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Lobby do proxenetismo tenta a descriminalização

O Parlamento discutiu esta quarta-feira a legalização do lenocínio a partir de uma petição promovida por Ana Loureiro, dona de uma casa de alterne.

Créditos / Dinheiro Vivo

A petição «Legalização da prostituição em Portugal e/ou despenalização de lenocínio, desde que não seja por coacção» foi a debate na Assembleia da República no Dia Mundial da Criança, quando se sabe, designadamente por estudos internacionais e pela própria proxeneta, que a entrada na prostituição se faz, em média, a partir dos 12 anos.  

Como esclareceu Sandra Benfica, dirigente do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), em Fevereiro de 2020, a intenção do lobby dos proxenetas é «destruir» o ponto 1 do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa, permitindo assim a legalização da mercantilização do corpo das mulheres e o regresso ao «velho sistema das matriculadas», do tempo do fascismo, que de seis em seis meses eram obrigadas a inspecções médicas para continuarem a prostituir-se. 

Além do MDM, o teor do documento discutido esta tarde no Parlamento mereceu a oposição, entre outras associações, da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres. Numa nota conjunta, Plataforma e MDM insistem que a petição não só atenta contra a Constituição da República, como contraria um conjunto de outros compromissos e recomendações internacionais. 

Numa posição divulgada sobre o tema, o MDM realça o facto de a prostituição ser um «sistema organizado para o lucro» e «intrinsecamente violento, discriminatório e profundamente desumano». Quanto à coacção, defende que ela é parte integrante do lenocínio. «A prostituição ocorre no quadro de uma relação triangular em que o proxeneta ou o/a proprietário da casa define junto do "cliente" o preço, as condições e a retribuição que a prostituída auferirá, necessariamente inferior àquele», sustenta no documento.

Descriminalizar o lenocínio e ceder face ao turismo sexual transnacional

No «Prós e Contras» do passado dia 20 de Março, Fátima Campos Ferreira pretendeu lançar a discussão sobre a questão da legalização da prostituição, como se a questão fosse novidade. De facto, há dezenas de anos que se discute e não foi por acaso que nunca teve acolhimento legislativo.

Créditos / Istoe.com.br

Esta era a opção pela qual a responsável do programa manifestava simpatia, apoiando implicitamente uma moção congressual da JS, que convidou para o programa.

Porém, como tem sido constatado no passado mais ou menos recente noutros países, os resultados seriam a descriminalização do lenocínio, conferir o estatuto de empresários aos proxenetas e ceder às pressões do turismo sexual internacional, dar força à concepção da mulher-objecto, vítima de exploração e de um tráfico incessante.

Ombrear com a Holanda e a Alemanha nestas opções seria fatal. Não foi por acaso que foi nestes países que a legalização se traduziu num acréscimo da prostituição e do tráfico de menores e jovens mulheres para o negócio legalizado dos proxenetas, e em que as prostitutas não beneficiaram dos apoios sociais antes prometidos.

Segundo Inês Fontinha, «a prostituição funciona em mercado de oferta (prostituta) e procura (cliente) mas nele intervém um terceiro elemento: O organizador e explorador do mercado, o chulo ou proxeneta, o proprietário de casas fechadas, salões de massagens, fornecedor de quartos de hotel ou de estúdios (…)». O negócio da prostituição rende ao proxenetismo milhões de dólares americanos, porque a prostituição não se reduz a um acto individual de uma pessoa que aluga o seu sexo por dinheiro, é uma organização comercial com dimensões locais, nacionais, internacionais e transnacionais1.

Em Portugal, a actividade de prostituição é exercida de várias formas: a prostituição de rua, em casas de massagens e bares, em discotecas, hotéis e restaurantes que, de forma disfarçada e discreta, servem de bordéis, na forma de agências de «serviço de acompanhantes», que providenciam acompanhantes masculinos ou femininos para ocasiões sociais, podendo os acompanhantes incluir serviços sexuais aos seus clientes. Também a prostituição masculina, tanto heterossexual como homossexual, ocorre de modos e locais diferentes, como bares gay, discotecas e resorts.

