja, uma política à la carte para as ganâncias oligárquicas de sempre e para quem a Constituição de Abril se atravessou abusivamente nos caminhos atapetados da Constituição salazarista de 1933. Ganâncias, essas, entretanto transnacionalizadas ao ritmo dos objectivos totalitários do globalismo, que sempre foram determinados por interpretações da Lei Fundamental promulgada em 25 de Abril de 1976 segundo os apetites revanchistas a que deram largas a partir de 25 de Novembro de 1975. Foi essa traição à Constituição assumida deliberadamente, e como sistema, pela «classe política» nascida do novembrismo que marcou o lamentável percurso de Portugal até ao estado degradante em que se encontra: nem «soberano», nem «indivisível» – porque fundido e apagado em instâncias antidemocráticas como a União Europeia e a NATO – e apenas formalmente correspondendo ao «poder do povo». A legalidade democrática foi subvertida. Note-se que a democracia não necessitou de ser adjectivada na Constituição em vigor, a não ser pelo termo «participativa»; no entanto, a «classe política» que usurpou esse poder soberano aos portugueses, mantendo-o como refém, designa o sistema como «democracia liberal», isto é, uma mistela praticamente esvaziada do seu conteúdo democrático, ignorando ostensivamente os princípios libertadores do 25 de Abril, importada dos «amigos» e «aliados» que anularam o direito internacional ao instituírem uma «ordem internacional baseada em regras» receitadas de Washington – a quem se deve a paternidade do próprio novembrismo. A releitura da Constituição da República, que se recomenda a todos os cidadãos para recordarmos, reactivarmos e defendermos a riquíssima e bem viva base de trabalho e mobilização legada pelo 25 de Abril de 1974, deve fazer-se cotejando-a, a todo o momento, com a realidade de hoje em Portugal. É verdade que se trata de um roteiro penoso e revoltante tendo em conta a prática dos poderes políticos desde o primeiro governo constitucional ao actual; porém, ao mesmo tempo trata-se de um exercício aconselhável para definir as acções de cidadania indispensáveis de modo a que o constitucionalismo seja reposto no país. E não, a revisão constitucional não é a solução, mas sim o respeito íntegro pela Constituição em vigor. Portugal deixará assim de ser uma potencial cópia de «parceiros» e «aliados»? É natural que assim seja: o 25 de Abril também foi único, está vivo e não é cópia de coisa alguma. «Note-se que a democracia não necessitou de ser adjectivada na Constituição em vigor, a não ser pelo termo "participativa"; no entanto, a "classe política" que usurpou esse poder soberano aos portugueses, mantendo-o como refém, designa o sistema como "democracia liberal"» Não é a Constituição que tem de ser revista; o regime é que tem de ser devolvido pelo povo às suas origens constitucionais, sistematicamente espezinhadas. Não é tolerável qualquer enviesamento do espírito da Constituição em vigor, definido desde logo no preâmbulo, sob pena de permitirmos que o 25 de Abril seja definitivamente enterrado, como pretende a «classe política» para, no fundo, terminar o que Novembro começou e os «amigos» e «aliados» impõem. Com tais «amigos» dispensam-se os inimigos. O processo de revisão constitucional e os projectos apresentados por PSD, IL e Chega mostram que o objectivo é dar cobertura constitucional à política de direita, mutilando e subvertendo a Constituição. O projecto de revisão constitucional apresentado pelo PSD, em linha com o seu protagonismo na imposição ao País de uma política de retrocesso social e declínio económico, revela um conjunto de propostas de carácter antidemocrático e evidencia uma colagem aos posicionamentos mais reaccionários e demagógicos assumidos pelo Chega e a IL. O processo de revisão constitucional em marcha é determinado pelo ataque ao regime democrático e aos direitos fundamentais, um objectivo bem evidente nos projectos dos partidos de direita, nomeadamente quando definem como alvo as liberdades democráticas e os direitos consagrados pela Constituição, na sequência do 25 de Abril. Aliás, das propostas que apresentam emergem as que branqueiam o fascismo, admitem a limitação de liberdades, através da facilitação do recurso ao estado de excepção e da devassa de informações relativas às comunicações dos cidadãos por parte dos serviços de informações. Mas também as propostas que admitem o regresso da «fichagem» de pessoas e famílias com a recolha de informações pessoais e que procuram condicionar o pluralismo limitando as possibilidades de representação institucional, para além