Mensagem de erro

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|eleições presidenciais

Candidaturas fantásticas: o fantasma do dia de reflexão

Sentado no teu sofá, a fumar um cigarro com uma mão, empunhando o comando da box com outra, está a assombrosa figura de um velho, de uma velhice indefinível, insólita, que o cancro faz à idade e à pele.

Ilustração de Irene Sá, Janeiro de 2020
Ilustração de Irene Sá, Janeiro de 2020CréditosIrene Sá

O pio lúgubre das baterias esvaídas grasna-te um aviso ao ouvido quando respondes «Sei lá» à pergunta que hoje todos fazem:

— Então, já sabes em que vais votar?

— Logo vejo — acrescentas tu.

«Logo» é amanhã e hoje é o que desacertadamente se convencionou chamar «dia de reflexão». Dias nacionais há para tudo em Diário da República: para o Natal e para o Carnaval, para os namorados e dos aleijados, das mães e para os cães, da conventual doçaria e do Imaculado Coração de Maria. Mas nenhum outro conhece tão fraca observância como esta vesperal censura que o resto do mundo designa de «Dia de Silêncio». Só nós, portugueses, que nesse sábado fazemos de tudo um pouco menos reflectir sobre o que quer que seja, é que pretendemos que se calados estamos é porque em profundíssima reflexão nos achamos. Durante 300 anos reflectimos a inquisição, por outros mais 50 não menos profundamente reflectimos o fascismo e, com igual benefício introspectivo, reflectimos agora, em amostras gratuitas de 24 horas amordaçadas, o que fazer com a parte da democracia que nos toca.

— Bem, daqui a nada dizes-me que nem vais votar…

— Também deixa lá que o resultado era o mesmo. Não há grande escolha: o Marcelo tem isto no papo — sentencias tu.

Soa novamente o pio que agoira o fim, logo confirmado dum relance de olhos: três por cento de bateria.

— Até porque a verdade é que não temos grande escolha — declaras tu.

«— Quem é você? — perguntas tu — Como é que entrou aqui?!
Alheio ao terror na tua voz, o homem inala o fumo e responde, com uma nuvem, como se desse uma informação óbvia.
— Eu sou o Fantasma das Eleições Passadas»

Nesse preciso momento batem nós de dedos na madeira da porta, cá em cima, já no prédio. Outro toque, seco como um peso inanimado, separado da pancada anterior por um incompreensível hiato que deixa a realidade do apartamento suspensa, consciente de si mesma, as prateleiras, a mesa, a janela, a porta do quarto entreaberta, para escutar, a terceira pancada, agora, ameaçadora na força — e o silêncio oco que se segue, que já entrou.

— Espera um segundo, estão a tocar-me a porta — e já vais a caminho, mas logo entre a mão e a orelha vibram as três badaladas que anunciam o fim.

— Olha, vou ficar sem…

Se vais pôr o telemóvel a carregar, vai para o número 10.

Se vais à porta ver quem é, salta para o número 20.

2

Inclinando levemente a cabeça na tua direcção, o fantasma abre os olhos com um ar surpreso e solta uma gargalhada metálica.

— Na barriga da mãe já o Marcelo fazia férias com banqueiros! Ou você acha que se nasce sobrinho do ditador Marcello herdando só o nome? Podia-lhe contar umas coisas sobre a reencarnação de Lelé da Cuca no Governo de 79-82, quando quis cortar salários, facilitar os despedimentos e alargar os contratos a prazo, mas mais vale recordar-lhe de algo mais recente:


— Adivinhe lá agora o que é que o presidente Marcelo fez em 2019 perante esta lei, considerada inconstitucional em 2008, que veio tornar a vida dos trabalhadores ainda mais precária!

Se respondes que a vetou, salta para o número 15.

Se achas que a deixou passar, salta para o número 12.

3

— Nada mais errado! — anuncia o fantasma — André Ventura dedicava-se então a criticar o «populismo penal», o «novo tipo de pânico social que se tornou responsável pela estigmatização de certas comunidades» e a «discriminação de cidadãos com base nas suas características étnicas e religiosas para criar e aprovar legislação que em circunstâncias normais o bom-senso não permitiria jamais que vingasse». Mudam-se os tempos, mudam-se as togas! Melhor sorte com a próxima pergunta — prossegue o fantasma — Com quem é que o Ventura prometeu que nunca se coligaria?