Já em Outubro de 2004, alguns empresários da noite, ligados ao ramo da prostituição e do alterne, se movimentaram para introduzir em Portugal um novo modelo de negócio do sexo, que já existia em algumas regiões espanholas e que tinha por finalidade contornar a lei sob o ponto de vista criminal. O Correio da Manhã publicou então uma «investigação» em que apurou tratar-se do aluguer a prostitutas dos quartos de um hotel ou pensão, para fazer da prostituta apenas cliente do proprietário, permitindo ao dono passar ao lado de qualquer acusação criminal, já que, em termos legais, se limitava a alugar quartos.

Segundo essa reportagem, as casas de alterne fechavam na sequência de rusgas policiais, em que quase sempre eram detidas várias estrangeiras ilegais e um ou outro proprietário. Mas numa ou duas semanas as casas apareciam novamente abertas, sendo a titularidade destas de sócios ou amigos dos detidos, vindo as raparigas de outros bares, na sequência de uma circulação que era habitual e que tinha por finalidade tentar iludir as autoridades2.

«A prostituição em Portugal não é reconhecida em lei específica, mas é tolerada a título individual.»

Mas, no ordenamento jurídico português não se criminaliza a conduta da pessoa que se prostitui. Criminaliza-se, sim, a conduta de quem explora (lenocínio) a actividade de prostituição por parte de outra pessoa (proxeneta). Isso está expresso no Art.º 169 do Código Penal em vigor. A prostituição em Portugal não é reconhecida em lei específica, mas é tolerada a título individual.

A punição do lenocínio também decorre da Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração da Prostituição de Outrem, de 1949, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 31/91 (publicada no Diário da República, I série, de 10 de Outubro de 1991).

No que respeita à prostituição de menores, quem fomentar, favorecer ou facilitar o exercício da prostituição de menores entre os 14 e os 16 anos, ou a prática por estes de actos sexuais de relevo, e quem aliciar, transportar, proceder ao alojamento ou acolhimento de menores de 16 anos, ou propiciar as condições para a prática por este, em país estrangeiro, de prostituição ou de actos sexuais de relevo, é punido de forma pesada.

O sistema regulamentarista é agora preconizado na moção da JS, sucedâneo do que vigorou em Portugal até 1963, sem alguns dos seus aspectos mais chocantes. Este tinha então como objectivo «sujeitar a rigorosa inspecção as meretrizes» a fim de «prevenir e acautelar os males que resultam para a moral, saúde e segurança pública, da notável relaxação em que se acha esta classe miserável». Pelas cadernetas de identificação e exames compulsivos passaram actos degradantes e atentatórios da dignidade das mulheres3.

Antes disso, já em 1902, o professor Ângelo Fonseca apresentava uma proposta de regulamentação geral das doenças venéreas em que defendia a abolição do sistema de matrículas numa dissertação apresentada na Faculdade de Medicina do Porto. Baseava-se num inquérito realizado nas subdelegações de saúde, que revelava o fracasso do regulamentarismo e dos fins a que se propunha: «a prostituição feminina em vez de diminuir aumentou; o número de matriculadas é diminuto e o número de clandestinas cresce regularmente em especial no Porto e em Lisboa; os regulamentos locais são contraditórios e, sobretudo, não são aplicados; a inspecção sanitária é insuficiente e mal organizada, não cobre sequer as matriculadas e tão pouco abrange as clandestinas e os clientes. O sistema até hoje seguido degrada a mulher, sem que dessa degradação possa resultar profilaxia das doenças venéreas».4

Em 1949, foi elaborada uma dura lei sobre doenças sexualmente transmissíveis (DST) impondo mais restrições àqueles que se prostituíam, e proibindo a abertura de novas casas de prostituição. As casas existentes podiam ser encerradas caso se suspeitasse que podiam ser um perigo para a saúde pública. Um estudo da época estimou que existiam 5276 prostitutas e 485 casas, concentradas nas principais áreas urbanas, nomeadamente Lisboa, Porto, Coimbra e Évora. No entanto, aquelas prostitutas registadas representavam uma pequena percentagem do total do conjunto. Esta lei pretendia erradicar a prostituição.

Em 1963, o regime fascista proibiu o exercício da prostituição pelo Decreto-Lei n.º 44579 de 19 de Setembro, introduzindo o modelo proibicionista, com o seu rosário de prisões, violações, fecho de casas de passe para os meios operários e outras camadas de estatuto social secundarizado, que coexistia com os «meios» da alta burguesia onde a prostituição, sem referência a tal nome, era praticada. Os bordéis e outras instalações foram encerrados. Esta lei proibicionista punha um termo à era em que a prostituição era regulamentada, incluindo consultas médicas regulares das prostitutas. No entanto, esta lei pouco efeito prático obteve.

