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SNS: Má gestão ou má política?

É quase comovente ver o coro de carpideiras – do velho «arco do poder» à IL e ao Chega – bolsando a sua preocupação pela falta de resposta do SNS, mal escondendo a vontade de o reduzir a uma marginalidade caritativa reservada às camadas mais pobres.

CréditosAndré Kosters / Agência Lusa

A crise do nosso serviço público de Saúde (SNS) é uma das principais preocupações dos portugueses e um dos temas mais desejado de debate na presente campanha eleitoral (70% dos inquiridos – Público, 7-2-24).

Os dirigentes partidários têm, por isso, centrado uma boa parte da campanha em soluções para a sua reconhecida degradação, até porque, como todos dizem, o SNS «é uma das maiores conquistas da nossa democracia».

Mas se o discurso elogioso mostra o prestígio que o SNS alcançou, põe também em evidência a duplicidade dos que lhe mordem as canelas e lhe desvirtuam a alma a pretexto de o «tornar sustentável», de o «modernizar», de o «tornar mais produtivo», «mais eficaz», «mais empreendedor», enfim, o mais que se possa imaginar numa tão hipócrita como exuberante expressão de bondade e empenho.

Para quem tem a memória curta ou se deixa embalar por cantos de sereia é bom lembrar que, desde a sua fundação, os partidos da direita «moderada» aos mais à direita, foram sempre contra o SNS e a sua marca de gratuitidade, universalidade e qualidade de grande prestador estatal de cuidados de saúde que estão inscritas na nossa Constituição. 

Foi porque com um bom SNS não haveria grandes negócios para ninguém que, em 1979, o PSD e o CDS foram contra a sua fundação. Agora a ofensiva ganhou mais força com o Iniciativa Liberal e o Chega. E se ainda não explicitam os seus desejos de extermínio com mais clareza é porque julgam (e bem) que não têm condições para o fazer por temerem o repúdio da população. Mas é essa a posição dos partidos de direita (partilhada por sectores do PS) que quotidianamente o sufocam chorando lágrimas de crocodilo, como o filho que mata os pais e depois se queixa amargamente de ser órfão.

É quase comovente ver o coro de carpideiras – do velho «arco do poder» à IL e ao Chega – bolsando a sua preocupação pela falta de resposta do SNS, mal escondendo, nas soluções que propõem, a vontade de o reduzir a uma marginalidade caritativa reservada às camadas mais pobres.

«Agora a ofensiva ganhou mais força com o Iniciativa Liberal e o Chega. E se ainda não explicitam os seus desejos de extermínio com mais clareza é porque julgam (e bem) que não têm condições para o fazer por temerem o repúdio da população.»

No ambiente enganosamente «natural» que a comunicação social dominante lhe dá, já esquecida do estafado argumento do «não há dinheiro», a crise do serviço público de saúde estaria agora essencialmente centrada em problemas ligados à má organização, má gestão, baixa rentabilidade ou excesso de desperdício, e não a uma opção política convenientemente disfarçada com vestes tecnocráticas. 

É nessa realidade virtual que se enquadram «medidas estruturais» como a criação de uma direcção executiva, a implementação de Centros de Responsabilidade Integrados (CRI), a generalização das Unidades de Saúde Familiar tipo B (com piores condições), as Unidades Locais de Saúde (mal dimensionadas e hospitalocêntricas) ou a «municipalização» dos Centros de Saúde, em que parte do investimento e da contratação de recursos humanos fica entregue aos municípios.

Nada disto, seguramente, vai resolver os graves problemas do serviço público, ligados à sua fragmentação e ao encerramento e fusão de unidades hospitalares, ao emagrecimento da rede de serviços de proximidade, à entrega dos cuidados continuados a instituições privadas ou de apoio social, à sangria de médicos e de outros profissionais (segundo dados oficiais, nos últimos cinco anos, vinte mil profissionais, dos quais 5043 médicos, saíram do SNS – DN, 7-2-24). 