Se achas que Ventura prometeu que nunca se coligaria com o PS, passa para o número 27.

Se achas que o Ventura prometeu que nunca faria coligações com qualquer partido, passa para o número 32.

4

O fantasma levanta-se de um pulo como uma navalha de ponta e mola e aponta-te um olhar cortante.

— Talvez estejamos a falar de outro André Ventura… — sibila o fantasma, caminhando na tua direcção — porque o Ventura que eu conheço, só faz frente à corrupção quando vai à frente dela a timonar. Estamos a falar do André Ventura que está a ser investigado no processo «Tutti Frutti», que faltou a mais de metade das comissões da Assembleia da República e que é apoiado por ilustríssimos ex-banqueiros do BES como Salvador Posser de Andrade, Pedro Pessanha e Francisco Sá Nogueira? — sentes o seu hálito, húmido e gélido como as giestas madrugais, a lamber-te a face — Diga-me, mas pense bem antes de dizer que eu tenho toda a eternidade para essa reflexão, estamos a falar de André Ventura, que acumulou funções de deputado com as de consultor fiscal na Finpartner, em que se distinguiu na artes da evasão fiscal e da distribuição de vistos dourados por imigrantes milionários? Estamos a falar desse Ventura?

Se insistes que André Ventura é um político honesto, passa para o número 9.

Se garantes que já não planeias votar em André Ventura, passa para o número 18.

5

O fantasma leva a mão à testa e abana a cabeça.

— Na primeira volta fazem frente a Marcelo todos os que contribuírem para que tenha menos de 50 por cento e um voto. Ou seja, todos os votos que não sejam em Marcelo fazem frente a Marcelo, independentemente da expressão eleitoral que tenha cada candidato. Tente lá outra vez — e apontando-te o comando da box, aperta-te no rewind até voltares ao número 7.

6

— Está errado — responde o fantasma — mas devo admitir que a pergunta estava armadilhada: André Ventura votou contra, depois mudou de voto para se abster e logo a seguir… votou a favor — concluiu o fantasma, deixando escapar uma gargalhada.

— Próxima pergunta: o que quer fazer André Ventura com serviços públicos como a Saúde, a Educação, os Transportes e a segurança social?

Se achas que Ventura defende que devem estar vedados a ciganos e estrangeiros, salta para o número 17.

Se achas que Ventura quer, simplesmente, acabar com eles, passa para o número 26.

7

— Estamos a chegar a algum lado! Está certíssimo! — responde o fantasma, sorridente — Duas vezes pediu Ana Gomes uma maioria absoluta para José Sócrates, quatro vezes defendeu a austeridade dos PEC, durante dez anos dirigiu o PS, que por sua vez dirigia o país. Já para não falar da sua carreira internacional… Diga-me lá se você seria alguma vez seria capaz de escrever isto:

«Vejo a praça da Liberdade a abarrotar em Benghazi, a demonstrar como têm estado errados os comentadores de bancada, em Portugal e não só, que papagueiam as teses khadaffianas de que não há sentido de unidade nacional na Líbia, de que a fragmentação tribal impede, bloqueia, dificulta, bla, bla, bla.... Não há pachorra!...»

— Sabe o que aconteceu à Líbia com a «intervenção militar cirúrgica para travar o psicopata» que Ana Gomes patrocinou? Já para não lhe falar da sua amiga genocida em Myanmar, dos nazis ucranianos e dos «rebeldes islamistas moderados» na Síria.

Se respondes que Ana Gomes é a única que pode fazer frente a Marcelo, salta para o número 5.

Se confessas que estás a ponderar votar noutro candidato, salta para o número 29.

8

— A sua resposta é parcialmente verdadeira porque a verdade é sempre parcial — explica o fantasma — André Ventura defende uma taxa única de IRS de 15 por cento, independentemente dos rendimentos. Isto levaria a que, por exemplo, quem ganha 800 euros passasse a pagar mais 92 euros, ao passo que quem ganha 3600 euros passasse a pagar menos 536.

Se respondes que tudo isso pode ser verdade mas, ao menos, André Ventura faz frente à corrupção, passa para o número 4.

Se garantes que não planeias votar em André Ventura, passa para o número 18.

