|eleições legislativas

A história de um sistema eleitoral numa França dividida em três

Como um presidente perde a maioria, a extrema-direita sobe e a luta de classes pode ser a solução.

Macron com a presidencia mais tremida. 
CréditosLudovic Marin / EPA

O sistema eleitoral francês foi mudado em 1958 para impedir o crescimento do Partido Comunista Francês no parlamento depois da Segunda Guerra Mundial. Foi a forma de barrar o acesso ao poder do partido várias vezes mais votado nas eleições parlamentares depois da derrota dos nazis.

Basta ver que, em 1959, o primeiro ano em que o sistema maioritário é usado, o PCF é o partido mais votado na primeira volta com 3 882 204 votos, e vai eleger nessas eleições apenas dez deputados e o partido gaulista, que teve 3 603 958, menos 270 mil votos que os comunistas, consegue ficar com 189 deputados.

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Maio de 68: «Tous ensemble, dix ans, ça suffit!»

Algumas notas pessoais sobre mitos criados a propósito de acontecimentos que também vivi, já na segunda quinzena de Maio, e que foram uma manifestação de inconformismo e revolta na sociedade francesa.

Créditos / fabiocampana.com.br

Ao Maio de 68, a todos os acontecimentos desse ano em todo o mundo, ninguém ficou indiferente. Gostasse ou não deles. Passar do sonho e da utopia à realidade deu força a outros movimentos, mesmo os da intimidade, dos costumes, da igualdade de sexos e da «revolução sexual», que não ficando concluídos, contribuíram para novos comportamentos, ideias, para o carácter do ensino e a atitude dos professores, para a confiança na força da contestação do que parecia imutável e da sua capacidade de transformar.

Mas os media dominantes também criaram mitos, uma interpretação própria das causas e consequências, valorizaram aspectos marginais, desprezando o essencial do que se passou.

Houve os que agiram com uma agenda própria de retirar do movimento operário e da população em geral a influência de organizações políticas e sindicais, que lhes tinham sido essenciais no confronto com o patronato e a direita – o Partido Comunista Francês (PCF) e a Confederação Geral do Trabalho (CGT).

Estas são apenas algumas notas pessoais, sobre mitos criados a propósito de acontecimentos que também vivi, já na segunda quinzena de Maio, e que foram uma forte manifestação de inconformismo e revolta na sociedade francesa.
  
As expressões Tous ensemble e Dix ans, ça suffit foram as que melhor expressaram, na minha opinião, o que se passou, depois de ter acompanhado na onda curta da rádio os acontecimentos, de troca de impressões com outros activistas estudantis na Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico, e de lá ter ido dias depois.

Há dez anos, Sarkozy pretendeu removê-lo da História, afirmando que esse Maio «impôs a ideia do vale-tudo, que não haveria diferença entre o bem e o mal, nenhuma diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o belo e o feio. Tentaram fazer crer que o aluno tinha o valor do mestre, que já não existiam valores nem hierarquia».

E rematava, não escondendo qual era a sua inclinação: «Trata-se, enfim de saber se a herança de Maio de 68 deve ser perpetuada ou se se deve liquidar de uma vez para sempre». Agora Macron pretendeu dar-lhe um cariz liberal… As «comemorações» oficiais vão decorrer no Centro Georges Pompidou (o primeiro-ministro de então, responsável pelas brutais cargas da polícia de choque, os CRSs, sobre os manifestantes). Vendo o programa divulgado no início deste ano não há vestígios do papel dos trabalhadores…

Maio de 68 nunca deixou de amedrontar a direita. A convergência das lutas de trabalhadores e estudantes então, e nos dias seguintes, meteu-lhe medo. Ainda há dez anos, o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, foi obrigado a recuar no seu projecto de CPE (contrat première embauche, trad. primeiro contrato de trabalho) porque de novo o Tous ensemble se lhe opôs com uma grande pujança.

Os estudantes não aceitavam o ainda existente ensino magistral desligado da realidade, nomeadamente nas ciências sociais. Nem a discriminação sexual, quando as relações entre raparigas e rapazes já tinham atingido um outro patamar de liberdade e de abandono de complexos.

«A aura de De Gaulle tinha chegado a 1968 completamente desfeita entre os trabalhadores. O número de dias de greve passara de menos de um milhão em 1965 para 2,5 milhões em 1966 e mais de 4,2 milhões em 1967.»

Nem costumes e ideias feitas, caducas, em que assentavam algumas relações sociais e a família. As questões da emancipação da mulher, do aborto e repressão sexual surgiram de forma impressiva. Enquanto absorviam uma influência significativa de acontecimentos internacionais como a Guerra no Vietname, as revoluções cubana e noutros pontos, concluindo uma sucessão de independências. Rejeitando a hipocrisia da invocação de direitos humanos, de facto não respeitados e rejeitando o autoritarismo do presidente De Gaulle.

Um colega meu do IST, o Henrique G. Pereira, anarquista, que andou na Sorbonne e no Quartier Latin nesses dias, depois de ter seguido a consigna inscrita na Sorbonne N’ allez pas en Grèce cet été, restez à la Sorbonne, e optado por umas «férias radicais», escrevia em 2008: «Ao voltar ao Técnico em Outubro de 1968 encontrava-me totalmente imbuído do espírito de Maio – esse ânimo que punha em prática a tal indefinível beleza compulsiva anunciada por Breton (e que se espalhava pelo Planeta, nas cintilantes insurreições da juventude contra uma qualquer autoridade)». Sim, isso aqui estava no ar, mesmo que longe dos acontecimentos.

Os trabalhadores, partilhando algumas destas preocupações e influências, reclamavam crescentemente, no essencial, o fim da exploração e das desigualdades agravadas no crescimento e concentração da economia, com a presença ao lado da classe operária de quadros e empregados que não se limitavam à reprodução dos valores do sistema, antes apresentavam reivindicações próprias e estando muito presentes nas lutas sindicais.

A aura de De Gaulle tinha chegado a 1968 completamente desfeita entre os trabalhadores. O número de dias de greve passara de menos de um milhão em 1965 para 2,5 milhões em 1966 e mais de 4,2 milhões em 1967.

Estava em curso um processo negocial entre as centrais sindicais e o patronato, intenso com este a brandir com mão de ferro num terreno que deslizava sob os seus pés. A CGT e a CFDT (Confederação Francesa Democrática do Trabalho) estavam coesas com a terceira central sindical francesa, a FO (Força Operária), menos  empenhada.

Os acontecimentos de Maio iriam alterar e esta situação e os trabalhadores, nos Acordos de Grenelle, iriam atingir vitórias maiores do que as que tinham alcançado durante o governo da Frente Popular de Léon Blum (1936/7). 

Nos meios culturais franceses desde Fevereiro que o descontentamento já existente subira em flecha. No segundo dia da filmagem de “Beijos proibidos” (Baisers volés), François Truffaut foi informado pelo chefe da redacção dos Cahiers du Cinéma que o lendário fundador e director da Cinemateca, Henri Langlois, por não ter exercido censura sobre várias imagens seria demitido, por proposta do Ministro da Cultura André Malraux, na sequência de indicações de alguns “informadores” do ministro. As reacções nos meios culturais dispararam.