das que reabilitam o recurso a penas perpétuas e tratamentos cruéis ou degradantes para os condenados. O PSD, o Chega e a IL apresentam também propostas que visam a eliminação de direitos das comissões de trabalhadores, a liquidação de direitos sociais na saúde, educação, habitação e procuram restringir os recursos do Estado para o cumprimento das suas funções sociais. Ao dar o seu aval a este processo de revisão constitucional, o PS assume uma opção com consequências graves na vida nacional, agravada pelo facto de o seu projecto também admitir a possibilidade de limitação de liberdades e a devassa de informações relativas às comunicações dos cidadãos por parte dos serviços de informações. Uma situação que abre a porta a um eventual entendimento com o PSD e do qual pode resultar a subversão da Constituição da República. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença. O preâmbulo estabelece que a Constituição «corresponde às aspirações reais do país» assegurando «o primado do Estado de direito» e a abertura do «caminho para uma sociedade socialista» no sentido de «um país mais livre, mais justo e mais fraterno». O espírito de Abril sintetiza-se nestas poucas palavras, suficientes, porém, para expurgar do cenário político, económico e social em Portugal aquilo a que chamam «democracia liberal», realmente uma artimanha corrupta neoliberal que vai esbatendo qualquer exercício democrático. Deduz-se com facilidade que, logo após a implantação dos «governos constitucionais», o caminho seguido desde o soarismo e o cavaquismo ao passismo/portismo e costismo, passando por outros lamentáveis ismos como o guterrismo, socratismo e barrosismo/santanismo, com chancela PS ou PSD e respectivas coligações fraternas, tem sido contrário ao definido pela Constituição. A governação do país nos últimos 47 anos é uma permanente guerra contra o espírito e a letra da Lei Fundamental do país em matérias tão fulcrais como a soberania e independência nacional, a prática da democracia, a participação popular, o respeito pelas pessoas, a família, o trabalho, a economia, a habitação, educação e saúde, a juventude, cultura, a liberdade de opinião e imprensa, sem esquecer o desprezo pelos mais idosos, a “peste grisalha”, definição própria da sociopatia cultivada no PSD e adjacências, entre as quais o pequeno gauleiter doutorado em traulitada hooliganística futeboleira. «Não é a Constituição que tem de ser revista; o regime é que tem de ser devolvido pelo povo às suas origens constitucionais, sistematicamente espezinhadas.» Ou seja, as práticas e os comportamentos dos governos são anti-constitucionais. E o órgão fiscalizador, o Tribunal Constitucional, permite-o por inércia e omissão principalmente em relação ao espírito bem claro da Constituição – ou não emanasse ele da clique de duas caras, PS e PSD, senhora do tráfico de influências no interior da tribo da «classe política». No curso da leitura do articulado constitucional é impossível não encalhar, até pelas circunstâncias da actualidade, nas tropelias cometidas em relação ao conteúdo do artigo 7.º, sobre as relações internacionais. Qualquer semelhança entre o texto constitucional e as práticas governamentais seria pura coincidência, que nem sequer se verifica. Aqui se recomendam os princípios do respeito pela «independência nacional», os «direitos humanos» e «dos povos», a «igualdade entre os Estados», a «solução pacífica dos conflitos internacionais», a «não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados», a «abolição do colonialismo, do imperialismo e de quaisquer outras formas de agressão», a «dissolução dos blocos político-militares», o «estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos». Não cabe aqui esmiuçar todos estes aspectos porque cada leitor e leitora encontrará facilmente riquíssimos exemplos das violações grosseiras dos princípios lembrados. Uma nota apenas: cultiva-se a paz enviando tropas e armamento para guerras ilegais, coloniais e de rapina? Basta citar, sem necessidade de ser exaustivo, o desrespeito activo dos governos constitucionais portugueses pelos direitos de povos como o palestiniano, o do Saara Ocidental, os que são vítimas de guerras apoiadas por Portugal – com participação directa em algumas delas como Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, Ucrânia e África Central – os da Síria, do Iémen, da Somália, da Líbia; pelos deveres objectivos rejeitados perante os milhões de refugiados desses conflitos e da subsistência do colonialismo; e a inércia perante tantas outras situações degradantes que Portugal