Um novo abolicionismo surgiu com a legislação em vigor, através do Código Penal de 1983, que descriminaliza as mulheres que se prostituem, renovado no Art.º 169.º do Código Penal em vigor, que pune, com pena de prisão de seis meses a cinco anos, quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou de actos sexuais de relevo (o chamado lenocínio simples).

Esta conduta é mais severamente punida (com pena de prisão de um a oito anos) se o agente usar de violência, ameaça grave, ardil, manobra fraudulenta, de abuso de autoridade resultante de uma dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou se aproveitar de incapacidade psíquica da vítima ou de qualquer outra situação de especial vulnerabilidade (o chamado lenocínio qualificado).

As mulheres que se prostituem têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde e a isenções de taxas moderadoras, como qualquer pessoa desempregada, inscrita no Centro de Emprego ou que faça prova de insuficiência económica, ou que não tenha uma carreira contributiva, e descontos nos medicamentos como as restantes pessoas. Isto é garantido sem qualquer disposição particular que as contemple.

O trabalho de «O Ninho», instituição particular de solidariedade social, sempre me pareceu exemplar, agindo com orientações idênticas, pelas acções que tem vindo a realizar num caminho que é lento mas que não pactua com demagogias liberalizantes ou «fracturantes» que são um precioso auxiliar do lenocínio.

Realiza um trabalho de aconselhamento em meio prostitucional, dispondo de um centro de acolhimento, garantiu um lar para mulheres e seus filhos, uma oficina para aprendizagens profissionais, com uma cantina – acções viradas para a reinserção social através do trabalho com resultados muito positivos – e garantindo para estas mulheres um subsídio de reinserção. Tem três acordos de cooperação com a Segurança Social para garantir o funcionamento do centro de acolhimento, com equipas intervindo em meio prostitucional, das oficinas e o lar. E um acordo de cooperação com a CML que garante formação profissional em contexto laboral, elaborado em 2001 com a então vereadora Alexandra Gonçalves, que continua até hoje sucessivamente renovado por unanimidade em reuniões de Câmara.

Para Sandra Benfica, dirigente do MDM, referindo-se aos instrumentos legislativos disponíveis na Europa, «muitos destes instrumentos legais são taxativos na consideração da prostituição como uma forma de violação dos direitos humanos de mulheres e raparigas, bem como na determinação da não valorização do consentimento em matéria de tráfico, pelo que é absoluta contradição a qualificação – seja política, seja legal – da prostituição ou do alegado "trabalho" sexual como consentido ou não consentido. Seria o mesmo que considerar a violência doméstica ou de género como consentida ou não consentida e, como tal, legal.» E aponta que «na prostituição não existem "zonas seguras" para mulheres e raparigas: nos países onde a "indústria do sexo" foi promovida a um negócio legítimo, os proxenetas passaram a respeitáveis homens de negócios, enquanto a situação das mulheres e crianças registou agravamento de todas as formas de exploração e violência a que estão sujeitas.»5

A legalização implicaria, de facto, a descriminalização do proxenetismo, que é actualmente criminalizado, nos termos atrás referidos, contrariando assim a já referida Convenção sobre a Supressão do Tráfico de Pessoas e Exploração da Prostituição de Outrem, que vincula o Estado português. Foi o que afirmou o juiz P. V. Patto6, sublinhando que «não se limitaria a isso. O exercício da prostituição passaria a ser encarado como qualquer outra profissão, sujeito ao mesmo regime laboral e fiscal de qualquer outra profissão. O proxenetismo deixaria de ser encarado como actividade criminosa e passaria a ter o reconhecimento social e jurídico de qualquer outra actividade empresarial. Com a legalização o Estado transmite uma mensagem cultural: a prostituição equipara-se a qualquer outra profissão, resulta de uma opção autenticamente livre e não implica a violação da dignidade da pessoa humana

Uma participante no «Prós e Contras», do projecto Porto G, defendeu a descriminalização do lenocínio. A tese de doutoramento de outra participante, tendo aspectos interessantes, está muito condicionada pela conclusão, muito pouco fundamentada, de que a prostituição deva ser legalizada. Como, aliás, já expressara em entrevista há oito anos. A regulamentação/legalização é uma narrativa neoconservadora assente numa percepção anarco-burguesa, de fachada fracturante, do fenómeno da prostituição. E a moção da JS, se vingasse como medida legislativa, seria um assinalável retrocesso histórico nos direitos e dignificação das mulheres fazendo delas novamente objectos sexuais e lucrativos para quem as explora.