O Festival de Cannes, aberto em 10 de Maio, acabaria por ser suspenso oito dias depois. Liderados por Truffaut e outros cineastas, alguns com filmes concorrendo na mostra, mil e duzentos profissionais de cinema da França montaram, na Croisette e em Paris, a «sua Bastilha», criaram os Estados-Gerais do Cinema Francês, Inspirados nos Estados-Gerais da França – a Assembleia da Revolução Francesa, de 1789. 

No Maio de 68 ocorreu a que talvez tenha sido a maior greve geral da história contemporânea, no apogeu do capitalismo no pós-guerra. Foram dez milhões com ocupação das empresas e universidades.

Depois da greve, prosseguiam os protestos e o general De Gaulle decidiu criar um quartel-general de operações militares para confrontar uma eventual insurreição e tomada do poder, dissolveu a Assembleia Nacional e marcou eleições legislativas para Junho de 1968. Nelas a direita unida em torno de De Gaulle venceu as eleições, com 43,6%, o PCF tem 20%, a Federação da Esquerda Democrática e Socialista (Mitterrand) ficou pelos 16,5%, o Centro Democrático tem 10,3%, e o PSU 3,9%. Maurice Couve de Murville foi então nomeado primeiro-ministro e De Gaulle demitiu-se, depois da derrota num referendo desastroso sobre alterações de poderes nas instituições políticas em 29 de Abril de 1969.

Menos de dois meses mais tarde, e depois da greve ter mobilizado quase 10 milhões de assalariados, o gaullismo ganhou as eleições gerais, aumentando a sua percentagem em cinco pontos percentuais. A consequência eleitoral do maior movimento popular que a França conhecera desde a Libertação, constituía uma derrota para a esquerda. O PCF descia de 22 para 20%, perdendo cerca de 600 mil votos. 

Como referiu Sérgio Ribeiro, na efeméride de há dez anos, foi um fracasso sério, que deu à maioria de direita os meios e o respaldo para aperfeiçoar o seu aparelho de dominação. Deste fracasso foi acusado, claro, o proletariado e as suas organizações, a CGT e o PCF. Não teriam «nem reconhecido nem compreendido» um movimento que «não estava no programa». Não teriam percebido o valor novo, transformador, revolucionário, das ideias, das formas de luta postas em acção pelos animadores do movimento dos estudantes. O poder estava vago, e não queriam sabido, ou não teriam querido, tomá-lo.

Em resumo, as lições choveram de todos os lados. Decretou-se a derrota do comunismo e o espírito revolucionário passou a morar ora em Roccard ora em gaullistas «de esquerda». E podia ler-se que «a classe operária não seja já revolucionária, isso parece quase evidente». Porque se queria que fosse evidente. A nova utopia tinha, a esses olhos, uma vantagem inestimável: os seus protagonistas combatiam o PCF. A partir daí, era «compreendida» 1.

Nestes 50 anos, a Antena1 passou uma gravação de entrevistas a protagonistas do Maio de 68, de que não retive a entidade que as tinha feito, em que um activista «maoísta» de então afirmava: «O nosso objectivo era acabar com o PCF». 

A correlação de forças sociais e políticas, apesar do PCF ter tido antes do Maio de 68, uma das suas mais importantes votações, com 22,2%, e de a classe operária não ter parado de crescer desde os tempos da Frente Popular com Léon Blum, e particularmente depois do fim da Segunda Guerra, não levou o PCF a admitir existirem condições objectivas e subjectivas, para a revolução socialista em França, apesar de, efectivamente, em boa parte do mês de Maio se ter vivido um intenso período pré-revolucionário.

Sobre esta matéria, depois dos acontecimentos de Maio correntes anarquistas, arrastou-se um debate sobre essas condições, no seio dos comunistas e de outras correntes, com os anarquistas a usarem, quase a papel químico, idênticas afirmações de Trotsky de que, com o governo de Léon Blum, o PCF e o PSF poderiam ter tomado o poder em 19362.

Uma dor de cabeça para alguns académicos

Os propagandistas da classe dominante davam como adquirido o fim do protagonismo dos trabalhadores como factor de transformação social. E influenciavam pensadores de esquerda.

Nos próprios dias dos acontecimentos, o britânico The Economist valorizava as condições de vida em França, valorizando o seu establishment e referindo que os sindicatos eram «pateticamente fracos»3.

Mas também André Gorz afirmava em A reforma e a revolução que, «no futuro previsível não haverá nenhuma crise do capitalismo europeu suficientemente radical para levar as massas de trabalhadores a greves gerais revolucionárias ou insurreições armadas em apoio a seus interesses vitais»4.

E Ernest Mandel, não o tendo passado então a escrito, em Abril, numa reunião em Londres, comentou que os trabalhadores franceses estavam aburguesados e «americanizados» e não protagonizariam nenhum acontecimento desse tipo durante os vinte anos seguintes. 

Os acontecimentos de Maio

Os factos começam na sua expressão mais viva na Universidade de Nanterre, nas imediações de Paris, no dia 3, com a agitação estudantil interna, e influência do anarquista «movimento do 22 de Março», de Cohen Bendit. 

Nos meses anteriores já existiam acções estudantis com manifestações e ocupações e no dia 4 seguinte a escola foi encerrada, os seus cursos suspensos e ocorreu a ocupação da Sorbonne pela polícia, já com uma violência despropositada a provocar confrontos.

A violência propagou-se a todo o Quartier Latin, tendo sido espancados e presos cerca 600 estudantes com uma centena deles feridos. A solidariedade com os estudantes alargou-se à população não envolvida que verberou fortemente De Gaulle e o primeiro-ministro Georges Pompidou, que não terão avaliado bem a situação. Os estudantes responderam aos CRSs com os «pavés», umas pedras de calçada maiores que as nossas…

No dia 6 dezenas de milhares de estudantes e professores universitários saíram à rua ao apelo da UNEF (União Nacional dos Estudantes de França) e do Snesup (Sindicato Nacional dos Professores do Ensino Superior), enquanto se generalizavam as greves nas universidades de França em solidariedade com os atingidos pela repressão. 

No dia 9 novas manifestações contaram já com os estudantes liceais. 
E no dia 10 ocorreu a maior manifestação, nesta fase, convocada pela UNEF (talvez centenas de milhares participantes). Alguns milhares de manifestantes destacaram-se do desfile, ergueram barricadas, realizando diversas provocações e isso «justificou» uma bárbara carga policial, que gerou reacções e levou grupos esquerdistas a ter uma influência decisiva na direcção do movimento estudantil. 

Em comício de 8 de Maio, a UNEF propôs às centrais sindicais uma manifestação «para defesa dos direitos de expressão sindical e política e contra a repressão policial». O que foi aceite depois de várias reuniões, fixando-se a data para dia 14.

