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Primavera

De todas as imagens que guardo, esta é a imagem que quero preservar. Porque o resultado das eleições no Brasil não foi um fim.

CréditosSebastião Moreira / EPA

Para muitos, este domingo foi dia de ter os olhos postos no Brasil, carregados de receios e expectativas, no dia da segunda volta da eleição presidencial, na qual se enfrentavam dois homens que defendem ideias políticas e valores significativamente diferentes. Não nos é indiferente o que se passa ali, porque o que está em jogo não se resume apenas ao que pode ser visto de forma restritiva como uma dinâmica da política brasileira. O ali também é aqui – provavelmente, podemos fazer esta afirmação para, se não todas, pelos menos para uma parte muito significativa, das questões que enfrentamos.

Este acontecimento em concreto, a eleição presidencial no Brasil, que estamos a acompanhar, surge-nos como parte de um processo mais lato, em que articulamos os diferentes tempos, entre os antecedentes, o passado, e as diferentes possibilidades ou consequências do que nos surge como uma bifurcação no caminho. Trata-se de uma batalha pelo futuro. E esta implica escolhas políticas.

Sem prejuízo da necessária reflexão sobre o contexto da política brasileira, que requer tempo, podemos tecer breves considerações sobre este processo, em torno de acontecimentos que nos surgem como ultrapassando a sua singularidade. Há imagens que nos ficam gravadas na memória, momentos que guardamos porque, de alguma forma, romperam a tessitura do quotidiano e se constituem como extraordinários, por trazerem em si o desassossego, a inquietação, a alegria ou o pavor. Momentos que nos interpelam.

Abril de 2016. O deputado Jair Bolsonaro, na votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, evoca a memória de um torturador do DOI-CODI, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. E diz: «(...) o pavor de Dilma Rousseff.» Bolsonaro foi aplaudido pela sua fala e pelo seu voto, mas também ouvimos as vaias na sala. Existiram, de imediato, variadíssimas posições de condenação e repúdio contra a evocação de Ustra – com tudo o que significava de tortura e morte –, mas as palavras foram ditas. E com elas, para todos os que foram torturados, o reavivar de uma ferida que, em rigor, talvez nunca tenha sarado.

Quantas não são as questões que nas diferentes sociedades não são resolvidas e que tornam a emergir? Esta enunciação no espaço público é, em si mesma, uma insuportável manifestação de violência. Como foi, afinal, possível trazer para a arena política e para o debate a evocação da crueldade, do gesto bárbaro sobre o corpo torturado?

Outubro de 2022, sábado, nas ruas de São Paulo. Na véspera das eleições presidenciais, Carla Zambelli, deputada bolsonarista do Partido Liberal, de arma em punho, perseguindo um homem negro, apoiante de Lula. Passada apressada, as duas mãos a segurar a pistola, sem que pareça existir qualquer hesitação ou falta de familiaridade com a arma. O homem procura refugiar-se num bar e no vídeo que foi difundido nas redes sociais e nos vários canais de televisão podemos ouvir a invetiva: «Deita no chão. Deita no chão.»

Tudo isto nos evoca o inusitado clima de tensão e de violência (e de morte) que marcou esta campanha eleitoral. Mas aquele momento, feito visão inquietante, torna-se a imagem da submissão de corpos e vontades pela humilhação e pela força. Trata-se de uma arma e não de um argumento. E leva-nos a articular, a partir dele, as questões de raça e classe, num país de grandes desigualdades.

Dia da eleição. Começaram a circular as notícias de que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) estava a fazer bloqueios de estradas e buscas a veículos. O receio de que se tratasse de uma tentativa de golpe de Estado tornava-se palpável, já que a dificuldade de mobilidade e circulação penalizava as regiões e os locais onde a votação em Lula seria mais expressiva. Sucediam-se as denúncias e os apelos.

«Como foi, afinal, possível trazer para a arena política e para o debate a evocação da crueldade, do gesto bárbaro sobre o corpo torturado?»

Crescia a inquietação: condicionar, evitar, restringir, dificultar a participação eleitoral não são estratégias aceitáveis num regime que se quer democrático. Talvez esta possa ser uma imagem de advertência: que nos faça pensar sobre as estratégias e os processos de destruição que ocorrem no interior dos regimes democráticos – sendo que nem estes acontecimentos, nem a realidade brasileira se constituem como únicos.

Dia das eleições: abertura dos portões de uma escola onde se votava na Baía. Gente que corria para poder fazer ouvir a sua voz, através do voto. A entrada que pode parecer desordenada, mas que foi feita de vontade. E de alegria. De corpos que se querem afirmar como sujeitos políticos. Contra todos os cerceamentos de liberdades e violências.

De todas as imagens que guardo, esta é a imagem que quero preservar. Porque o resultado das eleições no Brasil não foi um fim. E continuaremos de olhos postos na dinâmica política desse país. Porque continuamos a querer que chegue a Primavera. Porque não deixo de ter receio de dias infaustos nos tempos de crise que vivemos. Este texto podia ser sobre o Brasil, mas talvez seja, na verdade, sobre a esperança.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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