|Manuel Augusto Araújo

Virtudes públicas, vícios privados

A difusão do neofascismo, mais puro e duro ou mais difuso, está a marcar o nosso tempo e com ele a alargar a imparável mancha das banalidades estereotipadas e quotidianas, das falsas notícias instituídas como norma, com o truque de se apresentarem como anti-sistema.

CréditosMiguel A. Lopes / Agência Lusa

Um personagem do filme de João César Monteiro, Le Bassin, de John Wayne, 1997, tem uma frase premonitória, de uma implacável lucidez:  «hoje, os novos fascistas apresentam-se como democratas». Dispensam os desfiles militarizados dos camisas negras, castanhas, azuis, verdes, mesmo quando exibem motoserras não tiram as gravatas dispensam o arregaçar as mangas, mantêm intactos os seus sinistros objectivos, a tipologia dos seus financiadores destacados capitalistas, muitos deles com negócios obscuros, alguns sob a alçada da justiça, apesar de bem se saber que o direito é sempre o direito dos mais fortes à liberdade, na praça pública, em que a comunicação social cada vez mais nas mãos das oligarquias lhes concede excessivo tempo de antena, continuam seguidores das principais palavras de ordem dos fascismos históricos, reactivadas, assimiladas e actualizadas pelas exigências e modas contemporâneas, com variantes em conformidade com a sua inserção territorial, de que é exemplo a generalizada islamofobia ser ou não associada ao ódio aos ciganos.

A difusão do neofascismo, mais puro e duro ou mais difuso, está a marcar o nosso tempo e com ele a alargar a imparável mancha de óleo do filisteísmo, do farisaísmo, das banalidades estereotipadas e quotidianas, das falsas notícias instituídas como norma, a mais completa submissão aos poderes que se dizem querer subverter, com o truque de se apresentarem como anti-sistema, quando são os mais radicais defensores do sistema para que se torne ainda mais presente e activo em atendimento das especulações do grande capital. Sistema mais ou menos brutal conforme as circunstâncias. 

Tal como os seus antecessores, os neofascistas dispensam qualquer dimensão teórica consistente, representam um pensamento pobre, mísero, indigente, mas com uma efectuabilidade forte, autoritária contra a liberdade, a democracia e a paz. Consolidam a sua relação com o povo seu votante na base do acriticismo, explorando uma imagem contra o sistema, falando todo o tempo e em primeiro lugar da corrupção. Como sublinha Norberto Bobbio, o nazi-fascismo «fez isso em Itália em 1922, na Alemanha em 1933, no Brasil em 1964. Acusa, insulta, agride como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um sociopata que faz carreira política». Por cá, todos os dias Ventura e os seus sequazes do Chega fazem tiro alvo à corrupção, embora, sem curiosidade, a  imoralidade, a devassidão, a degradação, tanto material como imaterial, grassem naturalmente nas suas fileiras dando razão a Bobbio. 

Esses partidos neofascistas, por cá sobretudo o Chega, a IL é outra louça, tendem a organizar-se como uma seita que se fecha sobre si própria, que combate quem procura impedir que alcancem as suas metas. Partidos tendencialmente unipessoais, são objectivamente variantes da máfia, de agências de protecção privadas que têm por fim consagrar os seus chefes, sustentados por laços, dos ocultos aos visíveis, de uma teia de troca de benefícios em vaivém. 

Na Europa, sobretudo na UE, as economias neoliberais que seguem os catecismos puramente economicistas desprezam os problemas reais das pessoas, abrem auto-estradas para a propagação dos populismos fascistas. Por cá, os seus seguidores de várias cores e em velocidades e com graus diversos, prosseguem o caminho das reformas ditas estruturais, que acabam por encerrar escolas, postos de saúde, maternidades, tribunais, serviços de registo e notariado, postos de correio, agências bancárias, mesmo as da CGD, o banco do Estado. Agravam os problemas da habitação e da mobilidade, dos profissionais dos diversos sectores do cada vez mais depauperado serviço público.

«Esses partidos neofascistas, por cá sobretudo o Chega, a IL é outra louça, tendem a organizar-se como uma seita que se fecha sobre si própria, que combate quem procura impedir que alcancem as suas metas.»

 

São políticas que adubam os territórios para o crescimento dos partidos de extrema-direita, assumida ou disfarçadamente fascistas. O neoliberalismo é o pantanal em que prosperam as flores carnívoras do fascismo. Esse é o terreno propício aos partidos de extrema-direita, porque as pessoas se sentem abandonadas, desprezadas. Diariamente são encharcadas com notícias que demonstram, a todos níveis, a falência dos serviços públicos de que dependem, que as deviam proteger e estar em seu favor.

