Se os turistas não vão ao Montijo, vem o Montijo ao aeroporto de Lisboa. Gorada a tentativa de inaugurar um aeroporto provisório, de uma só pista, no Montijo (opção altamente contestada), Pedro Nuno Santos, ministro das Infraestruturas e da Habitação, pode ter encontrado uma estratégia, temporária, à medida dos interesses do sector do turismo e das companhias aéreas.
Durante um mês, o ministro pretende ter voos a sobrevoar a cidade de Lisboa 24h sobre 24h, sem interrupções (como se o céu lhes caísse em cima da cabeça, entenderiam assim os irredutíveis gauleses), anulando a Portaria 303-A/2004 de 22 de Março, que estabelece limites à operação aeroportuária entre as 0h e as 6h da manhã.
Para o efeito, e ao longo do corrente mês de Agosto, está a ser dinamizada uma consulta pública para revogar a portaria de 2004. A confirmar-se a alteração, centenas de milhares de lisboetas serão expostos a níveis de ruído prejudiciais à saúde, durante todo o período noturno. Para os lisboetas, pode estar a congeminar-se a pior insónia de sempre.
Neste voo nocturno, não sei onde vou acordar
Ao AbrilAbril, João Ferreira, vereador do PCP na Câmara Municipal de Lisboa (CML), sublinhou a «gravidade» da decisão anunciada, «susceptível de prejudicar a saúde, a tranquilidade e a segurança de centenas de milhares de pessoas».
Não só a ideia de tornar o aeroporto num carrossel, em perpétuo movimento, suscita reservas à população. Todo o processo é alvo de muitas críticas: «o Governo tem a desfaçatez de avançar com uma decisão destas nas costas daqueles que serão os principais afectados, remetendo para pleno mês de Agosto uma suposta "consulta pública", que deliberadamente dificulta a participação dos interessados e até mesmo a tomada de conhecimento da medida em causa».
Também a associação ambientalista Zero, em comunicado, lamenta a opacidade que envolve todo o processo: «os documentos colocados agora à disposição para que os cidadãos e entidades se possam constituir interessados são extremamente parcos na sua fundamentação, lendo-se apenas que a abolição das restrições aos voos nocturnos se justifica com "necessidade de actualização do sistema de controlo tráfego aéreo por razões de segurança operacional da aviação civil"».
Não é dado «nenhum contexto ou justificação técnica e sem nunca referir quanto tempo durará essa actualização». No seu site, a Zero criou um documento que explica, e apoia, o processo de participação popular na consulta pública.
Ao contrário da Lisboa das 24h, Carlos Moedas remete-se ao silêncio cúmplice
Poucas semanas depois de abandonar uma reunião da Câmara Municipal de Lisboa no preciso momento em que se iniciava a discussão sobre o novo aeroporto na capital, por proposta dos vereadores do PCP, o presidente da CML, Carlos Moedas, eleito numa coligação do PSD e CDS-PP, continua desaparecido em combate.
Todas estas situações vêm-se sucedendo, afirma João Ferreira, «perante o incompreensível e inaceitável silêncio do presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a quem caberia uma posição de defesa da cidade e dos interesses de todos aqueles que serão gravemente prejudicados pela decisão do governo».
Se Moedas suscitou alguma coisa no PSD de Lisboa, fê-lo para pior: «no passado, antes do período marcado pelos impactos da pandemia, foi consensual entre as forças do executivo municipal a necessidade de restringir efectivamente, sem as excepções que se vieram a tornar recorrentes, os voos em período nocturno.»
O Governo de maioria absoluta do PS (que conta, na figura do primeiro-ministro António Costa, e o ministro das Finanças, Fernando Medina, com dois antigos presidentes da CML), e o executivo minoritário do PSD/CDS-PP em Lisboa, parecem ter mudado, rapidamente, de opinião, sacrificando a saúde, o bem-estar e o sono dos munícipes aos interesses do lucro.
A Zero apela à Câmara Municipal a tomada de uma posição firme
Em 2006, a ANA Aeroportos (antes da privatização do Governo de PSD/CDS-PP de Passos Coelho) realizou um estudo de avaliação de impacto ambiental sobre «a expansão da capacidade do aeroporto da Portela na primeira década deste século», que projectava cenários para a evolução do tráfego até 2015, «ano em que se esperava que o aeroporto encerrasse finalmente», esclarece o comunicado da Zero.
«Na altura desses estudos a violação dos limites legais para o ruído ambiente era já patente». Era previsto um agravamento da situação em 2015, deixando 195 mil pessoas em Lisboa «expostas a níveis de ruído nocturno com origem em tráfego aéreo superiores aos 55 dBA definidos na lei nacional e comunitária».
Desde então, o volume de tráfego aéreo na Portela ultrapassou todas estas previsões.