9

Os olhos do fantasma faíscam de fúria. Num esticão estrepitoso e violento estala o entorpecimento do seu longo pescoço, como se caminhasse sobre canas secas. Aponta-te o comando da televisão e, antes de carregar no rewind, ordena-te:

— Reflicta melhor.

Regressa ao número 4.

10

A tripla do quarto está cheia (desliga-se este candeeiro) e este cabo está estragado, mas já ligou: um pauzinho a piscar (é só dar um jeito). Subitamente, com um garrote no estômago e uma espuma fria de terror a subir-te o esófago, ouves a tua porta da rua a abrir.

Se te diriges para a porta, salta para o número 16.

Se tentas ligar o telemóvel para chamar a polícia, salta para o número 11.

11

As tuas mãos trementes e suadas pressionam o botão que acende o telemóvel, mas a máquina não acorda. Insistes com mais força, dás novo jeito ao cabo, mas estacas, petrificado pelo arrepio gélido, como um basilisco a trepar-te a espinha, quando o som de passos se adentra calmamente pelo teu apartamento.

— Não tenha medo. Só estou aqui para ajudar. — diz uma voz masculina na sala.

Salta para o número 16.

12

O fantasma sorri.

— Claro que deixou passar! Um afecto para o governo, outro afecto para o George Michael, outro para o Bolsonaro… só ficaram a faltar as trabalhadoras da Triumph e a viúva de Ihor Homeniuk. Critérios de razoabilidade, ou não tivesse o seu presidente classificado como «razoável» um dos salários mínimos mais baixos da Europa Ocidental, com que só se empobrece e só com o qual ninguém sobrevive. Marcelo será sempre o histórico dirigente do PSD, que não entregou o cartão quando o seu partido atirava milhões de concidadãos, piegas, para o relento, para o desemprego ou para a emigração. Será sempre o dirigente do partido que privatizava tudo à pressa, da ANA à Vinci ao pavilhão Atlântico para o genro de Cavaco, à concessão da Ponte 25 de Abril à Lusoponte, cujo presidente executivo é, nem mais nem menos que outro grande amigo de Marcelo, Ferreira do Amaral, ministro tão contraditório que negociou a concessão contra si mesmo, com natural benefício próprio.

— Pronto, não votarei Marcelo — renuncias tu — Agora desapareça de uma vez! Eu nem sequer acredito em fantasmas!

O fantasma ensaia, com afectação teatral, um bioco ofendido.

— Que falta de chá! E eu a pensar que estávamos a chegar a algum lado! Acreditava até há segundos no Marcelo, mas não acredita num fantasma que nunca o enganou! Se calhar o melhor e deixá-lo na pausa e, como você sugere, desaparecer.

Levanta-se altíssimo, quase irreal, os cabelos sujos poisados como abutres no fato rafado. Aponta-te agora o comando e, ao premir de um botão, perdes a autoridade sobre o teu próprio corpo, inerte agora como animal embalsamado, os teus olhos presos no seu maligno sorriso que te diz:

— Cidadãos assim — prossegue num tom enojado — mais valia que ficassem assim, quietinhos.

Calmamente, acende outro cigarro, tira o casaco e observa o teu apartamento. Os teus olhos não estão autorizados a acompanhá-lo quando ele sai do teu campo de visão, mas logo pergunta:

— Estas crianças — distingues o som de madeira a pousar no aparador — são seus filhos? Não… sobrinhos! Ou até primos, talvez. Quando crescerem, terão de pagar o preço de você estar assim, inerte, em pausa, a vida toda. Do ponto de vista histórico, não são os cidadãos que pagam o preço da própria paralisia, mas a sua descendência. Quando estas crianças forem cidadãos, não lhe perguntarão porque não mexeu um dedo para evitar que lhes roubassem a Segurança Social e lhes destruíssem o Serviço Nacional de Saúde, porque, consequência mais nefasta de todas as causas, eles próprios já não se lembrarão de como tudo aconteceu.