Os estudantes convocaram várias manifestações para esse dia. 
Mas condições políticas impuseram que a CGT propusesse uma greve geral de 24 horas e manifestações para 13 de Maio, a que a CFDT deu o seu acordo, juntando-se-lhe as organizações estudantis.

Esta manifestação teve uma preparação ímpar com plenários de trabalhadores nas empresas conduzidos pelos sindicatos. Apresentou uma grande vivacidade e exuberância e a sensação nova de operários e estudantes desfilarem lado-a-lado. Da Place de la République ao Latin Quartier sentia-se o pulsar das lutas mas também a alegria, os sonhos a busca de utopias libertadoras. A greve abrangeu dez milhões de assalariados, isto é, dois terços da sua totalidade.

Em 27 de Maio, governo e patronato já se revelaram com outra disposição para concluírem os Acordos de Grenelle, a que nos referimos atrás. 

O PCF afirmara, em várias ocasiões – como no comício a 10 de Maio e aderindo à greve e às manifestações –, o seu apoio a um movimento cada vez mais largo, cujas implicações políticas eram perceptíveis mas de que não se podia ainda medir a extensão.

Mas, paralelamente nos dois meses anteriores, os comunistas e a CGT defrontaram desafios de liderança na contestação ao gaullismo. Vários grupos esquerdistas pretendiam excluí-los dos movimentos de protesto, alcunhando-os de burocratas e mesmo inimigos. 

Numa reunião com a CGT ainda em Maio, Mitterrand propôs que se não negociasse com o governo porque isso lhe iria devolver credibilidade perdida e dificultaria o programa comum da esquerda, e propôs aos sindicalistas que aceitassem reduções salariais e moderassem as reivindicações. Para ele era evidente ser mais importante cavalgar o movimento para ceder ao poder do que consagrar vitórias sociais importantes. Mas as conquistas de Grenelle acabaram por se impor.

Os 15 mil trabalhadores da Renault-Billancourt apoiaram, em plenário, os esforços dos comunistas para se caminhar para um governo alternativo com uma política alternativa. Mas o coração de Mitterrand já estava noutro lado, o que exigiu múltiplos alertas para que o apoio popular aos estudantes e trabalhadores em Maio não fosse carreado eleitoralmente para a FGDS (Miterrand) e para a deriva do movimento para apoio à gestão de «esquerda» do sistema.

Implicou também que não se ficasse o movimento resumido às conquistas de Grenelle. E já não refiro aqui, a não ser para os referenciar por serem oportunistas à boleia do movimento, Jean-Jacques Servan-Shreiber, do «modelo americano», Lecanuet e Duhamel do «despertar da França» e mesmo as referências elogiosas de Giscard d’Estaing.

Um combate clarificador à esquerda

Num primeiro instante, os comunistas e a CGT confundiram a árvore com a floresta e arriscaram-se a perder influência entre a juventude universitária como se novos anseios e expressões de luta pudessem ser resumidos à expressão provocatória de uma minoria.

A experiência de décadas de luta levou-os a precaver o movimento de actos provocatórios por preverem as suas consequências na disposição política dos franceses, depois de uma ampla condenação da repressão e do autoritarismo gaullista. Demorou a interpretação desses sentimentos e atitudes entre os estudantes e o seu acolhimento na acção comum. 

Foi possível, apesar disso e das tensões existentes nas relações entre a CGT, a CFDT, a UNEF e o Snesup realizarem-se por todo o país plenários de trabalhadores nas empresas com a participação de estudantes sobre as lutas destes e a aspiração a lutas comuns. Isso não aconteceu em poucas empresas em que os trabalhadores receavam actos de estudantes contra o equipamento com que laboravam.

Paralelamente, os socialistas da FGDS (Federação da Esquerda Democrática e Socialista) que Mitterrand vinha formando em torno do Partido Socialista desde 1958, já fugiam ao programa comum da esquerda e preparavam-se para um posterior aproveitamento político eleitoral do movimento que estava em marcha. 

Pompidou acusava os comunistas de terem preparado um golpe de força. E Michel Rocard, de um ponto de vista pretensamente de «esquerda» acusava-os de não terem tomado o poder que se tinha esvaído e estava prostrado (Rocard abandonaria o seu PSU para entrar depois no PS pela esquerda, chegando a primeiro-ministro, de que saiu pela direita, feito liberal).

Os grupos anarquistas e esquerdistas acusavam o PCF de ser esclerosado e «incapaz», e que «a CGT tinha abandonado os estudantes». Como referiu na altura Lauren Salini: «Os ataques convergiam sobre o PCF e todos tinham por finalidade enfraquecê-lo, dividi-lo, destruí-lo se possível, acabar, enfim, com um partido que a classe operária francesa há meio século vinha construindo»5.

De tudo isto Mitterrand beneficiou mais tarde, mas não sem antes, em 1969, a direita francesa ter tido uma retumbante vitória, na sequência de grandes manifestações da burguesia francesa que receava a perda de privilégios e correcções nos desequilíbrios sociais. Mas De Gaulle viria a demitir-se nesse ano, depois da derrota desastrosa num referendo sobre a reforma do Senado e a regionalização.

O regresso de De Gaulle, que tinha fugido para a Alemanha e deixado Pompidou ao leme do barco, foi preparada como rejeição dos desacatos e o medo do comunismo. A esquerda teve então uma derrota na ressaca de acontecimentos atribuídos à esquerda, como as provocações, as barricadas, as destruições e a insegurança.

Se, no plano político, o sectarismo nesta difícil relação foi motivo de uma reflexão crítica entre os comunistas, já o mesmo não se verificou com os dirigentes mais destacados do movimento estudantil, alguns dos quais, nas eleições posteriores a estas se iriam lançar nos braços de Mitterrand, que capitalizaria da reiterada política desastrosa do presidente e do seu primeiro-ministro.

O objectivo ambicioso, que foi assumido por muitos dirigentes estudantis, com a solidariedade popular à sua luta foi, em vez de dar mais força à vaga de fundo contra a direita, a de se transformarem rapidamente numa alternativa à influência dos comunistas e dos sindicatos no mundo do trabalho. E subestimar as vitórias de negociações obtidas no calor da luta a troco de consignas mais ou menos idealistas ou vazias de conteúdo reivindicativo concreto.

O movimento já em meados de Maio começou a sofrer em benefício de outras forças políticas, divisão que se acentuava. Reagindo a esta situação, a CGT privilegiou o «tous ensemble» nas negociações com a UNEF em vez de ter tido uma relação directa com os estudantes.

Subestimaram-se, assim, os debates sobre os novos valores do quotidiano individual e de grupo, as novos preocupações que, não podendo obviamente substituir os valores da movimentação social conjunta, deveriam ter estimulado mais a compreensão, a convergência e a criatividade próprias que, em larga medida, acabou por se limitar a adoptar expressões originárias de outros países, mesmo no caso de ícones e consignas do Maio de 68, que não foram por ele criadas mas importadas dos EUA e do Reino Unido
Os seus efeitos culturais existiram e foram importantes mas a sua presença ao nível dos valores foi mais duradoura. 

