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|saúde pública

SNS – Os Cri-Cri's de grilo de que o governo gosta

É como se o serviço público estivesse a esbracejar num mar revolto e o governo lhe atirasse um belo paralelepípedo de granito para o ajudar. Tem sido sempre assim nas últimas décadas e assim continua.

Médicos no Hospital de S. João, no Porto 
Médicos no Hospital de S. João, no Porto CréditosEstela Silva / Agência Lusa

Acabei o último artigo com a promessa de abordar os Centros de Responsabilidade Integrada (CRI), a última iniciativa «estrutural» do governo para piorar o SNS. De facto, não basta pegar na grande privada ao colo, transferindo, do serviço público, dinheiro, profissionais e doentes. Para que ela vingue e cresça, o poder tem de dar um abraço de urso ao SNS, infectando-o com os piores vícios de uma gestão «empresarial» vocacionada para o lucro.

Mas, antes de entrar nesse docinho venenoso que vai inocular maior confusão nos serviços hospitalares (os CRI), deixem-me voltar ao velho argumento da (in)sustentabilidade do SNS e à habitual ladainha do «não há dinheiro».

Ora acontece que, sempre que fico a matutar no tema, abro o jornal e zás! Dou logo com um monte de dinheiro mal parado que podia ser usado para melhorar a saúde de todos nós. Desta vez, o que me apareceu ao virar da página já não é propriamente novo, mas constitui um belo mergulho no teatro do absurdo:

A Comissão Europeia, que de vez em quando se arma em cavaleiro andante do rigor e da honradez, exige que o governo português receba os impostos que não cobrou devido a vigarices de empresas do offshore da Madeira que não cumpriram as (mínimas) regras estabelecidas.

Perante tal extravagante exigência, o governo tem recorrido aos tribunais recusando-se a cobrar o dinheiro que lhe é devido, defendendo a virgindade das empresas e o direito ao «facilitismo» dos seus negócios.

«Ora acontece que, sempre que fico a matutar no tema, abro o jornal e zás! Dou logo com um monte de dinheiro mal parado que podia ser usado para melhorar a saúde de todos nós.»

E não é tímido na recusa. Se com os vulgares cidadãos tem mão pesada, aqui funciona ao contrário e nem sequer são os infractores – que não criaram postos de trabalho, nem escritórios, nem nada de jeito – a refilar. É o próprio governo (central e da Madeira), beneficiário do montante em dívida, que volta pela terceira vez aos tribunais europeus para defender o direito de não receber os impostos calculados em 800 milhões de euros mais IVA (Expresso, 21/6/23), o que dará, feitas as contas, cerca de mil milhões de euros limpos.

Não será preciso uma boa dose de lata para dizer que não há dinheiro para o SNS, para os professores ou para outros investimentos de interesse público?

Mas deixemos essas trapalhadas com dinheiros públicos (acabo de saber que «os grandes contribuintes», ou seja, as grandes empresas, tiveram um «esquecimento» de 700 milhões na declaração dos últimos impostos – SIC Notícias de 3/7/23), e voltemos ao prometido: esse bolinho peçonhento que dá pelo nome de Centro de Responsabilidade Integrada, uma ideia já com uns anitos (Dec. Lei n.º 18 de 2017), mas as coisas más são sempre embrulhadas em papel celofane para serem oferecidas, como prenda, ao SNS, afundando-o ainda mais.

«Se com os vulgares cidadãos tem mão pesada, aqui funciona ao contrário e nem sequer são os infractores – que não criaram postos de trabalho, nem escritórios, nem nada de jeito – a refilar. É o próprio governo (central e da Madeira), beneficiário do montante em dívida, que volta pela terceira vez aos tribunais europeus para defender o direito de não receber os impostos calculados em 800 milhões de euros mais IVA (...)»

É como se o serviço público estivesse a esbracejar num mar revolto e o governo lhe atirasse um belo paralelepípedo de granito para o ajudar. Tem sido sempre assim nas últimas décadas e assim continua. Se não, vejamos o que se passa com mais este tijolo que são os CRI:

A forma básica e essencial da organização hospitalar (com provas dadas ao longo do tempo e usada nos mais diversos países) é o «Serviço» clínico. Aquilo que se designa, na linguagem vulgar, como Serviço de Cirurgia, Serviço de Neurologia, Serviço e Ortopedia, etc. Com o seu director, os seus especialistas, os seus internos, os seus enfermeiros, o seu pessoal de apoio, a sua hierarquia, as suas reuniões, as suas escalas, as suas urgências, as suas consultas, os seus doentes, os seus problemas e o seu bom ou mau funcionamento.