olimpicamente ignora como a fome, a deslocação forçada, o roubo de terras e riquezas naturais de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo. As causas desta situação, num quadro geral ameaçador como nunca para a existência do planeta, são o poder imperial e unipolar dos Estados Unidos da América, o correspondente colonialismo em que a União Europeia está enterrada sem quaisquer escrúpulos, o reforço do único bloco militar – que tem ambições expansionistas de cariz global –, a prevalência da «ordem internacional» norte-americana «baseada em regras» à revelia do próprio direito internacional; a estas circunstâncias, cuja rejeição exige coragem e dignidade que não estão ao alcance de governantes vegetativos e sem brio nacional, soma-se a militarização operacional e cultural da sociedade ditada pelos senhores da guerra ao serviço das oligarquias sustentadas, em grande parte, pelas intoxicantes actividades mediáticas e de entretenimento, pela indústria da morte, a mais florescente do globo a par da produção e tráfico de estupefacientes – muitas vezes fundindo-se e confundindo-se. Avaliemos os comportamentos dos governos portugueses em relação a cada um destes aspectos e ficamos claramente identificados sobre o grau de incompatibilidade entre as suas práticas e a Constituição da República. Ilustremos ainda o teor das actuações governamentais através de exemplos aparentemente avulsos mas que funcionam como marcos indisfarçáveis da guerra contra a Lei Fundamental do país. É o caso do acolhimento nos Açores da cimeira que lançou a invasão e guerra de destruição contra o Iraque, em 2003, com base em mentiras hoje universalmente reconhecidas, mas que, nem por isso, deixaram de funcionar como modelo para outras agressões; do reconhecimento e até acolhimento do fascista Juan Guaidó como «presidente» da Venezuela na sequência de uma tentativa de golpe de Estado operada pelos Estados Unidos; da participação portuguesa no roubo de ouro e de parcelas da reserva de divisas da Venezuela, das reservas monetárias russas em bancos europeus, de fundos do Banco Central do Afeganistão; da agressão aos interesses e qualidade de vida dos portugueses em consequência das sanções ilegais e arbitrárias contra a Rússia impostas por exigência, logo cumprida, dos Estados Unidos da América; do apoio e conivência com sanções criminosas e ilegais contra vários povos como os do Irão, Venezuela (prejudicando centenas de milhares de emigrantes portugueses), Afeganistão, Síria, Iraque: não se ouviu em Lisboa ou nos círculos internacionais uma qualquer palavra portuguesas de repulsa quando a secretária de Estado norte-americana, Madeleine Albright, declarou que o assassínio de meio milhão de crianças iraquianas por causa das sanções internacionais ao regime de Bagdade «valeu a pena». Em relação ao(s) bloco(s) militar(es), os governos portugueses fazem exactamente o contrário do que determina a Constituição: em vez de trabalharem no interior da NATO pela sua dissolução e a procura de soluções pacíficas para os conflitos, preferem exibir-se entre os mais proeminentes apoiantes das políticas de guerra e votam favoravelmente sempre que cada novo país é anexado pela aliança, reforçando o seu carácter agressor e expansionista. O artigo 275.º da Lei Fundamental dita que as Forças Armadas «estão ao serviço do povo português». Na realidade não estão: submetidas, naturalmente, ao poder político tornaram-se um ramo quase exclusivamente ao serviço da NATO e de aventuras militares da União Europeia. Ora os interesses do povo português nada têm a ver com o expansionismo e as guerras da NATO e o colonialismo da União Europeia. Sem um autêntico banco central, sem moeda, sem poder sobre os mecanismos determinantes da economia e comércio; sem autorização para decidir, em última instância, sobre o Orçamento de Estado; submetido a fiscalizações periódicas sobre despesa, dívida e défice – pairando a bestialidade da troika, FMI e Banco Mundial sobre a vida das instituições, das famílias e dos cidadãos; com indústria, agricultura – a extinção da produção de cereais é revoltante – e pescas residuais e estruturas fundamentais do Estado dissolvidas no magma federalista não assumido mas que molda a União Europeia; com a jurisdição sobre as Forças Armadas depositada pelo governo no aparelho belicista da NATO; com a privacidade dos cidadãos e os mecanismos da chamada «segurança nacional» entregues a instituições policiais transnacionais sem rosto, nada transparentes e que desembocam, regra geral, no aparelho de espionagem universal montado pelos Estados Unidos