O PCF a partir de 22 de Maio fazia uma reflexão sobre as jornadas «A Universidade está doente de gaullismo. A Universidade francesa está esgotada nas estruturas, conteúdos e métodos. É uma universidade de classe, que nem apenas admite mais de 10% dos filhos de operários e reflecte uma imagem invertida da sociedade. O quadro conservador em que se fechou, mutila a ciência, a cultura, a técnica, e tornou-se insuportável para estudantes e professores. Para esconder a realidade e difundir mais facilmente ideologias reaccionárias, a grande burguesia esforçou-se por isolar a Universidade da vida política e social (…)».

Depois de 1969, Léo Ferré, numa sucessão de belas canções6, ilustra bem a sensação de ressaca e de desilusão de alguns com o curso dos acontecimentos, que é compreensível na medida em que o movimento de ideias, em 1968 e 1969, foi para eles apenas remissível para a satisfação do prazer individual ou libertário, para o verbalismo, em vez de resultado nas transformações da sociedade e para a sua contraditória pretensão do exercício de uma influência hegemónica ao nível das ideias e das organizações.

O Maio de 68 e Portugal

O Maio de 68 em Portugal influenciou o movimento de ideias nomeadamente entre estudantes mas não teve influência directa na sua acção reivindicativa.

Politicamente não os influenciou mais que as Cheias de 67, em que se envolveram e adquiriram uma consciência política marcante para os seus percursos futuros. Esteve presente, sim, nesse espaço de «liberdade» que eram algumas associações de estudantes como a do Técnico Associação, com «emissões» da nossa cabina sonora e em convívios.

Nesse ano de 1968, o movimento estudantil português travou importantes lutas, nomeadamente em defesa da Cantina do Técnico, que levou ao seu encerramento, e ao da AEIST, o plenário dos estudantes que aprovou o «luto académico» de Lisboa, na Cidade Universitária contra esses encerramentos, as assembleias magnas de Coimbra com o mesmo objectivo e com a aprovação, em Coimbra, dos «Oito pontos» reivindicativos dos estudantes portugueses.

Mas também se realizaram concentrações e greves, com reivindicações próprias na Faculdade de Ciências e Instituto Superior de Economia (actual ISEG) e nos Institutos Industriais de Lisboa e Porto. Mas também a manifestação contra a intervenção dos EUA na Guerra do Vietname e uma outra pela PIDE ter deixado morrer, sem assistência médica, o estudante da Universidade de Lovaina, Daniel Teixeira.

Ao movimento estudantil, à escala mundial, não escapou o significado de outros acontecimentos internacionais, que os influenciaram como os assassinatos de Luther King e Robert Kennedy, a Guerra do Vietname a chegar ao seu fim com a derrota dos EUA, as inúmeras manifestações estudantis em todo o mundo, com destaque pelo dramatismo superior ao do Maio em França, das do México e EUA, o acentuar das ditaduras da América Latina, a Sexta-feira Sangrenta no Rio de Janeiro e o cerco a Cuba ou a Primavera de Praga.

Se este último não teve problemas com a censura fascista, os restantes chegavam-nos por outras vias, já então muito eficazes para propagar a informação onde fosse possível, se bem que num âmbito reduzido.

Concluindo 

Quatro mitos ficam esclarecidos. A de que o Maio de 68 foi o alfa e o ómega do movimento estudantil à escala mundial. O de que os comunistas e a CGT se tinham oposto aos estudantes. Que o Maio de 68 tinha sido obra de arruaceiros que destruíam tudo. E que os comunistas só tinham estado interessados em garantir acordos com o patronato, virando costas a uma insurreição.

Com todas as suas contradições, sonhos não realizados e, apesar do amargo da suposta «derrota», o Maio de 68 introduziu mudanças ao nível do quotidiano, nas nossas vidas, na sensação renovada da força de estudantes e trabalhadores, nas relações homem-mulher e na emancipação das mulheres, a rebeldia e o inconformismo na procura de outras formas de viver, que se mantêm como património de valor universal. 

  • 1. Sérgio Ribeiro, «As lições de Maio de 68 em França», O Militante, ed. 294, de Maio/Junho de 2018
  • 2. Léon Trotsky, On France, p. 178.
  • 3. Norman Macrae, suplemento especial do The Economist, Maio de 1968
  • 4. André Gorz, Reform and Revolution, The Socialist Register, Maio de 1968
  • 5. Laurent Salini, Mai des prolétaires, Editions Sociales/NotreTemps, Novembro de 1968
  • 6. A sequência do espírito revolucionário e a nostalgia de promessas dos acontecimentos foram cantados por Léo Ferré, com «L'Été 68» (1968), «Comme une fille» (1969), «Paris je ne t'aime plus» (1970), «La Violence et l'Ennui» (1971), «Il n'y a plus rien» (1973) e «La Nostalgie» (1979)
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Há muito que o PCF já não tem esse peso social e eleitoral. Mas a máquina para garantir a manutenção do sistema serviu, a partir dai, para que os partidos do centro impedissem a correspondente representação parlamentar das outras forças políticas.

Tendo servido, durante bastante tempo, a socialistas e partidos de direita francesa, com destaque para gaulistas e centristas, ele começou a ser implodido em 2017, com a vitória parlamentar do partido de tendência liberal do presidente Macron.

A erupção deste, no terreno político francês, significou o enfraquecimento dos partidos da alternância clássica e a criação de um novo tabuleiro político, em que aos liberais se opunha a extrema-direita, mas que, esta, não elegia os deputados correspondentes, devido ao sistema eleitoral uninominal a duas voltas: cada vez que um candidato de extrema-direita passava à segunda volta, os seus concorrentes, maioritariamente macronistas, apelavam ao «consenso republicano» para barrar a extrema-direita.

Esse barragem foi derrubada nestas eleições. Não porque o sistema se tenha tornado proporcional e mais justo, mas porque o crescimento da coligação de esquerda da Nupes fez com que os apoiantes de Macron não tenham querido ajudar na segunda volta os candidatos de esquerda que se opunham à extrema-direita. Resultado foram eleitos 89 deputados da Frente Nacional, três vezes mais do que os 32 deputados da Frente Nacional eleitos por representação proporcional em 1986, quando a lei eleitoral mudou durante muito pouco tempo.

Vamos aos resultados eleitorais

A coligação que apoia o presidente francês, Emmanuel Macron, obteve 245 deputados na Assembleia Nacional na segunda volta das eleições legislativas de domingo, com 100% dos votos apurados, ficando muito aquém dos 289 necessários para a maioria absoluta.

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Quando o poder tem medo de perder

O presidente francês começou tarde a campanha eleitoral, marcada pela hipótese de as listas conjuntas de esquerda poderem acabar com a sua maioria no parlamento.