Sentem-se esquecidas, desprezadas, maltratadas, acreditam porque assim lhes afirmam ou insinuam que a culpa é do sistema pelo que são empurradas para apoiar e votar nos partidos que se proclamam contra o sistema, que são os mais drásticos defensores do sistema. Que exigem o desmantelamento do Estado, até a um Estado mínimo que favoreça e subsidie os privados. Iludidos, acabam por correr para o abismo das soluções populistas mais ou menos fascistas de que acabarão por ser as suas primeiras e maiores vítimas.

O Chega, com um assombroso crescimento de votos nacional, é o exemplo mais acabado dessa realidade. Apoiado e financiado por grandes capitalistas envolvidos nos negócios mais lucrativos e onzenários, muito deles sob a alçada da justiça, tal como o seu numeroso grupo de deputados nacionais, mais os do poder local e os dignatários de diversos escalões no partido, que mais parece um albergue espanhol de delinquentes, ladrões de alto e baixo coturno de malas a caixas de esmolas, burlas e fraudes ao Estado e a particulares, violências diversas com destaque para a doméstica, crimes de pedófilia e até incendiários, rapaziada e raparigada nem toda, longe disso, afastada selectivamente do partido por Ventura, ele próprio condenado pelo tribunal em Maio de 2021 por ofensas à honra e bom nome. Ventura que acumulou o cargo de deputado com o de consultor da Finpartner, especializada em planeamento fiscal, vistos gold e fuga de capitais para offshores. Apesar desses sucessos, a cassete Limpar Portugal do Chega continua a vender a sua reiterada vigarice.

«O neoliberalismo é o pantanal em que prosperam as flores carnívoras do fascismo. Esse é o terreno propício aos partidos de extrema-direita, porque as pessoas se sentem abandonadas, desprezadas. Diariamente são encharcadas com notícias que demonstram, a todos níveis, a falência dos serviços públicos de que dependem, que as deviam proteger e estar em seu favor.»

 

Até com situações inusitadas como a da freguesia de Rabo de Peixe nos Açores onde o Chega é quem tem maior número de votos. Freguesia que em Portugal, com destaque, regista o maior número de beneficiários do Rendimento Social de Inserção, que o Chega pretende reduzir ao mínimo num suposto combate à subsidiodependência,  subsidiodependência que nunca questionou em relação às empresas ávidas de incentivos permanentes do Estado que não existem para melhorar a qualidade e a produtividade, mas para maximizar o retorno dos investimentos feitos, na lógica da acumulação que domina a actuação do sector privado. Privatizar os lucros, socializar os prejuízos, é o que se tem assistido, com o suporte dos partidos de centro-esquerda à extrema-direita, sobretudo desde a intervenção da troika em que os contribuintes têm entregue a fundo perdido a grandes empresas mas sobretudo à banca centenas de milhões de euros, o que não causa qualquer incómodo, nem sequer uma pequena comichão ao Chega, embora Ventura e os seus arautos mais vocais estejam sempre em alta grita a dizer chega à corrupção, ao compadrio, aos tachos. Não é sequer uma falácia. É uma redonda e gorda mentira que só tem um forte eco num Portugalito – em que o Galo de Barcelos substitui as cinco quinas – embalado pelos bigbrothers, casadossegredos, gouchas, cristinas&companhia, o Portugalito da cusquice, das pequenas invejas. Um coquetel molotov quando amalgamado com a quantidade de desamparados, precarizados, maltratados pelo Estado.

O Chega é o mais acabado exemplar das virtudes públicas, vícios privados. Digníssimo seguidor de Al Capone que numa entrevista ao jornalista Cornelius Vanderbilt Jr., publicada a 17 de Outubro de 193, na revista Liberty afirmava convictamente: «Hoje em dia, as pessoas já não respeitam nada. Dantes, punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade, a lei. A corrupção campeia na vida americana dos nossos dias. Onde não se obedece à lei, a corrupção é a única lei. A corrupção está a minar este país. A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossas vidas». Um texto que é um manifesto que, quase palavra por palavra, e quase todos os dias é apregoado por André Ventura, que infelizmente Al Capone não conheceu senão tinha-se livrado de uns dias preso por fugas ao Fisco. Ventura não deixaria de colocar os seus saberes de lidar com as leis tributárias para livrar Al Capone desses problemas e poder continuar as suas lucrativas actividades e, com toda a probabilidade, tornar-se um destacado apoiante e doador. É essa a vocação do Chega. 

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