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SNS – A prova do crime

Ao longo das últimas décadas, os portugueses viram definhar o seu Serviço Nacional de Saúde e crescer os grandes grupos privados, o que só foi possível com um «pacto de regime» entre o PS e o PSD.

CréditosAndré Kosters / Agência Lusa

Tinha prometido abordar a manipulação dos números da produção empresarial que os governos PS, PSD, CDS injectaram no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas a negociação que o governo de António Costa está a ter com os sindicatos médicos impõe-se como prioridade.

E a razão é simples: mais do que as questões relevantes, mas circunstanciais, que sempre se levantam numa negociação com trabalhadores do sector público abalados pelos baixos salários, desestruturação de carreiras, sobrecarga de trabalho e inflação, o que a presente posição do governo, face às reivindicações dos médicos do SNS, prova à evidência é que a sua estratégia passa por esvaziar o serviço público, reduzindo-o a uma expressão minimalista de prestador de cuidados aos mais pobres, deixando a parte suculenta do negócio da Saúde para os grandes grupos privados.

E só não vê isso quem, por distracção, clubismo partidário ou iludido pelas palavras floridas com que se disfarçam as mentiras, fecha os olhos e não quer encarar a dura realidade que se desenha à sua frente.

Se não, vejamos:

No discurso corrente de todos os quadrantes ligados ao poder tornou-se aparentemente consensual que os salários dos médicos são escandalosamente baixos, com uma perda, só na última década, de 23% do poder de compra (a que se junta, agora, a perda com a inflação), e que essa é uma das primeiras causas da sua massiva migração para o sector privado e para o estrangeiro.

Também um inquérito feito pela Ordem dos Médicos em 2021, que analisou uma amostra de 6755 respostas válidas, abrangendo diversos graus de qualificação médica e vínculos contratuais, com representação de 20 distritos, confirmou que a «pior remuneração» é o principal factor que leva os médicos a optarem por uma prática privada («A Carreira Médica e as condições de trabalho no SNS versus fora do SNS – Inquérito aos médicos», Ordem dos Médicos, Agosto, 2021 ; págs. 34 e 35).

Essa realidade é também confirmada por Joana Bordalo e Sá, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM): «os médicos estão desmotivados, desanimados, exaustos e rescindem diariamente do SNS para o sector privado ou emigram em busca de melhores condições de trabalho e remunerações justas. Sublinhe-se que não há falta de médicos em Portugal; há é falta de médicos no SNS» (Le Monde Diplomatique, ed. port. Agosto, 2023). 

«Tornou-se aparentemente consensual que os salários dos médicos são escandalosamente baixos, com uma perda, só na última década, de 23% do poder de compra (a que se junta, agora, a perda com a inflação), e que essa é uma das primeiras causas da sua massiva migração para o sector privado e para o estrangeiro.»

Paradoxalmente, mesmo o ministro das Finanças, Fernando Medina, afirma (RTP e DN, 16-6-2022) que «a pressão no SNS não se deve a nenhum condicionamento financeiro (…) o que faltam é médicos», concordando, quanto a este último aspecto, com as análises anteriores.

Tornou-se, por isso, habitual afirmar que é premente tornar o SNS atractivo, de forma a fixar médicos e outros profissionais, evitando a desnatação e «urgencialização» do trabalho hospitalar (já em ruptura) e a falta de cobertura assistencial nos cuidados primários, continuando a haver mais de um milhão e setecentos mil cidadãos sem médico de família, número que tem vindo a aumentar (ao contrário do prometido), por falta de ocupação de vagas, nomeadamente na região de Lisboa e do Algarve, onde, para além de outros factores, o preço da habitação é incompatível com os baixos salários dos potenciais candidatos.

Face ao referido – e haveria muito mais a dizer – o que propõe o governo, depois de mais de um ano de reuniões em que não avançou com nenhuma proposta concreta, mostrando, desde logo, a maior má-fé negocial?

– Aumento do salário base de 1,6%, agora subido para uns ridículos 3,6%, bastante abaixo da inflação anual, o que corresponde a diminuir o salário real e não a aumentá-lo.

– A duplicação do limite de número de horas extraordinárias anuais obrigatórias (de 150 para 300 horas), quando era necessário diminuí-las.

– Diminuição dos períodos de descanso complementar após turnos de serviço, em vez de os aumentar.

– Estabelecimento, para os médicos hospitalares que não fazem urgências (devido à idade ou à especialidade), de trabalho ao sábado, inaugurando um novo «horário semanal normal», digno do pior e mais retrógrado patronato. 

– Diminuição da atractividade dos «prémios de desempenho» atribuídos às Unidades de Saúde Familiar (USF) tipo B, depois de um período de inicial encantamento com mel e pastel que tem começado a azedar. 