da América, Portugal não passa de um holograma, uma insignificante província do espaço territorial federalizado da Europa, gerido por figuras obscuras, não eleitas, ao serviço de oligarquias apátridas transnacionais. Até a pobre bandeira foi obrigada a partilhar os espaços públicos com o pavilhão federalista. Volta Miguel Vasconcelos, estás perdoado. «Em relação ao(s) bloco(s) militar(es), os governos portugueses fazem exactamente o contrário do que determina a Constituição: em vez de trabalharem no interior da NATO pela sua dissolução e a procura de soluções pacíficas para os conflitos, preferem exibir-se entre os mais proeminentes apoiantes das políticas de guerra e votam favoravelmente sempre que cada novo país é anexado pela aliança, reforçando o seu carácter agressor e expansionista.» Acresce que a banca nacional deixou de o ser porque foi engolida pelos complexos financeiros e especulativos sem fronteiras; e a opinião pública é formatada pelos conglomerados monopolizadores dos terminais de comunicação – e também sem fronteiras. Bem pode a Constituição da República determinar «a não concentração da titularidade dos meios de comunicação social». O que existe, na realidade, é um monopólio do controlo das mentes manobrado por centrais de propaganda transnacionais e globalistas. Saberão muitos e renomados jornalistas de hoje, capazes de confundir deontologia com um tratamento dentário, que a Constituição lhes garante a «intervenção na orientação editorial dos respectivos órgãos de comunicação social»? E que a liberdade de expressão e informação «não pode ser impedida ou limitada por qualquer tipo ou forma de censura»? O tempo do lápis azul dos abrutalhados coronéis já lá vai; agora o terrorismo censório é muito mais sofisticado, extremamente nocivo mas provavelmente indolor para a maioria da população. Resta assim pouco espaço para ser cidadão português em Portugal ou em qualquer outra parte do mundo, sem que, por outro lado, exista aquilo a que convencionou chamar-se «cidadania europeia», uma das várias falácias em que as franjas branqueadas do nazismo alemão associadas aos fanáticos arautos dos «Estados Unidos da Europa», todos amarrados pelas obrigações prescritas pelo Plano Marshall, formataram a «integração Europeia» quando a II Guerra Mundial ainda não tinha arrefecido. Ora nada disto encaixa na Constituição da República, que deixa bem claro e fundamentado o princípio de que a independência nacional não é negociável. Nem mesmo em caso de revisão, como pode ler-se no artigo 288.º. Recorde-se o que estabelece o artigo 3.º – 1 e compare-se com a realidade pouco atrás exposta: «A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição». E no parágrafo seguinte (2) lê-se que o «Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática». Onde está a subordinação à Constituição? Onde pára a «legalidade democrática», dependendo sempre, em última instância, de instituições autocráticas como a União Europeia e a NATO? Em termos dessa mesma legalidade democrática, o Estado – ou melhor, a confraria da «classe política» – nem ao menos recorreu à faculdade prevista no artigo 161.º: A Constituição «não prejudica a possibilidade de convocação e efectivação de referendo sobre a aprovação de tratado que vise a construção e aprofundamento da união europeia». Passaram, entretanto, a adesão à Comunidade Económica Europeia, Maastricht, a abolição da moeda nacional e a imposição do euro e o Tratado de Lisboa sem que os cidadãos portugueses pudessem dizer uma única palavra sobre essas decisões que acabaram por moldar as suas vidas de maneira nociva. «Constituição» e «legalidade democrática» são, pelos vistos, compromissos obrigatórios mas descartáveis. O regime funciona de maneira anti-constitucional. O governo, o chefe de Estado e a maioria obrigatória na Assembleia da República – o regime manieta as organizações políticas que não acatam o neoliberalismo como ideologia única – assanham-se ainda mais contra a Constituição em matéria de economia. O artigo 80.º, na alínea a) determina que haja «subordinação do poder económico ao poder político». A partir da violação grosseira desta cláusula, os poderes políticos mergulham num pântano de fraude e desenvolvimento das desigualdades sociais onde florescem os mais ricos dos mais ricos. As maiores vítimas da economia à qual a «classe política» se verga são os trabalhadores, os pequenos e médios agricultores, as pequenas e médias empresas, no fundo aqueles que criam riqueza mas são desprezados pelos que vivem e governam ao serviço do casino financeiro. O neoliberalismo como regime único e indiscutível espezinha a Constituição, mas isso é o que menos incomoda a parasitária casta dirigente e os seus patrões sem pátria. Este quadro faz, naturalmente, tábua rasa do conteúdo da alínea b) do mesmo artigo 80.