Mas a leitura do programa do Governo também deixa claro que alguns compromissos assumidos, ainda que não assumidos publicamente, são para serem cumpridos. É o caso da satisfação da reivindicação da Medway (empresa da multinacional MSC, a quem o Governo PSD/CDS ofereceu a CP Carga em 2015) que exige uma redução no preço pago pelo uso da infra-estrutura ferroviária pública.
Diz assim o programa do Governo que este quer «Promover a transferência modal das mercadorias para a ferrovia corrigindo os desequilíbrios na taxação da infraestrutura e aumentando a produtividade e eficiência do transporte;» e «Impulsionar o transporte ferroviário de mercadorias, o que passa por: Rever a aplicação da Taxa de Uso da Infraestrutura para comboios de mercadorias, eliminando a distorção existente relativamente ao transporte rodoviário; Adotar mecanismos de incentivo à modernização e interoperabilidade do transporte de mercadorias;».
Ou seja, de concreto, querem reduzir a taxa de uso da infra-estrutura para as operadoras privadas e afirmam a vontade de transferir mais cargas para a ferrovia. Vamos por partes.
A taxa de infra-estrutura
A primeira coisa que talvez valha a pena tentar perceber é se se paga assim tanto de taxa de uso da infra-estrutura em Portugal. Por exemplo, comparando com o que pagam os comboios de passageiros. Ora, de acordo com o estudo da Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT)1, os comboios de mercadorias pagam menos em Portugal de taxa de uso da infra-estrutura que os comboios de passageiros, apesar de provocarem um desgaste maior à infra-estrutura (1,35 € vs 1,97 € por comboio quilómetro – Ckm). É verdade que é uma tendência da União Europeia (UE) os comboios de mercadorias pagarem menos taxa de uso que os de passageiros, mas também é uma tendência da UE o financiamento do grande capital com recursos públicos.
E, por falar em tendência da UE, qual a relação do preço em Portugal com os preços do resto da UE? Bem, a média da UE na taxa de uso no transporte ferroviário de mercadorias foi de 2,89 € Ckm, 214% da taxa portuguesa, mais do dobro. E, de acordo com a AMT, «dos 29 países, apenas quatro tinham valores mais reduzidos na taxa de acesso à infraestrutura». Ou seja, a taxa é muito menor em Portugal que na generalidade dos países da UE.
Nas suas reivindicações, os operadores privados de mercadorias acrescentam um terceiro dado: o exagerado aumento do preço da taxa de uso previsto para 2024, cerca de 20%. É de facto um aumento muito grande, que a própria AMT propôs que não se realizasse.
Agora reparem como elas se fazem, na prática. O modelo neoliberal implantado é que a infra-estrutura é pública, com o Estado a assumir o investimento, a gestão e a manutenção da infra-estrutura. Os privados exploram essa infra-estrutura e pagam uma taxa de uso por ela que apenas contribui para os custos operacionais. Quem faz a proposta da taxa de uso é a IP, que demonstra ser necessário um aumento de 30% para satisfazer os custos operacionais, mas só propõe um aumento de 20%, no fundo assumindo ela uma parte dos custos das transportadoras privadas. Depois vem a AMT no relatório citado e diz que é tudo verdade, que se deveria aumentar 30%, mas não está de acordo que se aumente sequer 20% porque «no atual contexto de incerteza económica e de ajustamentos da política regulatória a nível europeu, considera-se aconselhável não proceder, transitoriamente, a acréscimos tarifários na ordem dos 20%, tal como proposto pela IP, quanto à utilização da infraestrutura». Ou seja, propõe que a IP financie os custos dos privados em mais 30%. E, como se não fosse suficiente, vem agora o Governo do PSD/CDS dizer que o apoio deve ser ainda maior.
«Quem faz a proposta da taxa de uso é a IP, que demonstra ser necessário um aumento de 30% para satisfazer os custos operacionais, mas só propõe um aumento de 20%, no fundo assumindo ela uma parte dos custos das transportadoras privadas.»
Porque é de um apoio da IP à Medway (e às restantes empresas privadas do sector) que se trata. Se fosse um apoio do Governo ao uso do transporte ferroviário de mercadorias, seria o Governo, e não a IP, a dar o apoio à Medway. Esta forma, encoberta, de transferir custos de produção do privado para o público merece ficar registada. Similarmente, o Governo nunca refere qualquer indignação com a taxa de uso da infra-estrutura paga pelo transporte ferroviário de passageiros. Provavelmente porque quem paga essa taxa é – esmagadoramente – a CP, e o governo não se preocupa com os custos que as empresas públicas assumem. Ou dito de outra forma: para o Governo o facto da CP ir pagar mais 12 milhões de taxa de uso em 2024 é perfeitamente normal, já o facto da Medway ir pagar mais um milhão e meio de taxa de uso é completamente inaceitável.
Os mesmos que querem decidir que são duas empresas públicas – a IP e a CP – quem tem que assumir as despesas com a infra-estrutura ferroviária que empresas privadas usam para gerar lucros para si próprias, virão amanhã, sem vergonha, falar da necessidade de privatizar as empresas públicas pelos custos exagerados que assumem. Enfim.
A privatização e a transferência modal
O objectivo de aumentar o peso do transporte ferroviário de mercadorias face ao transporte rodoviário é sem dúvida nobre e justo. As vantagens deveriam ser evidentes. Mas é a redução das taxas de uso que vai gerar esse efeito?
De acordo com a AMT, a taxa de uso média era de 1,41€ Ckm em 2014, no ano que antecedeu a privatização da CP Carga. E 10 anos depois, em 2023, era menor (1,39€ Ckm). Ora, nesse período, em que a taxa esteve congelada na prática, o peso do transporte ferroviário de mercadorias esteve igualmente congelado. Ao contrário do que aconteceu nos anos anteriores à privatização, onde esse peso aumentou consistentemente.
Vejam o gráfico seguinte. É em 2015 que se atinge o pico de carga no transporte ferroviário de mercadorias, que a partir daí começa a cair. E a queda dá-se essencialmente no tráfego nacional. Pode ser coincidência, mas 2015 é o último ano de gestão pública.
Uma última questão que, no mínimo, é preciso ter presente é a crescente especialização da Medway no transporte de contentores, que é a mercadoria base que opera a multinacional que a comprou. O quadro que se segue mostra essa crescente especialização, ao comparar os Relatórios e Contas de 2014 (CP Carga) e de 2022 (Medway).
* Como o transporte de carvão desapareceu com o encerramento das Centrais Termoeléctricas, fica mais justa a comparação se retirarmos o carvão do universo de cargas transportadas em 2014)
Não se contesta que, para a Medway, para os lucros da Medway e da sua dona, a multinacional MSC, tem toda a lógica este peso crescente dos contentores e esta prioridade. Mas esse é o problema de entregar empresas estratégicas às multinacionais. A lógica passa a ser outra! Para Portugal, para a economia portuguesa, para o desenvolvimento nacional, é estratégico transportar todo o tipo de cargas por ferrovia, e não apenas os contentores.
Concluindo: Estivesse o Governo PSD/CDS preocupado em aumentar o peso do transporte ferroviário de mercadorias e a solução não passaria por reduzir as taxas de uso. E muito menos à custa da IP. Passaria por reverter a escandalosa venda da CP Carga, oferecida por 2 milhões de euros a uma multinacional em 2015.
- 1. «Tarifação da Infraestrutura Ferroviária, Análises e Recomendações» da AMT, 2023
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