Macron em campanha , quando foi interpelado por uma jovem. 
CréditosJacques Witt / Sipa

O final da campanha da coligação que apoia o reeleito presidente Francês, Emmanuel Macron, que mudou o nome para Ensemble! (juntos), não tem sido calma, desde lançarem acusações que o principal proponente da coligação de esquerda, Jean-Luc Mélenchon, é o Hugo Chávez francês e que se pudesse faria do país uma nova Venezuela, até afirmarem que está contra as forças da ordem, por ter condenado a morte a tiro de uma pessoa, por polícias numa operação stop, pode-se ouvir um pouco de tudo da boca dos ministros e dirigentes dos partidos que apoiam o presidente. Mas para ilustrar o clima crispado do chefe de Estado na campanha, nada melhor que uma pequena história.

Uma estudante do ensino secundário Laura, 18 anos, a viver em Gaillac no Tarn, teve a desagradável surpresa de ter recebido – no dia seguinte a ter interpelado o presidente sobre o facto de dois os seus ministros terem sido acusados de violação – a visita de vários polícias na sua escola.

A estudante trocou palavras com Emmanuel Macron, numa viagem deste ao seu departamento eleitoral, sobre as acusações de violação de dois ministros do governo, Gérald Darmanin e Damien Abad (o primeiro tinha sido alvo de uma queixa por violação, fechada sem acção, depois relançada e para a qual o procurador solicitou um arquivamento no início de 2022).

O diálogo que terá incomodado o governante foi tido quando o presidente deixava a esquadra de Gaillac com o ministro do Interior, Gérald Darmanin: «O principal objectivo do seu mandato de cinco anos era a igualdade das mulheres e a protecção das mulheres que são violadas. Entretanto, coloca à cabeça do Estado, homens acusados de violação e violência contra as mulheres. Porquê?», questionou a estudante.

No dia seguinte recebeu a visita das autoridades. «Eu estava na aula de espanhol quando, por volta das 11.30 da manhã, a subdirectora veio buscar-me para uma conversa. Fora da aula, ela perguntou-me se eu aceitaria falar com os polícias», disse a estudante ao Le Parisien.

Os polícias estavam inicialmente preocupados em saber se ela queria apresentar uma queixa. De facto, à margem da sua conversa com o chefe de Estado, ela tinha confiado que tinha sido vítima de uma agressão sexual no RER há quatro anos atrás. Mas «chegámos rapidamente à troca de palavras com Emmanuel Macron. Eles perguntaram-me o que eu queria fazer, por isso disse-lhes que queria fazer essas perguntas. Então o polícia disse-me: "Isso não era para ser feito". A sua colega acrescentou que se eu tivesse querido interrogar o Presidente da República, então deveria ter passado por canais hierárquicos, escrevendo ao Eliseu», disse a jovem ao diário. Ela descreveu esta discussão, que durou dez minutos, como «intimidatória».

A abstenção ameaça crescer

Os colégios eleitorais da França metropolitana abriram este domingo para a primeira volta das eleições legislativas, nas quais se espera um duelo entre o partido do presidente Emmanuel Macron e a nova coligação de esquerda, de Jean-Luc Mélenchon.

Mais de 48 milhões de franceses são convocados para as eleições de dois turnos nas quais estão em jogo os 577 círculos eleitorais da Assembleia Nacional e nas quais a principal incógnita é se Macron alcançará a maioria absoluta ou será forçado a procurar alianças nos próximos cinco anos para levar a cabo o seu programa eleitoral.

Um dos elementos que se espera assinalar este dia, segundo os institutos demográficos, é a elevada taxa de abstenção, que se prevê superior ao recorde de 51,3% alcançado nas últimas eleições de 2017.

De forma a vencer na primeira volta, o candidato mais votado tem de reunir 50% dos votos que representem pelo menos 25% dos eleitores inscritos. Quando isto não acontece, passam à segunda volta, que se realiza no dia 19 de junho, todos os candidatos que tenham obtido votos equivalentes a mais de 12,5% dos inscritos ou os dois candidatos mais votados.

Em 2017, apenas quatro deputados foram eleitos na primeira volta, já que devido ao sistema de percentagem de votos em relação à população inscrita nas listas, dificilmente haverá muitos eleitos na primeira volta.

As eleições legislativas francesas disputam-se em 12 e 19 de junho, funcionando com base num sistema uninominal de duas voltas.

Empate técnico entre a esquerda e Macron

As últimas sondagens da primeira volta das eleições legislativas de domingo, 12 de Junho, mostram um empate entre os dois pólos principais. Os candidatos de Ensemble! – uma coligação que reúne La République en marche (LRM), Horizons e o MoDem – têm 28% das intenções de voto (margem de erro de mais ou menos 1,3 pontos), logo seguido da Nova União Popular, Ecológica e Social - Nupes, que reúne A França Insubmissa, o Partido Socialista (PS), o Partido Comunista Francês (PCF) e a Europa Ecologia-Os Verdes, com 27% na sondagem (mesma margem de erro). O Rassemblement National (União Nacional de Marine Le Pen está cotado com menor previsão de votos (19%, margem de erro mais ou menos 1,1 pontos). Contudo, se adicionarmos a pontuação esperada de Reconquête (Reconquista), a formação de Eric Zemmour (5,5%, margem de erro de mais ou menos 0,7 pontos), o pólo da extrema-direita atingiria cerca de 24,5%.

Quando a luta de classes é escondida

Num artigo, publicado no diário Le Monde, o economista Thomas Piketty abordou os desafios políticos que estas eleições colocam, com a existência de um bloco liberal de direita, a esquerda e a extrema-direita, da seguinte forma: «É possível saírmos de uma democracia com três partições eleitorais e reconstruir uma divisão esquerda-direita centrada em questões de redistribuição e desigualdade social, em França e, de uma forma mais geral, à escala europeia e internacional? Esta é a questão central das actuais eleições legislativas».

Como explica o economista esta partição do eleitorado em três blocos não acabou com as clivagens políticas fundadas sobre os interesses diferentes e divergentes das várias classes sociais.

«O bloco liberal atinge de longe os seus melhores resultados entre os eleitores mais favorecidos socialmente, qualquer que seja o critério utilizado (rendimento, riqueza, diploma), particularmente entre os mais velhos. Se este "bloco burguês" consegue reunir um terço dos votos, isso deve-se também à evolução da participação, que se tornou muito mais forte entre os mais abastados e os mais velhos do que entre o resto da população durante as últimas décadas, o que não era o caso antes.»

«De facto, este bloco sintetizou as elites económicas e imobiliárias que anteriormente votaram a favor do centro-direita com as elites instruídas que assumiram o centro-esquerda em muitos lugares desde 1990, como mostra a World Political Cleavages and Inequality Database. Com a participação igualitária de todos os grupos sociodemográficos, no entanto, este bloco apenas reuniria cerca de um quarto dos votos e não poderia pretender governar sozinho. Em contraste, as forças de esquerda estariam potencialmente na liderança, uma vez que têm melhor pontuação entre as classes trabalhadoras, e especialmente entre a geração mais jovem. O bloco nacionalista também avançaria, mas mais ligeiramente, porque o perfil do seu voto popular é mais equilibrado entre os grupos etários.»