«— É chegada a hora de nos despedirmos — anuncia o fantasma, levantando-se [...].
— Acabou? — perguntas tu.
— Acabou uma assombração, mas outro espectro, das escolhas que amanhã fizer, e esse sim muito mais sinistro porque invisível e perpétuo, continuará a assombrar as vidas penantes dos cidadãos arrependidos, dos trabalhadores abstencionistas e dos eleitores traídos»

— Bem, está na hora de me ir embora — remata, aproximando muito a sua cara da tua: a sua pele parece borracha, os seus dentes, brancos como se tivessem sido pintados, têm em comprimento uns milímetros a mais. Sentes um terror desmaterializado sem aceleração cardíaca, nem jactos de adrenalina, nem arrepios na espinha, nem pele de galinha, nem murros no estômago nem garrotes na garganta, nem deglutições em seco, nem nada. Nada. O nada causa-te ainda mais terror, como uma morte que te fizesse a ficar a olhá-la depois de morreres.

— Não faça essa cara, foi você que escolheu a paralisia… A histórica, a eleitoral, a política, a cidadã! E eu bem lhe disse que há sempre escolhas! O que foi, porque é que está assim a olhar para mim? O quê, não me diga que mudou de ideias! Tem a certeza que quer continuar?! — entusiasmadíssimo com o seu monólogo, o fantasma agarra de novo no comando e carrega no play.

— Sim, quero! Quero! Quero… Por favor não faça isso novamente — suplicas tu, por fim liberto.

— Só depende de si! Então continuemos, que são do mesmo vinho as nódoas na toga de Marcelo e nas de alguns dos seus adversários. Por exemplo, é certo que Marcelo concordou com a privatização da EDP e da GALP, duas das mais lucrativas empresas públicas portuguesas. Desde que foram privatizadas, os preços dos combustíveis e da electricidade ainda não pararam de aumentar, mas Marcelo não esteve sozinho a defender a privatização da EDP e da GALP. Sabe que outro candidato concordou com Marcelo?

Se respondes Tino de Rans passa para o número 13.

Se respondes Ana Gomes, passa para o número 22.

13

O fantasma fita-te com uma expressão vazia, apaga o cigarro no braço do sofá e a sua voz metálica acusa:

— Os cidadãos têm poucas razões para «RIR» e, para seu infortúnio, o que está em causa é demasiado sério para brincarmos às candidaturas — acusa e, apontando-te o comando, carrega no rewind de volta até ao número 12

14

— Tempos houve em que uma maioria absoluta para Sócrates, chegava bem para Costa e Ana Gomes, pelo que considerarei a sua resposta acertada — responde o fantasma — Duas vezes pediu Ana Gomes uma maioria absoluta para José Sócrates, quatro vezes defendeu a austeridade dos PEC, durante dez anos dirigiu o PS, que por sua vez dirigia o país a golpes de alfange no código laboral. Já para não falar da sua carreira internacional… Diga-me lá se, no início da Guerra da Líbia, você alguma vez teria a lata de escrever isto:

«Vejo a praça da Liberdade a abarrotar em Benghazi, a demonstrar como têm estado errados os comentadores de bancada, em Portugal e não só, que papagueiam as teses khadaffianas de que não há sentido de unidade nacional na Líbia, de que a fragmentação tribal impede, bloqueia, dificulta, bla, bla, bla.... Não há pachorra!...»

— Realmente não há pachorra! Mas, sabe o que aconteceu à Líbia com a «intervenção militar cirúrgica para travar um psicopata» que Ana Gomes patrocinou? Já para não lhe falar da sua amiga genocida em Myanmar, dos úteis nazis ucranianos e dos «rebeldes islamistas moderados» na Síria.

Se respondes que Ana Gomes é a única que pode fazer frente a André Ventura, salta para o número 5.

Se confessas que nunca pensaste em votar Ana Gomes, salta para o número 29.

15

O fantasma tenta acender mais um cigarro, mas o isqueiro não colabora.

— Já compreendo porque é que estava a ponderar votar Marcelo — admite baixinho quando o cigarro por fim se acende — Porque está completamente a leste de tudo! — grita-te, encolerizado.

Os olhos do fantasma, duas enormes esferas baças, chispam de raiva.

— Tentemos novamente! — ameaça.

Aponta-te o comando da box, carrega na seta para trás e, tu voltas ao número 2

16

Sentado no teu sofá, a fumar um cigarro com uma mão, empunhando o comando da box com outra, está a assombrosa figura de um velho, de uma velhice indefinível, insólita, que o cancro faz à idade e à pele, pálida como papel amarrotado, e ao cabelo, pardacento e esparso e sujo.