O mesmo se podia dizer e foi dito aquando do fraccionamento dos tradicionais Centros de Saúde com a «invenção» no seu seio de grupos autónomos – as Unidades de Saúde Familiares (USF) – que os foram progressivamente substituindo.

Apresentadas na altura (2006) como uma revolução que iria dar resposta aos principais problemas da rede de cuidados primários, estes persistiram e até se agravaram, como se constata pela crescente «urgencialização» do acesso e progressivo aumento de cidadãos sem médico de família – um milhão setecentos e onze mil em finais de 2023 – desmentindo todas as promessas governamentais.

Apesar de algumas resistências, as USF foram-se implantando com o aceno de maior autonomia e melhor remuneração (nas USF tipo B), a troco de mais trabalho e da fragmentação e «empresarialização» organizativa dos tradicionais Centros de Saúde a que se acrescentou a consignação legislativa das USF tipo C, totalmente privadas.

Estas últimas foram deixadas em banho-maria e convenientemente esquecidas, ficando a aguardar um momento mais «maduro», dando agora os primeiros sinais de vida pela boca do ministro Pizarro que anunciou a sua próxima (e pouco debatida) concretização. 

Hoje, torna-se evidente que, com essa e outras «revoluções» de organização e gestão (não por acaso, o alargamento das USF integrou a lista de exigências da troika), os problemas no SNS têm-se vindo a somar em todas as frentes, por desestruturação da sua coerência organizativa e falta de profissionais devido à redução dos salários reais, à sobrecarga de trabalho e à baixa perspectiva de melhorias futuras.

Vale a pena sublinhar que, ao contrário do que frequentemente é dito, Portugal não tem falta de médicos nem de pessoal clínico qualificado. O seu défice apenas existe no SNS, por falta de condições de trabalho, de remunerações dignas e respeito pela diferenciação e dedicação dos seus profissionais, bem demonstrada durante a pandemia. 

Essas condições existiam nas primeiras décadas do SNS (apesar das insuficiências de um país mais pobre e menos desenvolvido) e só não se mantiveram nas últimas devido a políticas de estrangulamento do serviço público enquanto aumentava o  apoio ao sector privado, tornando o SNS cada vez mais inabitável.

Agravando a situação, nos últimos anos, um número crescente de jovens médicos – quase um quinto dos mais de mil e oitocentos que acabaram o internato geral em 2023 (JN 26-11-23) – tem optado pela não especialização, preferindo o trabalho precário fora do SNS (melhor remunerado), abandonando uma progressão formativa ainda há pouco ambicionada por todos. 

Perante o abismo que se adivinha na cascata de encerramentos de urgências, serviços de partos e até de «linhas verdes» de doenças coronárias e de AVC, quais são os próximos passos anunciados pelo PS para «salvar o SNS», para além da inventada «Dedicação plena» com que disfarçou a recusa da «Dedicação exclusiva» de boa memória, que um governo PS liquidou em 2009? 

Algumas apostas de fundo que se salientam no discurso socialista – Centros de Responsabilidade Integrados, (ler artigo anterior), a «municipalização» dos Centros de Saúde e alterações do estatuto da Ordem dos Médicos (que facilitam a liberalização do «mercado») – constituem a parte central da «reforma em curso» que o novo Secretário-geral do PS promete manter. 

E lendo notícias sobre o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), prova de bondade da adesão à União Europeia (que trava o nosso desenvolvimento há mais de duas décadas), fica-se também a saber que, para receber 800 milhões da fatia que lhe cabe, Portugal está obrigado a pôr em prática essas medidas, sem as quais não consegue um tostão.

«Perante o abismo que se adivinha na cascata de encerramentos de urgências, serviços de partos e até de "linhas verdes" de doenças coronárias e de AVC, quais são os próximos passos anunciados pelo PS para "salvar o SNS", para além da inventada "Dedicação plena" com que disfarçou a recusa da "Dedicação exclusiva" de boa memória, que um governo PS liquidou em 2009?»