«De certa forma, poderíamos dizer que esta divisão em três blocos se refere às três grandes famílias ideológicas que estruturaram a vida política durante mais de dois séculos [em França]: o liberalismo, o nacionalismo e o socialismo. Desde a revolução industrial, o liberalismo tem sido baseado no mercado e no desmantelamento social da economia, e tem atraído a maioria dos vencedores do sistema. O nacionalismo responde à crise social resultante, reificando a nação e as solidariedades etno-nacionais, enquanto o socialismo tenta, não sem dificuldade, promover a emancipação universalista através da educação, do conhecimento e do acesso ao poder.», analisa Piketty.

Para o economista, a grande novidade no presente é que a visibilidade da questão social «perdeu intensidade, em parte, porque quando a esquerda esteve no poder perdeu a sua ambição transformadora e aliou-se muitas vezes ao liberalismo triunfante depois da queda do comunismo.»

Aquilo que define esta democracia dividida em três polos, é que as classes populares estão profundamente divididas em torno da questão migratória e pós-colonial, segundo Piketty:

«O eleitorado popular jovem e urbano com uma origem nacional mais mixigenada vota nas forças de esquerda; inversamente, o eleitorado popular menos jovem e mais rural sente-se abandonado e vira-se para o bloco nacionalista. O bloco burguês espera permanecer perpetuamente no poder graças a esta divisão, mas esta é uma aposta arriscada e perigosa, porque a retórica utilizada pelo bloco nacionalista (e muitas vezes encorajada pelo bloco burguês) não conduz a nenhum resultado construtivo e apenas agrava os conflitos num impasse.».

Não é por isso de admirar que perante esta disputa, o primeiro-ministro português, António Costa, tenha estado recentemente em França para apoiar Macron, contra a opinião do Partido Socialista local.

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A Ensemble! (juntos, em português) recebeu 38,57% dos votos, o que significa perder uma dezena de pontos percentuais e 105 deputados em relação à segunda volta das eleições legislativas de 2017.

A derrota foi expressiva e com pormenores inusitados. Pela primeira vez, desde 1848, um antigo presidente do parlamento não é reeleito, foi o que aconteceu no domingo a Richard Ferrand, candidato macronista, derrotado pelo candidato do Nupes.

De acordo com os resultados divulgados hoje pelo Ministério do Interior, a coligação de esquerda Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes) fica com 131 deputados, com 31,60% dos votos. Umas contas que são duvidosas, já na primeira volta o governo francês tinha contabilizado abaixo o Nupes para que não se percebesse que o partido de Macron tinha ficado em segundo na primeira ida às urnas das legislativas.

Segundo o diário Le Monde, foram de facto 142 deputados eleitos pelo Nupes, 11 a mais do que o Ministério do Interior contabiliza. Estes representantes eleitos são seis candidatos da Ilha da Reunião, os três deputados da Polinésia Francesa, assim como dois representantes eleitos de Haute-Garonne (8º círculo eleitoral) e Ardèche (1º círculo eleitoral), classificados como «diversos de esquerda» pelo governo de Macron.

O diário contabiliza-os desta forma porque eles vão pertencer a grupos parlamentares saídos do Nupes e foram apoiados pela coligação nas eleições.

Estes dados significam uma enorme subida em relação aos 63 que os quatro partidos que compõem o Nupes tiveram em 2017, quando se apresentaram separadamente (A França Insubmissa, o Partido Socialista, o Partido Comunista Francês e os Ecologistas).

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A coligação de esquerda surpreende na primeira volta

Depois de uma campanha sem brilho e num contexto de uma abstenção recorde de 52,51%, os Nupes (25,65%) estão ligeiramente à frente do Ensemble! (25,2%), nas primeiras estimativas.

O candidato de esquerda apela à mobilização na segunda volta para derrotar o partido do presidente. 
CréditosDR / DR

Fechar os olhos, ranger os dentes e ficar calado pode ser uma estratégia política? Não, de acordo com os resultados da primeira volta das eleições legislativas de domingo, 12 de Junho, afirma a análise do diário Le Monde. Desde a sua reeleição como Presidente da República a 24 de Abril, Emmanuel Macron tem utilizado a «estratégia do clorofórmio», segundo os seus opositores, para tentar amortecer o impacto de uma votação que os estrategas da maioria cessante se aproximavam com um sentimento de afundamento.

Com excepção de um texto sobre o poder de compra, prometido para o início do Verão, o chefe de Estado, voluntariamente, imobilizou-se durante as sete semanas que separaram a segunda volta das eleições presidenciais da primeira volta das eleições legislativas. Apenas anunciou a reforma das pensões. Isto não foi suficiente para travar a dinâmica da Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes).

A coligação que apoia Macron recusa-se a dar indicação de voto quando a segunda volta se disputa entre a coligação de esquerda e os candidatos da extrema-direita de Marianne Le Pen. Justificam-se, afirmando que são ambas forças extremistas. Longe vai o tempo que Macron apelava ao voto de todos os «republicanos» contra a candidata da extrema-direita nas presidênciais.

Várias figuras apoiantes de Macron, incluindo a porta-voz do governo, Olivia Gregoire, recusaram-se a inidicar uma preferência entre a coligação de esquerda e o partido da extrema-direita para a segunda volta. Darão instruções de voto "caso a caso".

Na noite de 12 de Junho, os macronistas desfilaram nos aparelhos de televisão. Um hábito nas noites de eleições. Encontraram-se numa posição a que não estão habituados: Em vários círculos eleitorais, os candidatos do Ensemble! (Juntos), coligação que apoiava o presidente reeleito foram eliminados na primeira volta. A segunda ronda será jogada sem eles. A esquerda, unida sob a bandeira dos Nupes, enfrentará aqui ou ali a extrema-direita. A partir daí, coloca-se a questão: quem apoiar? A tradição republicana é que o partido eliminado - neste caso o Ensemble! - deve declarar apoio para o partido que enfrenta a extrema-direita de Marine Le Pen, a União Nacional. Mas para as grandes figuras do macronismo, a resposta não é tão óbvia. Especialmente depois do próprio Emmanuel Macron ter declarado no primeiro dia da campanha: «O projecto de Jean-Luc Mélenchon ou Marine Le Pen é a desordem e submissão».

Uma declaração que não admira, dado que só uma força pode, embora dificilmente, ter mais deputados que a coligação que apoia o presidente, e essa força é a coligação de esquerda Nupes.

Por sua vez, o líder da coligação de esquerda Nupes, Jean-Luc Mélenchon, reclamou este dominfo à noite vitória na primeira volta das eleições legislativas, considerando que o partido presidencial foi «desfeito» e apelando à mobilização na segunda volta para construir um «futuro de harmonia».