º, que estabelece a «coexistência do sector público, do sector privado e cooperativo», sabendo todos nós que o Estado está impedido de concorrer em termos de igualdade e funciona para servir o sector privado tanto através das privatizações dos sectores mais lucrativos da economia – note-se que a TAP, agora que começou a dar lucro, já tem horizonte para passar a empresa privada e sem bandeira –, como da canalização de toneladas de euros dos nossos impostos para as contas dos patrões; sobretudo os mais chantagistas, quando começam a carpir que estão em dificuldades, ou seja, quando os volumes obscenos de lucros não atingem as alucinantes metas pretendidas para transferir offshore depois de «pagarem» os impostos em paraísos fiscais. «Aumentar o bem-estar social, económico e de qualidade de vida das pessoas», «operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e desenvolvimento», «eliminar progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo, o litoral e o interior» são normas constitucionais cuja simples citação permite entender a marginalidade institucional de quem nos governa. Para o poder representam somente pias intenções. Há mais circunstâncias comprovativas do absurdo governamental: por exemplo (artigo 81.º f), o Estado «deve assegurar o funcionamento eficiente dos mercados», «contrariar as formas de organização monopolista» e «reprimir os abusos de posição dominante». Como? O Estado «assegurar» qualquer coisa no «mercado», entidade intocável, endeusada por se regular a si própria como dogmatiza o neoliberalismo oficial? Contrariar os monopólios, isto é, desmontar, por exemplo (não exaustivo) as situações na distribuição alimentar, na actividade livreira, no domínio da comunicação audiovisual? Poderia a «civilização ocidental» tolerar heresias deste tipo? O que dizer então sobre a exigência de «propriedade pública dos recursos naturais (quando até as águas se privatizam por simples vontade de autarquias) e dos meios de produção, de acordo com o interesse colectivo»? Não será que nessa matéria, e como regra geral, o interesse privado, e não o colectivo, é quem mais ordena no país? A Constituição reserva, por exemplo, as estradas e as vias férreas nacionais para «o domínio público». Domínio que passa a ser uma farsa quando se entregam esses bens do povo a concessões privadas contra o povo, o mesmo acontecendo com os aeroportos (embora não sejam explicitamente citados), a distribuição de energia eléctrica, as telecomunicações, explorações mineiras e bens naturais e históricos como praias e monumentos. Tal como as parcerias público-privadas (PPP), principalmente na saúde, são agressões ao Estado e aos cidadãos, mais uma arma disparando contra o Serviço Nacional de Saúde, filho dilecto da Constituição mas depauperado de uma maneira que os poderes desejam irremediável – pelo menos tendo em conta as práticas à vista de todos. E será que os investimentos estrangeiros contribuem para «defender a independência nacional e os interesses dos trabalhadores», como ordena a Constituição? De que maneira as máfias do tipo da Altice, da Vinci e outras poderiam estar presentes no país respeitando estas normas – elas que medram sem leis e fazem o que querem de governos sem coluna vertebral? Interesses dos trabalhadores. Observemos então o desprezo com que são tratados pelos inimigos da Lei Fundamental. «Todos têm direito ao trabalho», lê-se no artigo 58.º, certamente para surpresa do imenso exército de desempregados, trabalhadores precários, contratados a prazo, despedidos sem justa causa, escravos rurais, da construção e outras situações todas elas ilustrativas de como o poder económico-político preza «os direitos humanos». Quando as pessoas não passam de números, dados estatísticos e ferramentas económicas a quem se exige o máximo de eficácia com um mínimo de retribuição que outro comportamento poderia esperar-se? Também é constitucionalmente obrigatória «a execução de políticas de pleno emprego». Impossível! O neoliberalismo não vive sem uma imensa bolsa de desempregados. Além disso, o trabalho deve ser organizado «de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar». Sem esquecer que «trabalho igual salário igual» e «a retribuição do trabalho» deve ser assegurada «de forma a garantir uma existência condigna»; além de o Estado «dever adaptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria». As práticas governamentais impondo, de facto, congelamento de salários e pensões (e a perda constante do seu poder de compra), cargas horárias esclavagistas, políticas desumanas de turnos de trabalho atropelam deliberadamente a Constituição, artigo após artigo. Agora o executivo distribui migalhas irrisórias quando lhe apetece, tudo como fuga à obrigação constitucional de promover salários dignos. Comentários dispensam-se, a comparação simples entre a Lei Fundamental e a realidade é elucidativa. Anote-se apenas que a constante «liberalização do mercado de trabalho», sempre insaciável para as associações patronais e seus serviçais no Parlamento e no governo, sendo doutrina básica do neoliberalismo não cabe na Constituição. Da mesma maneira são absolutamente vazias de conteúdo, exercícios de propaganda cruel e sintomas graves de sociopatia, as homílias dos poderes públicos garantindo a dignidade e o bem-estar das famílias. Por exemplo, onde estão a promoção «da independência social e económica dos agregados familiares» e da «conciliação da actividade profissional com a vida familiar»? E «o direito à segurança económica das pessoas idosas»? «As práticas governamentais impondo, de facto, congelamento de salários e pensões (e a perda constante do seu poder de compra), cargas horárias esclavagistas, políticas desumanas de turnos de trabalho atropelam deliberadamente a Constituição, artigo após artigo. Agora o executivo distribui migalhas irrisórias quando lhe apetece, tudo como fuga à obrigação constitucional de promover salários dignos.» Ainda em relação ao trabalho, recordem-se normas constitucionais como «as comissões de trabalhadores exercem o controlo de gestão nas empresas», «participam no processo de reestruturação das empresas», na «legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que contemplam os respectivos sectores». Ou, como determina o artigo 89.º, «a participação efectiva dos trabalhadores na gestão do sector público». Surpresa das surpresas: tem de haver um «limite máximo da jornada de trabalho» e «é garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos e ideológicos». Um cemitério de letras mortas. «O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição», determina o artigo 108.º. O primeiro-ministro e os membros do governo leram isto? Os deputados da maioria obrigatória conhecem esta norma básica do seu estatuto? Ao chefe de Estado, que jurou «cumprir e fazer cumprir a Constituição», escaparam-lhe estas palavras, talvez perdidas algures no meio das suas leituras enciclopédicas? «Povo», na verdade, já não existe, desmembrado entre «público» (algo que assiste mas não intervém), contribuintes e consumidores. Assim como os trabalhadores se transformaram em «colaboradores» – companheiros de jornada dos patrões, membros da santa família empresarial, recompensados com gorjetas de boa vontade pingando dos lucros sem os danificar. O povo, nos termos da Constituição, elege os seus representantes para exercerem o poder; e nas eleições e campanhas eleitorais há «igualdade de oportunidades e tratamento das diversas candidaturas». A sério? Relembrem-se das campanhas eleitorais, das respectivas coberturas nos meios de comunicação social, dos debates selectivos onde se parte do princípio de que apenas dois partidos (com alguns apêndices conjunturais) – unificados pela ideologia neoliberal – podem ser contemplados com o exercício do verdadeiro poder governativo e parlamentar. O «arco da governação», como um acérrimo inimigo da Constituição, Paulo Portas, definiu nos tempos do protectorado da troika. Avaliem as maneiras díspares como os partidos são tratados pelo aparelho político-económico-mediático, endeusados ou insultados consoante se identificam ou não com o regime único, e extraiam conclusões. Assim sendo, o cidadão vota de tempos a tempos, condicionado pela distorção do ambiente envolvente de maneira favorecer os partidos «vocacionados» para o poder – que ignoram os seus próprios programas de governo talvez ainda mais do que a Constituição – e perde imediatamente a pista do seu voto, utilizado a belo prazer pela «classe política» e o sistema económico-político-mediático do fundamentalismo capitalista. Um território pantanoso, opaco, onde a democracia se vai afundando. Não havendo igualdade de oportunidades não há democracia real; talvez seja isso a «democracia liberal», na verdade neoliberal e residualmente democrática. O único adjectivo para qualificar a democracia usado na Constituição é o de «participativa», coisa a que o neoliberalismo, vivendo