Dirige-te agora mesmo um sorriso canino, exibindo para fora dos beiços a dentição descolorada e grande, ligeiramente desproporcional ao resto da fisionomia.

— Quem é você? — perguntas tu — Como é que entrou aqui?!

Alheio ao terror na tua voz, o homem inala o fumo e responde, com uma nuvem, como se desse uma informação óbvia.

— Eu sou o Fantasma das Eleições Passadas.

O homem que acaba de se identificar como fantasma veste fato e gravata muito coçados ambos sobre uma camisa desbotada. Tem lama na fímbria das calças e calça sapatos enrugados pelas décadas. Apercebendo-se da tua perplexidade, sorri condescendente, como se esperasse outra pergunta.

— Não estou a perceber. O que é que se está a passar?! Saia da minha casa! — Ordenas tu, mas a tua voz cheira a medo.

— Você não disse, ainda há pouco, que não há escolha? — Provoca o fantasma, deliciado — Pois bem, eu estou aqui para mostrar-lhe as escolhas que tem e as que já teve. Mesmo agora, neste tão inusitado momento, atente em como tem perante si duas diferentes escolhas:

Se explicas que não tens nada a ver com política e ameaças chamar a polícia, salta para o número 28.

Se o deixas continuar a falar, salta para o número 23.

17

— Não — esclarece o fantasma — Nesse aspecto, ninguém pode acusá-lo de discriminar minorias. Ventura defende que a educação, a saúde e os transportes públicos devem desaparecer, para todos. No programa eleitoral do Chega pode ler-se que não compete ao Estado «a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de educação ou de saúde» nem de «vias de comunicação ou meios de transporte». No que à lei da selva diz respeito, Ventura nada discrimina: também defende a total liberalização dos despedimentos e o fim da regulamentação do mercado imobiliário como forma de combater a desertificação do interior. Ouçamo-lo:

«A nossa proposta é simples e clara: deixar o mercado funcionar […]. Caso isso seja feito, rapidamente a vida nessas grandes cidades costeiras se tornaria incomportável para parte substancial da sua população que rapidamente se dirigiria às cidades do interior, onde a vida é substancialmente mais barata».

— Próxima pergunta: quem sairia prejudicado da reforma fiscal que André Ventura propõe?

Se apostas nos ciganos, salta para o número 8.

Se achas que os prejudicados seriam os trabalhadores com rendimentos mais baixos, salta para o número 30.

18

— Então quem é que sobra — perguntas tu — A Marisa, não é?

— Não só, mas sim — responde o fantasma — Se não se importar que o visitem outros fantasmas, claro.

Lendo o pânico na tua expressão, o fantasma explica:

— Os de Moria, na Grécia, campo de concentrações várias, de muita desumanidade e de alguma morte também, que Marisa Matias contribuiu para erguer com outras campanhas, noutras togas e noutras terras — e apontando o comando à televisão:


— Então agora também não posso votar Marisa Matias? — protestas tu.

— Claro que pode… — concede o fantasma, sorridente e maligno — não há nada de mal em querer eleger uma social-democrata assumida para suceder a um assumido social-democrata eleito — e espetando em riste o comando no ar —


— Mas, em bom rigor, há outras opções…

— Quem, o João Ferreira? — questionas tu.

— Há candidatos que prometem ser presidentes de todos os portugueses quando só tencionam sê-lo para alguns — diz o fantasma — João Ferreira, promete-o genuinamente e por essa razão não o pode cumprir. Porque alguns interesses há que não se coadunam com os interesses de todos, quem fosse presidente de todos os portugueses, não poderia sê-lo de alguns portugueses, que são inimigos de todos. Confuso? A biografia de João Ferreira entrelaça-se na história das lutas dos estudantes, de todos os trabalhadores. Como vereador e deputado ao Parlamento Europeu, escolheu sempre o lado da paz, da diversidade, da igualdade e dos direitos humanos, e essa, desafortunadamente, não é a presidência que todos querem, senão repare — e de novo direcciona o comando à televisão e, carregando o botão de play:


Salta para o número 32.

19

— Muito bem — concede o fantasma — embora deva admitir que a pergunta estava armadilhada: André Ventura votou contra, depois mudou de voto para se poder abster e logo a seguir… votou a favor — concluiu o fantasma, deixando escapar uma gargalhada.

— Próxima pergunta: o que quer fazer André Ventura com serviços públicos como a Saúde, a Educação, os Transportes e a segurança social?