Face a isto, será ainda racional pensar que a crise do SNS se reduz a uma questão de má gestão ou de desperdício e não a uma estratégia imposta pelos grandes interesses que dominam o país e a «Europa»?

Será que o progressivo definhamento dos serviços públicos de saúde (como o NHS inglês, o nosso SNS e os de outros países da Europa governados por partidos «socialistas», «social-democratas» ou de extrema-direita) se deve ao facto de todos os gestores serem incompetentes, ou a uma política de desestruturação escondida em belas fórmulas de modernização e eficácia que, no «fim do dia», agravam os problemas, com os habituais lamentos, acusações de falhanço e propostas de ainda maior privatização?.

A luta dos médicos do SNS pela reposição de salários dignos, carreiras estruturadas e melhores condições de trabalho (à semelhança dos protestos dos profissionais de Saúde que alastram por toda a União Europeia) marca indelevelmente o ano de 2023, como uma digna e responsável reacção às políticas agressivas que os governos PS, PSD e CDS levaram a cabo nas últimas décadas, favorecedores da desnatação e «encolhimento» do serviço público e do crescimento dos grandes grupos privados (praticamente inexistentes até à Lei de Bases de 1990).

Bastaria mudar de rumo e restabelecer a gestão democrática dos hospitais e unidades do SNS, o vínculo à função pública, as carreiras médicas alargando os seus princípios a outros profissionais, repondo o estatuto de «dedicação exclusiva» nos mesmos moldes e com as mesmas majorações que existiram até 2009, recentrando a gestão nos objectivos clínicos e abandonando a carga burocrática e a ganga ideológica «empresarial« injectada na filosofia interna do serviço público, para o SNS melhorar a resposta e voltar a tornar-se atractivo para os seus profissionais.

O PS, nos últimos oito anos, pôde fazer isso. Nos primeiros quatro teria podido contar com o apoio dos partidos à sua esquerda, mas recusou-o. Nos últimos dois nem precisaria disso porque tinha a maioria absoluta na Assembleia da República. Não o fez. E não o fez porque, embora tivesse os meios, não teve vontade política para o fazer. Pelo contrário, anunciou e levou à prática medidas gravosas para o serviço público (como o abrir de portas às USF tipo C e o alargamento dos CRI) continuando a apoiar e a subsidiar os grandes investidores no «negócio» da saúde.

«(...) fica-se também a saber que, para receber 800 milhões da fatia que lhe cabe, Portugal está obrigado a pôr em prática essas medidas, sem as quais não consegue um tostão.»

Quando Pedro Nuno Santos, o novo líder do PS, afirma que o seu programa é «não desistir do SNS» e se mostra disposto a travar «o desvio de dinheiro público para o negócio privado da saúde», parece querer enveredar pelo caminho certo. Mas quando, simultaneamente, diz que vai deixar que as «reformas em curso continuem e se desenvolvam», o que está a prometer é que tudo vai continuar a agravar-se, mesmo que ponha uns remendos para atrasar o naufrágio que o PSD e outros partidos de direita querem acelerar.

Não é essa a solução. Não é com medidas desadequadas e imposições da «Europa» neoliberal (que o governo PS e os partidos «europeístas» subscrevem) ou propostas populistas de aprisionamento de jovens médicos a um SNS que já não os atrai e os explora (os médicos internos fazem uma média de 240 horas não remuneradas/ano – Jornal de Negócios, 10-1-24) que o nosso serviço público de saúde sairá reforçado e conseguirá cumprir os desígnios que a Constituição consagra. 

A solução é inverter o sentido e voltar ao espírito e à estrutura organizativa que formataram e asseguraram o crescimento do SNS nas suas décadas iniciais e isso só será conseguido com soluções políticas menos ambíguas e contraproducentes que as apontadas pelo novo Secretário-geral do PS. 

Por isso, e se olharmos para o passado, saberemos qual é o voto mais seguro para salvar o SNS. O voto «que nunca falhou» para melhorar as condições de vida dos portugueses. O voto que pode empurrar o PS para uma política mais patriótica, mais democrática e mais de esquerda.

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