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|memória

Do tempo

O que foi o ano de 2022 continuará a entrar-nos por 2023 adentro. As nuvens adensam-se. Sentimo-lo, apesar da quadra que se quer festiva. Sentimo-lo, mesmo que sem desesperança.

Créditos / revistaensinosuperior

Por estes dias, as agendas estão a chegar às últimas folhas. As velhas agendas em papel. Um ano inteiro de compromissos, de afazeres, de aniversários, de pequenas notas, tantas vezes indecifráveis para quem não conhece o contexto ou não consegue interpretar a caligrafia.

Por estes dias, com o ano civil a chegar ao fim, faz-se o balanço do tempo que está prestes a acabar, constroem-se vertiginosas listas do melhor e do pior. Escolhem-se os acontecimentos mais relevantes e significativos, em afã de cronista. Ficam de fora, tantas vezes, os pequenos gestos, acontecimentos que se perdem na poeira dos dias, o que parece apenas do mundo quotidiano. Ficam de fora, tantas vezes, aqueles eventos que só mais tarde se tornarão inteligíveis, com o seu desenrolar. Aqueles que, com o renovado olhar do nosso presente, se constituem – ou que nós os construímos –  como peças, como partes, como fios de um processo. Afinal, o passado pode sempre ser presente.

Escrever a última página de uma agenda, não significa, assim, na verdade, encerrar o tempo passado. Esquecidas, guardadas em gavetas, no fundo de caixas ou mesmo deitadas fora, pertencem a um tempo que foi, mas que continua de alguma forma a tecer ligações com o presente. Há anos que não nos saem da pele. Há anos que não nos saem da memória. Que não acabam nunca. 

Acontecimentos que partilhamos como fundadores do nosso tempo. Dias de revolução. Que quebraram a regularidade dos dias, dos que pareciam sempre iguais. Aqueles que na vida individual e na sociedade marcam um antes e um depois. Felizes e faustos. E ainda os outros, desventurados e desventurosos.

«El tiempo es bastante amable con nosotros, sus fugaces pasajeros, y nos da permiso para creer que hoy puede ser el primero de los días, y para querer que sea alegre como los colores de una verdulería»

Eduardo Galeano

O que foi o ano de 2022 continuará a entrar-nos por 2023 adentro. As nuvens adensam-se. Sentimo-lo, apesar da quadra que se quer festiva. Sentimo-lo, mesmo que sem desesperança.

Galeano, no Los Hijos de los dias (Os filhos dos dias), um calendário muito particular de tudo o que é humano, escreveu sobre o primeiro dia de janeiro. Titulou-o como Hoje e lembrou-nos:

«Hoy no es el primer día del año para los mayas, los judíos, los árabes, los chinos y otros muchos habitantes de este mundo.

La fecha fue inventada por Roma, la Roma imperial, y bendecida por la Roma vaticana, y resulta más bien exagerado decir que la humanidad entera celebra este cruce de la frontera de los años.

Pero eso sí, hay que reconocerlo: el tiempo es bastante amable con nosotros, sus fugaces pasajeros, y nos da permiso para creer que hoy puede ser el primero de los días, y para querer que sea alegre como los colores de una verdulería».

Voltar a Galeano para nos recordarmos que o nosso tempo não é, necessariamente, o tempo de todos, o tempo universal. Que existiu e que existe uma outra forma. Outras formas. Recordamos que quem classifica, quem ordena, também nos restringe.

Mas Galeano também nos recorda de outras coisas que podemos reconhecer como importantes. Existe amabilidade. É esta que o tempo nos permite, a nós, os seus fugazes passageiros: pensar que estamos no dia primeiro, inicial. O primeiro dos dias. Que pode ser alegre. Que podemos querer a alegria. Mesmo que as nuvens se adensem.

Talvez seja um momento pessoal. Fechar uma agenda. Guardá-la. Abrir a nova, com folhas brancas, límpidas e vazias. A promessa. Com o tempo que queremos que se renove, no ciclo de recomeços que conhecemos: velho ano, novo ano. Velho ano, novo ano.

Mas também é – ou pode ser – um momento político. Uma ideia de futuro que não se limita, que não se esgota nas expectativas pessoais. Nos desejos particulares e individuais. Imaginar o futuro, além do nosso imediato, do nosso espaço e tempo. Do nosso olhar que não abarca tudo. Do tempo que nos falta.

Além de nós. Connosco, mas além de nós. Enquanto comunidade. Enquanto plural.

«Talvez seja preciso imaginar que o novo ano, enfim, que o futuro, pode ter configurações diferentes. Talvez neste sentido se possa pensar com alegria e com cor. Mesmo que as nuvens se adensem. Ou talvez porque as nuvens se adensem.»

Talvez seja preciso pensar em como escrever fora do que nos impõe a agenda. Fora das linhas. A folha do dia com as horas. Não sei como é a vossa, mas a minha começa por marcar as nove horas e acaba às 20. É expectável uma jornada de trabalho longa, tão longa? Lutar por mais do que o tempo de trabalho, o tempo visto como útil. 

Dizer uma agenda nova, é também dizer do tempo por vir. Do porvir. Talvez seja o tempo de ter direito a pensar as diferentes possibilidades de futuro, de futuros, tantas vezes limitadas pela formas como nos querem dizer o que é pensável.

Talvez seja preciso imaginar que o novo ano, enfim, que o futuro, pode ter configurações diferentes. Talvez neste sentido se possa pensar com alegria e com cor. Mesmo que as nuvens se adensem. Ou talvez porque as nuvens se adensem.

Por estes dias, as agendas estão a chegar às últimas folhas. Mas há sempre primeiros dias.


A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990

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