Se achas que Ventura defende que a função social do Estado deve estar vedada a ciganos e estrangeiros, salta para o número 17.

Se achas que Ventura quer simplesmente acabar com estes serviços, passa para o número 26.

20

Este silêncio todo, na cidade e na democracia, não é normal. Pé ante pé, dir-se-iam de lã se não os sentisses gelados, aproximas-te da porta da rua tentando que, seja quem for, não te oiça. Mas neste silêncio, é a vantagem das ditaduras, ouve-se tudo: a vibração dos átomos, o sangue a correr nas veias e o coração, cada vez mais alto, felizmente sem direcção e sem sair do lugar, a galopar.

Conténs a respiração e espreitas pelo visor. Do outro lado, como se sentisse o teu olho através da lente, um homem sorri um sorriso forçado.

— Quem é? — A voz trémula trai-te a intenção de bravura.

O homem solta uma risada indulgente.

— É por causa das eleições — anuncia por fim, fitando-te do outro lado do túnel, como se também o seu olho fosse um tubinho de metal com uma lente de vidro no princípio e sem fim.

— Não tenho interesse, boa noite — abrevias tu.

O homem aproxima muito a estranha boca do visor e sussurra:

— Aí é que se engana… É totalmente do seu interesse. É do interesse de todos os cidadãos.

— Desculpe, mas continuo sem entender o que é que pretende.

— Apenas algumas perguntas — sorri o homem.

— Um inquérito?

— Sim! Sim! Sim! É isso mesmo! — celebra, histriónico, levantando a voz — Uma espécie de inquérito!

— Oiça, eu não sei quem você é, mas ou se vai embora imediatamente ou eu chamo a polícia, está a perceber? — ameaças tu.

— Isso seria completamente desnecessário. Só preciso de lhe fazer algumas perguntas. Prometo que serão só alguns minutos.

Se lhe abres a porta, salta para o número 25.

Se chamas a polícia, salta para o número 11.

21

— Certíssimo! — anuncia o fantasma — André Ventura dedicava-se então a criticar o «populismo penal», o «pânico social que se tornou responsável pela estigmatização de certas comunidades» e a «discriminação de cidadãos com base nas suas características étnicas e religiosas para criar e aprovar legislação que em circunstâncias normais o bom-senso não permitiria jamais que vingasse».

— Vamos à próxima — prossegue o fantasma — Com quem é que o Ventura prometeu que nunca se coligaria?

Se achas que o Ventura prometeu que nunca faria coligações com qualquer partido, passa para o número 31.

Se achas que Ventura prometeu que nunca se coligaria com o PS, passa para o número 27.

22

Em cheio! Diz outro desacertado provérbio que indo-se os anéis ficam-se os dedos, mas normalmente, como é o caso, os ladrões cortam os dedos para levar os anéis e, para cúmulo trágico e florão proverbial, não é só quando as glórias vêm que as memórias se vão, ou adivinhe lá para quem é que Ana Gomes estava aqui a pedir uma maioria absoluta:


Se respondes António Costa, salta para o número 14.

Se respondes José Sócrates, salta para o número 7.

23

— Onde é que nós íamos? — Pergunta-se o fantasma — Ah! Sim! Dizia-lhe eu que, na verdade, escolhas elas há, o problema é que amiúde produzem consequências tão longínquas que os cidadãos se esquecem, pois esquecidos são, de que elas são simultaneamente causas, isto é, que a razão pela qual fazemos determinada escolha é ela própria a sua consequência. Como a serpente do ouroboros, que morde a própria cauda sem disso se dar conta, também os cidadãos têm a trágica propensão autofágica de morder o próprio rabo, criando as razões para o voltarem a fazer e a esquecer, eternamente. Pouca razão têm todos os provérbios: se quem padecesse tanto lembrasse que aborrecesse, ou se quando trovejasse Santa Bárbara lembrasse, ou apenas se lembrasse mais o credor que o devedor… eu não seria necessário.