de apascentar carneiros, é alérgico. Entre democracia participativa e democracia liberal vai a diferença entre Abril e o modelo importado, delineado depois de Novembro pela continuidade harmónica entre o soarismo (socialismo «na gaveta», chegada do FMI e primeira liberalização laboral, com instauração, designadamente, dos contratos a prazo a que prometera não recorrer) e o cavaquismo (revanchismo das reprivatizações e regresso da cleptocracia oligárquica das seitas financeiras do antigamente). A integração europeia, sem consulta aos portugueses, a subserviência sem escrúpulos à NATO e o lançamento da moeda nacional para o lixo fizeram o resto até ao estado degradante, belicista e anti-constitucional em que vivemos. «Não havendo igualdade de oportunidades não há democracia real; talvez seja isso a "democracia liberal", na verdade neoliberal e residualmente democrática.» Provavelmente, a situação mais humilhante para o povo português e a independência nacional é a obrigação de o Orçamento de Estado, instrumento fundamental para decidir sobre a vida de todos os cidadãos, só ter existência «legal» depois de receber a chancela da Comissão Europeia. O artigo 161.º da Constituição determina: É competência política e legislativa da Assembleia da República «aprovar as leis das grandes opções dos planos nacionais e o Orçamento do Estado, sob proposta do governo». No entanto, quem tem a última palavra na validação do documento são os tecnocratas de Bruxelas que ninguém elegeu e actuam como meras correias de transmissão dos potentados económico-financeiros transnacionais que asseguram a «civilização ocidental». Os mecanismos autocráticos, totalitários mesmo, sobrepõem-se às vias democráticas, a ditadura da UE liquida a independência nacional. O processo é perverso porque a elaboração e aprovação do Orçamento pelo governo e o Parlamento estão viciadas à partida pelo facto de a lei ter de passar obrigatoriamente, em derradeira instância, pelas malhas inquisitoriais dos obscuros gabinetes da Comissão. Nem que para isso tenham de cair governos. Agora que começam a celebrar-se os 50 anos de Abril é altura propícia para restaurar princípios da Revolução, de conteúdo verdadeiramente popular, que não se extinguiram, apenas estão amordaçados. É possível encontrá-los a todos na Constituição: por isso o regime usurpador a odeia e pretende extirpar da realidade nacional, substituindo-a por outra copiada dos manuais neoliberais. Esta é a fronteira em que os portugueses se encontram: entre a Constituição e o capitalismo autocrático e sem lei; entre a independência nacional e a sabujice aos «amigos» e «aliados»; entre o 25 de Abril e os que pretendem erradicá-lo de vez. Defender a Constituição com unhas e dentes é talvez uma das últimas barreiras contra a selvajaria revanchista, neoliberal e autocrática. É um objectivo que exige disponibilidade, coragem e o abandono do torpor induzido de maneira a alcançar uma mobilização essencial para que Portugal recupere a dignidade, o povo de Abril volte a ser povo e a ter o poder, então sim em democracia sem adjectivos, a não ser o de «participativa». Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Um regime político marginal e anti-constitucional
Do preâmbulo ao derradeiro artigo
Editorial|
Revisão constitucional: ataque ao regime democrático e aos direitos fundamentais
Contribui para uma boa ideia
A inexistência nacional
Fraude da economia
Desprezo pelo trabalho e os trabalhadores
A falsificação da democracia
A última fronteira
Contribui para uma boa ideia
Ao mesmo tempo, os profissionais da informação permitiram que as suas associações de classe perdessem poder e que os mecanismos constitucionais de intervenção postos ao seu dispor pela Revolução de 25 de Abril, nomeadamente as Comissões de Trabalhadores e os Conselhos de Redacção, quase morressem de inanição.
Hoje, quando a comunicação social corporativa e afim, mesmo que em mãos públicas, aborda o 25 de Abril que a libertou, normalmente fá-lo segundo uma versão da revolução infectada pelo vírus de Novembro, o mesmo que contribuiu para a transformar num instrumento degenerado ao serviço de um sistema de poder autoritário absolutamente incompatibilizado com o antifascismo e as liberdades de informação e de opinião.
As gerações dos portugueses que não eram nascidos em 1974 só perceberão verdadeiramente o que é a liberdade de opinião, de informar e ser informado quando puderem conhecer – e viver – o que na realidade foi a Revolução de 25 de Abril desse ano glorioso.
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