No actual quadro legal, e trabalhando-se a diversos níveis para que a prostituição se extinga num prazo indeterminado, e na opinião de muitas pessoas que trabalham com mulheres que se prostituem, importa que se progrida: numa acção consequente das organizações que apoiam as prostitutas, com vista à (re)inserção no trabalho, apoio à documentação para garantir serviços de saúde, habitação e lares e escolas para os filhos; que a Segurança Social e as câmaras municipais se disponibilizem para acordos de cooperação com elas e para acções próprias; na isenção de custas judiciais com apoio jurídico gratuito; no combate ao «turismo sexual»; em cursos de educação sexual e planeamento familiar desde idades jovens, direito e acesso universal a serviços de saúde e planeamento familiar; em direitos e salário iguais aos restantes cidadãos.

  • 1. Comunicação ao Congresso Virtual HIV/AIDS em 19/10/2001
  • 2. Correio da Manhã, de 31 de Outubro de 2004
  • 3. «Regulamento Policial de Meretrizes e Casas Toleradas da Cidade de Lisboa»,1858
  • 4. Relatório de Jean Fernand Laurent, a pedido da ONU, 1983
  • 5. Sandra Benfica, Consulta da ONU Mulheres política sobre "trabalho Sexual", comércio sexual e prostituição, Outubro 2016.
  • 6. Pedro Vaz Patto, Prostituição – o quadro legal português, 2013
Tipo de Artigo: 
Opinião
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«Não existe, portanto, uma relação de prestação de serviços em que a prostituída seja uma "profissional independente», como quer fazer crer a peticionante», acrescenta. 

De um modo geral, as intervenções desta tarde no plenário da Assembleia da República coincidiram na recusa da despenalização da actividade dos que gravitam em torno da prostituição, e que são quem verdadeiramente lucra com esta «forma de escravatura incompatível com a dignidade humana», nas palavras do MDM. 

Já quanto à prostituição, o entendimento é, em várias bancadas, deslocado da realidade, onde o rosto das vítimas de exploração, na sua maiorioa mulheres e meninas, tem marcas de pobreza e de exclusão social. A deputada Ana Patrícia Gilvaz, da IL, referiu-se à entrada na prostituição como uma «livre escolha profissional» e, no típico argumentário dos liberais, advogou que não cabe ao Estado proibi-la. A associação da prostituição a uma profissão tem sido alimentada por quem tenta alterar a legislação a pretexto de uma maior protecção das vítimas. 

São as «trabalhadoras do sexo», na terminologia do BE, que pela voz da deputada Joana Mortágua admitiu não estar de acordo com os termos da petição. Os bloquistas não aceitam «modelos de regulamentação feitos com base no interesse de quem explora», apesar de associarem à prostituição conceitos como «liberdade sexual» e «autodeterminação».

Paula Santos, líder da bancada comunista, alertou para a necessidade de intervir a fim de evitar que mais mulheres caiam nas malhas da prostituição, que «nega liberdade e autonomia» às mulheres. A comunista lembrou que a legalização do lenocício, crime que «anda de mãos dadas» com o tráfico de seres humanos, apenas contribuiria para deixar de punir quem explora, legitimando o «abominável negócio de que as mulheres prostituídas são objecto», e facilitando o crime de branqueamento de capitais. 

A deputada do PCP lembrou a necessidade de prestar apoio às vítimas da prostituição, designadamente o Plano de Combate à Exploração na Prostituição, aprovado na Assembleia da República em 2013, mas que sucessivos governos têm mantido na gaveta. 

Também o MDM tem insistido na necessidade de proteger mulheres e crianças vítimas da prostituição, desde logo com políticas que «assumam e reconheçam a prostituição como uma grave forma de violência» e «indissociável das desigualdades», a par, entre outras soluções, de programas de saída das redes de exploração sexual e das dependências frequentemente associadas.  

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