Numa das primeiras reacções às projecções eleitorais do passado 18 de Maio, ouvíamos que o «sistema já tremeu». O discurso anti-sistema está entre a linguagem de bolso mais usada pelos partidos de extrema-direita na Europa. A qualidade anti-sistémica desta vaga parece não ser só uma questão de discurso, mas uma componente central definidora da sua acção política.
Estudos de ciência política têm demonstrado que estes partidos se vão progressivamente radicalizando, estando dispostos a usar o aparelho do Estado para desmantelar princípios democráticos. Ou seja, o sistema contra o qual se declaram parece ser, portanto, os princípios e instituições das democracias liberais. Mas vamos mais a fundo. Consideremos todo o processo político-ideológico neoliberal que essas democracias também sustentam e há muito que não questionam. São os partidos desta vaga de extrema-direita realmente contra este sistema? É o partido Chega contra este sistema? Dificilmente o serão.
Há quase um ano, dava-se conta dos cálculos finais de uma investigação internacional «Transparência: o financiamento partidário na UE»: entre 2019 e 2022 estes partidos acumularam 97 milhões em donativos. Em Portugal, o Chega tem vindo a recusar identificar a origem de donativos à Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), apesar de obrigatório. A isto acresce o risco de influência estrangeira em eleições nacionais através de financiamento político para criar instabilidade, como nota o investigador Luís de Sousa nesse mesmo artigo.
Há muito tempo que são conhecidas informações de financiamento com origem em Putin a vários partidos desta vaga: desde o Rassemblement National de Marine Le Pen ao Lega de Salvini. Todos da família política europeia do Chega. Já este ano, uma investigação do Washington Post provava que os mais de 70 posts que Elon Musk fez em apoio à AfD tiveram causalidade directa nos 218 milhões de seguidores que atingiu. Em Portugal, é público que em 2021 entre os doadores do Chega – quando estes ainda se podiam identificar – estavam as famílias Mello, Champalimaud e o dono dos CTT. Também em 2021 a reportagem «A Grande Ilusão» do jornalista Pedro Coelho dava conta do obscuro emaranhado de conluios nos apoios financeiros ao Chega.
Aonde é que eu quero chegar com tudo isto? Certamente não estou a tentar dizer que é a teia de apoios financeiros, vindos bem dentro do sistema, que explica totalmente a consolidação da extrema-direita. Não estou igualmente a querer dizer que é só isto que explica o surpreendente resultado eleitoral do passado domingo. Estou apenas a dizer que todo o discurso anti-sistémico é uma efectiva, e bem paga, encenação.
Acresce a isto uma componente vital a todas as simulações e simulacros do partido de André Ventura: o tempo de antena que tem. Segundo a Marktest, em Março de 2024, o líder do Chega liderou o top da exposição mediática. Esteve no ar quase 9 horas (mais duas horas e meia do que o recém-eleito primeiro-ministro Luís Montenegro) nos telejornais da RTP, SIC e TVI. Ao longo do último ano, Ventura foi quase sempre a segunda ou terceira figura política com mais tempo de antena. Dir-me-ão que depois de eleger 50 deputados seria incontornável tal exposição mediática. Sejamos honestos; em 2020 quando ainda era deputado único já Ventura figurava frequentemente no top 5 de políticos com mais cobertura. Dir-me-ão que em contrapartida o jornalismo tem denunciado todas as relações questionáveis do Chega, que acima refiro, mas que isso, infelizmente, não se liga tanto à realidade vivida dos portugueses como as questões da imigração e da segurança, bem como o deteriorar das suas condições de vida.
Sobre isto, concordo em absoluto com André Carmo, que, num artigo recente, indicava que as décadas de governação do Partido Socialista «defraudaram expectativas» das classes trabalhadoras e que isso explica em muito a transferência de votos para o Chega e consequentemente esta sua vitória. Considero ainda mais nesta equação o esquecimento e abandono dos eleitores nas faixas etárias mais elevadas que os levou a votar no Chega em forma de protesto desesperado.
«Certamente não estou a tentar dizer que é a teia de apoios financeiros, vindos bem dentro do sistema, que explica totalmente a consolidação da extrema-direita. Não estou igualmente a querer dizer que é só isto que explica o surpreendente resultado eleitoral do passado domingo. Estou apenas a dizer que todo o discurso anti-sistémico é uma efectiva, e bem paga, encenação.»
Mas, apesar de tudo isso, é impossível ignorar que os reais interesses que financiam os partidos de extrema-direita, como o Chega, têm impacto directo nas enormes dificuldades de vida com as quais se deparam os portugueses. Vejamos um dos temas mais usados pelo Chega no seu tempo de antena e redes sociais: a imigração. Há dados claríssimos e muito recentes que indicam que nos municípios do país com maior peso da imigração (Vila do Bispo e Odemira, por exemplo) a criminalidade manteve-se estável e bem abaixo da média nacional. Tanto em Vila do Bispo, como em Odemira, o Chega ficou em primeiro lugar.
Perante isto, é importante fazermos duas perguntas: Este crescimento eleitoral é reacção dos eleitores ao elevado número de imigrantes ou ao alarmismo social que os relaciona com questões de insegurança? Os eleitores teriam o mesmo tipo de reacção a este alarmismo caso vivessem num contexto territorial não afectado por problemas económicos, como desemprego e o aumento do custo de vida?
Para responder com certeza precisaríamos de dados, claro. Mas permitam-me dizer que a aprendizagem histórica indicia respostas claras. Aos interesses sistémicos dos quais André Ventura é lacaio, é mais fácil activar a táctica intemporal de pôr o pobre contra o desgraçado do que realmente serem responsabilizados pelos problemas económicos que causam, que nunca resolveram e à custa dos quais se vão consolidando. É especialmente fácil quando o desgraçado não tem voz e o pobre é enganado a achar que finalmente a tem ao votar no Chega.
Volto, por fim, à pergunta provocadora que deixei no título. Sendo precisos, o partido Chega não é fascista. Não porque efectivamente não o seja, mas porque ainda não o sabemos com exactidão. Para bem de todos, é melhor pôr-lhe termo antes de virmos a saber. Mais de um milhão e trezentos mil eleitores votaram no Chega, portanto o desafio é enorme.
Recuperar grande parte desses eleitores implica convencê-los de que «a raiva a nascer nos dentes» é causa e fruto de quem apoia financeiramente o Chega. Implica convencer todos os democratas a sistematicamente nos seus contactos diários, com a família, amigos e colegas de trabalho conversar e debater com informação credível e validada. Implica, ao fazê-lo, travar a atomização e o isolamento que nos marca vincadamente desde a pandemia e que é o maior trunfo de quem nos está a enganar demasiadamente, com demasiada ajuda, há demasiado tempo.
No recente documentário de Cláudia Varejão sobre as primeiras eleições livres em Portugal, uma senhora que acaba de exercer o seu direito de voto é filmada a dizer: «Quero que isto vá para diante. Que seja um bom país. Que dê vida à gente». Não há um milhão e trezentos mil que querem ver os fascistas no poder em Portugal. São bem menos, mas têm bem mais poder para que isto não vá para diante e para que não se dê vida à gente. Saibamos fazer-lhes frente. Hoje e sempre.
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