«Pela primeira vez na Quinta República, um Presidente recentemente eleito não consegue ter uma maioria absoluta na eleição legislativa que lhe sucede», frisou.

«No fim desta primeira volta, a Nupes está à frente: estará presente em mais de 500 círculos eleitorais na segunda volta», declarou Jean-Luc Mélenchon, no espaço «La Fabrique Événementielle», onde decorreu a noite eleitoral da Nupes, no norte de Paris, reagindo às primeiras projeções dos resultados eleitorais.

O líder da coligação que junta várias forças de esquerda – designadamente a França Insubmissa, o Partido Socialista francês, o Partido Comunista francês e a Europa Ecologia Os Verdes – considerou que, nesta primeira volta, o partido presidencial «foi derrotado e desfeito».

Mélenchon apelou assim que o povo se mobilize para a segunda volta das eleições legislativas, afirmando que o resultado da primeira volta cria uma «oportunidade extraordinária» para o «destino comum da pátria».

«Mobilizem-se para escancarar as portas do futuro, um futuro para o qual se mobilizaram tantas gerações antes da nossa. Esse futuro é um futuro de harmonia entre seres humanos, livres das dominações sociais, culturais e de género. É um futuro de harmonia entre os seres humanos e a natureza», sublinhou.

Mélenchon apelou designadamente à mobilização junto dos jovens – «a quem pertence o futuro» –, mas também junto «das classes populares que foram tão duramente atingidas por 30 anos de neoliberalismo».

As primeiras estimativas da primeira volta das eleições legislativas em França dão a coligação de esquerda liderada por Jean-Luc Melénchon com 25,6 % dos votos e o partido de Emmanuel Macron com cerca de 25,2 % dos votos, com muitos duelos na segunda volta.

A União Nacional de Marine Le Pen será a terceira força política podendo chegar a cerca de 19%.

De forma a vencer na primeira volta, o vencedor tem de reunir 50% dos votos que representem pelo menos 25% dos eleitores inscritos. Quando isto não acontece, passam à segunda volta, que se realiza no dia 19 de junho, todos os candidatos que tenham obtido votos equivalentes a mais de 12,5% dos inscritos ou os dois candidatos mais votados.

Assim, os resultados desta noite não vão definir completamente a configuração da Assembleia Nacional nos próximos cinco anos, já que tudo se joga na segunda volta das eleições legislativas, em 19 de junho.

A Nupes é uma coligação eleitoral liderada por Jean-Luc Mélenchon que junta vários partidos de esquerda, partilhando um programa comum e ultrapassando rivalidades históricas entre partidos de esquerda populista, como a França Insubmissa, os verdes, os comunistas e partidos de centro-esquerda pró-europeus, como o Partido Socialista francês.

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Mas o maior aumento, que as sondagens, antes das eleições, não previam com essa magnitude, é o da extrema-direita da União Nacional de Marine Le Pen, que conquista 89 lugares (com 17,30% dos votos), dando salto gigante em relação aos oito deputados que tinha conseguido em 2017, quando na segunda volta obteve 8,75% dos votos.

A extrema-direita ganha em regiões que não tinha anteriormente representação, em zonas do interior onde a classe operária francesa está pauperizada e preocupada com a desindustrialização e o constante aumento de preços. No Drôme, pela primeira vez a extrema-direita elege deputados. A nova deputada é uma antiga senhora da limpeza, Lisette Pollet, 54 anos. Foi empregada por Elior e depois pela Sodexo, e trabalhou como chefe de equipa de limpeza numa escola pública em Valence até ao Outono passado, quando decidiu dedicar-se à sua carreira política.

O clássico Partido Republicano de direita sofreu um grave revés, já que os 61 deputados alcançados ficam bem abaixo dos 112 de há cinco anos. Em percentagem de votos, caiu de 22,23% para 6,98%.

Com esta nova configuração, o governo Macron será obrigado a procurar aliados e, nas suas primeiras declarações, a primeira-ministra Elisabeth Borne alertou que esta nova Assembleia Nacional constitui «um risco» para o país.

Os macronistas já falam da necessidade de dissolver o parlamento, coisa que a lei só permite ao presidente depois da Assembleia Nacional ter funcionado durante, pelo menos, um ano,

Desde o início, quem poderia estar em risco era o seu próprio executivo, já que a Nupes avançou com a disposição de apresentar uma moção de censura, embora por si só não tenha capacidade para derrubar o governo.

Só a luta de classes pode derrotar a extrema-direita

Como vimos de início, há muito que o parlamento, devido às suas engenharias eleitorais, não representa devidamente a França, na sua diversidade. O estreitamento não é só político mas social, quantos operários e gente dos mais desfavorecidos, que fazem parte da maioria da população se sentam nas cadeiras dos deputados?

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A inflação multiplica lutas pelos aumento dos salários

Todas as semanas surgem conflitos em empresas, desde PMEs a multinacionais, em todos os sectores de actividade. A inflação atingiu o seu nível mais alto durante 37 anos em Maio. Os salários marcam passo.

Manifestation de trabalhadores do aeroporto Paris-Charles-de-Gaulle em greve por aumento dos salários. 
CréditosGEOFFROY VAN DER HASSELT / AFP

Para assinalarem o início da sua terceira semana de greve, os 67 trabalhadores da fabrica de materiais eléctricos Pommier marcharam pelas ruas de Bagnères-de-Bigorre (Altos Pirinéus) nesta terça-feira, 14 de Junho, «para fazer algum barulho»: estão a exigir um aumento salarial de 5%, a manutenção do subsídio de férias de 400 euros e um aumento do subsídio de refeições.

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Quando o poder tem medo de perder

O presidente francês começou tarde a campanha eleitoral, marcada pela hipótese de as listas conjuntas de esquerda poderem acabar com a sua maioria no parlamento.

Macron em campanha , quando foi interpelado por uma jovem. 
CréditosJacques Witt / Sipa

O final da campanha da coligação que apoia o reeleito presidente Francês, Emmanuel Macron, que mudou o nome para Ensemble! (juntos), não tem sido calma, desde lançarem acusações que o principal proponente da coligação de esquerda, Jean-Luc Mélenchon, é o Hugo Chávez francês e que se pudesse faria do país uma nova Venezuela, até afirmarem que está contra as forças da ordem, por ter condenado a morte a tiro de uma pessoa, por polícias numa operação stop, pode-se ouvir um pouco de tudo da boca dos ministros e dirigentes dos partidos que apoiam o presidente. Mas para ilustrar o clima crispado do chefe de Estado na campanha, nada melhor que uma pequena história.

Uma estudante do ensino secundário Laura, 18 anos, a viver em Gaillac no Tarn, teve a desagradável surpresa de ter recebido – no dia seguinte a ter interpelado o presidente sobre o facto de dois os seus ministros terem sido acusados de violação – a visita de vários polícias na sua escola.

A estudante trocou palavras com Emmanuel Macron, numa viagem deste ao seu departamento eleitoral, sobre as acusações de violação de dois ministros do governo, Gérald Darmanin e Damien Abad (o primeiro tinha sido alvo de uma queixa por violação, fechada sem acção, depois relançada e para a qual o procurador solicitou um arquivamento no início de 2022).