Enquanto isso, o ministro anuncia a contratação de médicos cubanos e da América Latina (não especializados) para suprir a falta de especialistas em Medicina Geral e Familiar, que recusam as más condições oferecidas no SNS, e começa a falar na implementação de USF tipo C, totalmente privadas (previstas na lei mas matreiramente deixadas em banho-maria à espera da melhor oportunidade), apontando para a extensão da política privatizadora aos cuidados primários. 

É assim que o governo e o PS querem salvar o SNS?

É assim que o governo e o PS pretendem fixar mais médicos qualificados no SNS?

É assim que o governo e o PS querem premiar os «heróis da pandemia» e a excelência dos profissionais que tanto gabam?

Ou, pelo contrário, esta é a prova real de que o governo PS (no seguimento dos governos PSD/CDS) quer continuar, agravando, a agressão ao serviço público de forma a reduzi-lo a um prestador de cuidados de Saúde acessório e sem qualidade, abrindo ainda mais esse «mercado» aos grandes negócios privados?

Ao longo das últimas décadas, os portugueses viram definhar o seu Serviço Nacional de Saúde e crescer os grandes grupos privados, (nacionais e estrangeiros), o que só foi possível com um «pacto de regime» entre o PS e o PSD, que lhes assegurou a imprescindível garantia de estabilidade do projecto e a segurança das muitas centenas de milhões de euros investidos.

Durante todas essas décadas, os governos PS/PSD/CDS foram tomando uma plêiade de medidas que inocularam no SNS, primeiro «para o melhorar» e, depois, quando se tornou evidente a sua degradação, «para o salvar».

O resultado foi, no entanto, sempre contrário ao anunciado.

Incompetência técnica? Dificuldades ligadas à sua adaptação à «era moderna»? Impossibilidade de financiar o crescente desenvolvimento tecnológico dos cuidados de saúde? Gestão demasiado complexa e desadaptada?

Tudo foi argumentado ao longo do perverso percurso que tem vindo a mudar os hábitos e a consciência dos cidadãos, levando-os, cada vez mais, a encarar como natural e incontornável a procura de alternativas ao SNS, caso possam pagar e se sintam ameaçados pela, cada vez mais efectiva, incapacidade do serviço público em dar uma resposta atempada e de qualidade à procura de cuidados de saúde que a Constituição diz garantir.

Encerramentos e fusões de unidades hospitalares, maternidades e centros de saúde, redução da rede de cuidados de proximidade, entrega dos cuidados continuados a instituições sociais (IPSS) e a empresas privadas, implantação de danosos métodos de gestão empresarial com contratos e avaliações individuais e recurso a empresas de trabalho precário, para além de outras inovações como a nomeação de um «CEO» (director executivo) para o SNS, tudo foi feito a pretexto de tornar o serviço público «eficaz», «sustentável» e «livre de desperdícios». 

Tudo foi feito e tudo tem falhado, levando a que, ao contrário do apregoado, cada ano seja pior para o serviço público e melhor para o sector privado (o que também acontece na «Europa dos mercados»).

Para quem acompanhou esse sinuoso caminho e conhece minimamente o que se foi passando nos últimos anos – das negociações da «Lei de Bases», às do «Estatuto do SNS» e, agora, com os sindicatos médicos e de outros profissionais da saúde –, não pode deixar de ter consciência das manobras dilatórias, dos esdrúxulos pormenores, das pequenas manhas governamentais com que se foi travando qualquer progresso, mantendo linhas vermelhas que impedem o desenvolvimento do SNS.

A forma como se acenam «prémios» e «estímulos» sem travar o afundamento dos salários, como se atiram ofertas remuneratórias «para inglês ver», cheias de condicionantes e alçapões (o Correio da Manhã de 9/9/23 chegou a publicitar em título: «aumento de 917 euros não convence médicos»!...) e se inventam conceitos (como o da «dedicação plena» para esconder a recusa da «dedicação exclusiva»), ou se anunciam falsas «revoluções», como a da multiplicação de Centros Responsabilidade Integrada, nos hospitais, e Unidades Locais de Saúde, nos cuidados primários, enquanto, no terreno, se continua a estimular a mercantilização da assistência, é prova de que o governo pretende continuar a iludir os cidadãos fazendo-os acreditar num futuro mais risonho que, por esse caminho, não existe.

Voltando ao essencial, e à realidade que a estratégia governamental não consegue iludir, é que sem médicos não há SNS, e sem salários dignos não há profissionais especializados no serviço público e este definha.

É também essa a razão que leva os médicos do SNS a fazerem greve, com a espantosa adesão que ronda os 80% a 90% de uma classe profissional tão reticente a assumir essa forma de luta.

Por muito que custe a acreditar a muita gente, é a degradação do SNS que o governo de António Costa objectivamente pretende, ao propor remunerações humilhantes aos seus profissionais, cedendo a interesses contrários aos que a Constituição institui. 

A prova está feita.

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