«— Onde é que nós íamos? — Pergunta-se o fantasma — Ah! Sim! Dizia-lhe eu que, na verdade, escolhas elas há, o problema é que amiúde produzem consequências tão longínquas que os cidadãos se esquecem, pois esquecidos são, de que elas são simultaneamente causas, isto é, que a razão pela qual fazemos determinada escolha é ela própria a sua consequência»

— Mas, com o benefício da reflexão — prossegue — podemos lembrarmo-nos de Santa Bárbara, dos padecimentos passados e dos devedores actuais e cortar o umbilical cordão que ata as suas escolhas presentes ao emaranhado enredo das causas e consequências passadas, tantas e tão multiplicadamente são elas ligadas, que nem se apercebe você que está a trincar o seu próprio rabo — e isto dizendo, deu uma violenta dentada no ar que soou como uma ratoeira — Reflictamos, pois, que é isso que reflexão quer dizer no latim original: um regresso, um retorno.

— Oiça, eu se calhar nem vou votar — atalhas tu — Peço-lhe que…

Mas o fantasma aponta-te comando, carrega no botão de fast-forward, e logo o teu corpo se desmancha numa convulsão de espasmos nervosos, quase pixelizados, brota-te da boca uma cascata de palavras agudíssimas, de tão rápidas, indecifráveis. Quando dás por ti, estás sentado no sofá à frente do fantasma, que agora te pergunta:

— E sabe você, porventura, passe o infeliz trocadilho, qual é a origem da palavra candidato? Não? Pois eu digo-lhe:

O fumo do cigarro ergue-se belo, em lentos rolos misteriosos, anela-se agora contra o tecto num remoinho como o cogumelo de uma explosão atómica espectral que se desfaz tingindo a luz do candeeiro de uma bruma azulada, que traz para dentro a noite da cidade adormecida.

— Os antigos romanos que queriam ser eleitos para cargos públicos — prossegue — envergavam togas cândidas, empoadas de giz. E os plebeus romanos, tontos, que esses nem se podiam desculpar com a lonjura etimológica, aferiam-lhes a idoneidade pela brancura da toga, veja só! Mas o mais incrível é que passados dois mil anos, ou 46, os cidadãos continuem encandeados com tanta candura, muito embora até na toga do Marcelo caia a nódoa, se não veja:

Aponta o comando para a box, aperta o botão de play e na televisão surgem estas imagens:


Se respondes que não é verdade que Marcelo, como Presidente, tenha estado do lado dos banqueiros, salta para o número 2.

Se prometes ao fantasma que não vais votar Marcelo, salta para o número 27.

24

— Está errado — responde o fantasma — mas devo admitir que a pergunta estava armadilhada: André Ventura votou contra, depois mudou de voto para se abster e logo a seguir… votou a favor — concluiu o fantasma, deixando escapar uma gargalhada.

— Próxima pergunta: o que quer fazer André Ventura com serviços públicos como a Saúde, a Educação, os Transportes e a segurança social?

Se achas que Ventura defende que devem estar vedados a ciganos e estrangeiros, salta para o número 17.

Se achas que Ventura quer, simplesmente, acabar com eles, passa para o número 26.

25

Abres a porta, mas, inexplicavelmente, o homem já lá não está. Atrás de ti, vindo da sala, ouves um isqueiro a arranhar fogo.

Salta para o número 16.

26

— Certíssimo — confirma o fantasma — Nesse aspecto, ninguém pode acusá-lo de discriminar minorias. Ventura defende que a educação, a saúde e os transportes públicos devem desaparecer, para todos. No programa eleitoral do Chega pode mesmo ler-se que não compete ao Estado «a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de educação ou de saúde» nem de «vias de comunicação ou meios de transporte». No que à lei da selva diz respeito, Ventura não discrimina: também defende a total liberalização dos despedimentos e o fim da regulamentação do mercado imobiliário como forma de combater a desertificação do interior. Ouçamo-lo:

«A nossa proposta [sobre a habitação] é simples e clara: deixar o mercado funcionar. Caso isso seja feito, rapidamente a vida nessas grandes cidades costeiras se tornaria incomportável para parte substancial da sua população que rapidamente se dirigiria às cidades do interior, onde a vida é substancialmente mais barata».

— Próxima pergunta: quem sairia prejudicado da reforma fiscal que André Ventura propõe?

Se apostas nos ciganos, salta para o número 8.

Se achas que os prejudicados seriamos trabalhadores com rendimentos mais baixos, salta para o número 30.