Para «melhorar o desempenho» hospitalar, os diversos governos no poder (PS,PSD e CDS) começaram por dar cabo da gestão democrática enchendo-a de jobs for the boys, desorganizando depois a hierarquia dos serviços, congelando as carreiras médicas e a avaliação interpares que davam acesso ao «quadro» e aos diversos patamares de progressão, substituindo-as por contratos individuais de trabalho e avaliações (também individuais) de «desempenho», totalmente desadaptados à medicina moderna, diferenciada e multidisciplinar.

Não por acaso, esse modelo de avaliação é uma das conhecidas estratégias para fragmentar o mundo do trabalho e impor o medo e a obediência acrítica às chefias que, nos hospitais, passaram a ser nomeadas sem atender ao grau de diferenciação ou ao prestígio técnico-científico alcançados.

Como outra prenda, acabaram (em 2009, com o PS no poder e sem grandes explicações) com o regime de «dedicação exclusiva», que tinha cada vez mais adesões, aumentando a permanência e progressiva fixação dos médicos no SNS, homogeneizando a sua organização e estimulando o ensino e a investigação.

Precisamente o contrário do que há anos acontece depois de terem começado a atirar pedregulhos ao serviço público para o salvarem das águas, chorando lágrimas de cebola, na margem, pelo seu provável afogamento.

Para disfarçar o doloso assassínio da «dedicação exclusiva», não se esquecerem de inventar fórmulas enganosas como a da «dedicação plena», duas palavras ocas cheias de nada, destinadas a iludir as gentes menos informadas, vendendo gato por lebre com a ajuda da comunicação social do costume.

Por outro lado, após comprimirem os salários (os médicos, em cerca de uma década, perderam 18% do poder de compra – DN, 28/3/23), passaram a acenar com a cenoura de um ganho extra (com o paleio chocho de recompensar o «mérito» e o «desempenho»), cativando com mais uns cobres quem fizesse «produção adicional», lançando mais um ensaio de pagamento à tarefa, mantendo ainda as coisas dentro do quadro organizacional do Serviço.

Agora, depois de terem preparado o terreno deixando médicos, enfermeiros e outros trabalhadores esganados de fome (de salários justos, de autonomia, de respeito e realização profissional), atiram com a criação generalizada, no interior dos serviços clínicos, de mini-empresas (CRI) integradas, pelo menos, por um médico, um enfermeiro e alguém com competência em gestão, que contratam directamente com a Administração (por três anos e sem terem de dar satisfações ao serviço a que pertencem, nem à sua organização hierárquica) o tratamento de um certo número de doentes em lista espera, recebendo, por isso, mais uns dinheiros como prémio.

Assim, passa a haver, no mesmo espaço físico, partilhando o mesmo equipamento (ou dividindo a falta dele) e os mesmos (ou alguns) profissionais, duas entidades independentes: o «Serviço» e o CRI, que se chocam e enrodilham no mesmo ecossistema, cada vez mais fragmentado e conflituoso.

Porque é que isso equivale a um bolinho doce, mas cheio de veneno?

Porque indo aparentemente ao encontro de alguns dos desejos mais justos e sentidos pelos profissionais (saudosos do um passado em que já tiveram melhor remuneração, maior autonomia, menos burocracia, maior controlo da sua própria actividade), e dos doentes, desejosos de um mais rápido e eficaz atendimento, os CRI constituem uma habilidosa forma «fracturante» da organização médica e hospitalar, a que profissionais e doentes se vão naturalmente ajustando na procura de verdadeiras soluções que nunca vão sendo alcançadas.

Na realidade, poder-se-ia conseguir todas essas respostas acrescentando outras – mais qualidade, mais estabilidade, maior rigor, mais interdisciplinaridade, mais ensino, mais investigação e maior satisfação profissional –, se, em vez de formas enviesadas de «empreendedorismo» cheias de american dream (o sonho americano que é um pesadelo na Saúde), o governo investisse o dinheiro no reforço dos salários, na estabilidade e progressão das carreiras e na homogeneidade estrutural dos serviços clínicos, em vez de os pulverizar, aumentando o seu fraccionamento e dependência de uma administração burocrática, desumanizada e autoritária, que fomenta o racionamento economicista nos cuidados prestados aos cidadãos e os conflitos interprofissionais.

Assim se vai empurrando para o fundo o SNS, como serviço universal, gratuito e de qualidade que a Constituição prevê, que só continua a resistir graças ao prestígio e aos insubstituíveis serviços que presta à população, como se viu durante a pandemia e ainda se vê quotidianamente, sem anúncios nem parangonas, apesar dos pedregulhos que lhe vão atirando «para o salvar».

Para o próximo artigo, fica um outro número de ilusionismo que dá pelo nome de «desempenho» e «produção», assessorado pela criatividade de números conseguidos à martelada…

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