27

— Nada mais errado! — Anuncia o fantasma — Apesar de Ventura ter dito, em Setembro de 2020, que não faria coligações «com ninguém», dois meses depois fez uma coligação com o PSD nos Açores e, no mês seguinte, exigiu quatro ministérios em troca de um governo de coligação de direita.

— Próxima pergunta: Como é que André Ventura votou a injecção de mais dinheiro no Novo Banco?

Se respondes que votou a favor passa para o número 6.

Se respondes que votou contra, passa para o número 24.

Se respondes que optou pelo voto contra, pelo voto a favor e pela abstenção, passa para o número 19.

28

— Não está a perceber, eu não tenho nada a ver com política. Vou lhe pedir para sair imediatamente ou então tenho de…

Nesse instante ele aponta-te o comando da box, carrega no mute e já não consegues terminar a frase. Mexes a boca, que articula palavras, e expele o ar, mas sem um som. O instinto manda-te agora fugir, mas logo o fantasma carrega na pausa e o teu corpo resta imóvel como uma estátua de carne desligada do cérebro aterrorizado que, em vão, continua a pensar.

— Bem, vamos tentar novamente — diz o fantasma — Como vê, há sempre alguma escolha. Ou melhor, quase sempre! Por exemplo, agora vamos voltar atrás e quando lá chegarmos, já vamos escolher melhor, porque, já conhecemos a consequência desta opção, não é assim?

O fantasma aponta-te o comando, carrega na seta para trás e tu voltas ao número 16.

29

— Eis que a má ventura nos traz a este ambívio, onde se separam os cidadãos dos vilãos e os civilizados dos bárbaros — diz o fantasma apontando o comando à televisão:


— Este é André Ventura, cacique local do PSD, moço de mão de Passos Coelho e, ao tempo, fanático defensor da Troika e da austeridade. Façamos agora um jogo com este candidato especialista em velocíssimas mudanças de toga, que nos trará, com certeza, boa-venturança. Se acertar em todas as perguntas eu juro que desapareço para sempre. Se falhar, porém, receio bem que teremos de continuar, eternamente. Está pronto? Então diga-me: o que acha que defendia André Ventura na sua tese de doutoramento?

Se achas que era um ataque aos ciganos, à corrupção e aos refugiados, passa para o número 3.

Se achas que era um ataque ao populismo, à discriminação e à intolerância, passa para o número 21.

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— A sua resposta está… — uma pausa dramática —correcta — anuncia o fantasma — André Ventura defende uma taxa única de IRS de 15 por cento, independentemente dos rendimentos. Isto levaria a que, por exemplo, quem ganha 800 euros passasse a pagar mais 92 euros, ao passo que quem ganha 3600 euros pague menos 536.

Se respondes que tudo isso pode ser verdade, mas, ao menos, André Ventura faz frente à corrupção, passa para o número 4.

Se garantes que não planeias votar em André Ventura, passa para o número 18.

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— Certíssimo — anuncia o fantasma — Apesar de Ventura ter dito, em Setembro de 2020, que não faria coligações «com ninguém», dois meses depois fez uma coligação com o PSD nos Açores e, no mês seguinte, exigiu quatro ministérios em troca de um governo de coligação de direita.

— Próxima pergunta: Como é que André Ventura votou a injecção de mais dinheiro no Novo Banco?

Se respondes que votou a favor passa para o número 6.

Se respondes que votou contra, passa para o número 24.

Se respondes que optou pelo voto contra, pelo voto a favor e pela abstenção, passa para o número 19.

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— É chegada a hora de nos despedirmos — anuncia o fantasma, levantando-se — daqui a alguns minutos os sinos das igrejas dobrarão as doze badaladas, o sol cruzará irremediavelmente o nadir sob os nossos pés e o dia novo, ao velho igual em tudo, não será mais de reflexão, pelo que não nos tornaremos a ver.

— Acabou? — perguntas tu.

— Acabou uma assombração, mas outro espectro, das escolhas que amanhã fizer, e esse sim muito mais sinistro porque invisível e perpétuo, continuará a assombrar as vidas penantes dos cidadãos arrependidos, dos trabalhadores abstencionistas e dos eleitores traídos.

E isto tendo dito, poisou o comando, dobrou-se numa profunda, quase cómica, não fosse um fantasma sinistro, vénia e, sorridente, saiu como entrou, batendo a porta na primeira das doze badalas de dia 24 de Janeiro de 2021.

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