O diálogo que terá incomodado o governante foi tido quando o presidente deixava a esquadra de Gaillac com o ministro do Interior, Gérald Darmanin: «O principal objectivo do seu mandato de cinco anos era a igualdade das mulheres e a protecção das mulheres que são violadas. Entretanto, coloca à cabeça do Estado, homens acusados de violação e violência contra as mulheres. Porquê?», questionou a estudante.

No dia seguinte recebeu a visita das autoridades. «Eu estava na aula de espanhol quando, por volta das 11.30 da manhã, a subdirectora veio buscar-me para uma conversa. Fora da aula, ela perguntou-me se eu aceitaria falar com os polícias», disse a estudante ao Le Parisien.

Os polícias estavam inicialmente preocupados em saber se ela queria apresentar uma queixa. De facto, à margem da sua conversa com o chefe de Estado, ela tinha confiado que tinha sido vítima de uma agressão sexual no RER há quatro anos atrás. Mas «chegámos rapidamente à troca de palavras com Emmanuel Macron. Eles perguntaram-me o que eu queria fazer, por isso disse-lhes que queria fazer essas perguntas. Então o polícia disse-me: "Isso não era para ser feito". A sua colega acrescentou que se eu tivesse querido interrogar o Presidente da República, então deveria ter passado por canais hierárquicos, escrevendo ao Eliseu», disse a jovem ao diário. Ela descreveu esta discussão, que durou dez minutos, como «intimidatória».

A abstenção ameaça crescer

Os colégios eleitorais da França metropolitana abriram este domingo para a primeira volta das eleições legislativas, nas quais se espera um duelo entre o partido do presidente Emmanuel Macron e a nova coligação de esquerda, de Jean-Luc Mélenchon.

Mais de 48 milhões de franceses são convocados para as eleições de dois turnos nas quais estão em jogo os 577 círculos eleitorais da Assembleia Nacional e nas quais a principal incógnita é se Macron alcançará a maioria absoluta ou será forçado a procurar alianças nos próximos cinco anos para levar a cabo o seu programa eleitoral.

Um dos elementos que se espera assinalar este dia, segundo os institutos demográficos, é a elevada taxa de abstenção, que se prevê superior ao recorde de 51,3% alcançado nas últimas eleições de 2017.

De forma a vencer na primeira volta, o candidato mais votado tem de reunir 50% dos votos que representem pelo menos 25% dos eleitores inscritos. Quando isto não acontece, passam à segunda volta, que se realiza no dia 19 de junho, todos os candidatos que tenham obtido votos equivalentes a mais de 12,5% dos inscritos ou os dois candidatos mais votados.

Em 2017, apenas quatro deputados foram eleitos na primeira volta, já que devido ao sistema de percentagem de votos em relação à população inscrita nas listas, dificilmente haverá muitos eleitos na primeira volta.

As eleições legislativas francesas disputam-se em 12 e 19 de junho, funcionando com base num sistema uninominal de duas voltas.

Empate técnico entre a esquerda e Macron

As últimas sondagens da primeira volta das eleições legislativas de domingo, 12 de Junho, mostram um empate entre os dois pólos principais. Os candidatos de Ensemble! – uma coligação que reúne La République en marche (LRM), Horizons e o MoDem – têm 28% das intenções de voto (margem de erro de mais ou menos 1,3 pontos), logo seguido da Nova União Popular, Ecológica e Social - Nupes, que reúne A França Insubmissa, o Partido Socialista (PS), o Partido Comunista Francês (PCF) e a Europa Ecologia-Os Verdes, com 27% na sondagem (mesma margem de erro). O Rassemblement National (União Nacional de Marine Le Pen está cotado com menor previsão de votos (19%, margem de erro mais ou menos 1,1 pontos). Contudo, se adicionarmos a pontuação esperada de Reconquête (Reconquista), a formação de Eric Zemmour (5,5%, margem de erro de mais ou menos 0,7 pontos), o pólo da extrema-direita atingiria cerca de 24,5%.

Quando a luta de classes é escondida

Num artigo, publicado no diário Le Monde, o economista Thomas Piketty abordou os desafios políticos que estas eleições colocam, com a existência de um bloco liberal de direita, a esquerda e a extrema-direita, da seguinte forma: «É possível saírmos de uma democracia com três partições eleitorais e reconstruir uma divisão esquerda-direita centrada em questões de redistribuição e desigualdade social, em França e, de uma forma mais geral, à escala europeia e internacional? Esta é a questão central das actuais eleições legislativas».

Como explica o economista esta partição do eleitorado em três blocos não acabou com as clivagens políticas fundadas sobre os interesses diferentes e divergentes das várias classes sociais.

«O bloco liberal atinge de longe os seus melhores resultados entre os eleitores mais favorecidos socialmente, qualquer que seja o critério utilizado (rendimento, riqueza, diploma), particularmente entre os mais velhos. Se este "bloco burguês" consegue reunir um terço dos votos, isso deve-se também à evolução da participação, que se tornou muito mais forte entre os mais abastados e os mais velhos do que entre o resto da população durante as últimas décadas, o que não era o caso antes.»

«De facto, este bloco sintetizou as elites económicas e imobiliárias que anteriormente votaram a favor do centro-direita com as elites instruídas que assumiram o centro-esquerda em muitos lugares desde 1990, como mostra a World Political Cleavages and Inequality Database. Com a participação igualitária de todos os grupos sociodemográficos, no entanto, este bloco apenas reuniria cerca de um quarto dos votos e não poderia pretender governar sozinho. Em contraste, as forças de esquerda estariam potencialmente na liderança, uma vez que têm melhor pontuação entre as classes trabalhadoras, e especialmente entre a geração mais jovem. O bloco nacionalista também avançaria, mas mais ligeiramente, porque o perfil do seu voto popular é mais equilibrado entre os grupos etários.»

«De certa forma, poderíamos dizer que esta divisão em três blocos se refere às três grandes famílias ideológicas que estruturaram a vida política durante mais de dois séculos [em França]: o liberalismo, o nacionalismo e o socialismo. Desde a revolução industrial, o liberalismo tem sido baseado no mercado e no desmantelamento social da economia, e tem atraído a maioria dos vencedores do sistema. O nacionalismo responde à crise social resultante, reificando a nação e as solidariedades etno-nacionais, enquanto o socialismo tenta, não sem dificuldade, promover a emancipação universalista através da educação, do conhecimento e do acesso ao poder.», analisa Piketty.

Para o economista, a grande novidade no presente é que a visibilidade da questão social «perdeu intensidade, em parte, porque quando a esquerda esteve no poder perdeu a sua ambição transformadora e aliou-se muitas vezes ao liberalismo triunfante depois da queda do comunismo.»

Aquilo que define esta democracia dividida em três polos, é que as classes populares estão profundamente divididas em torno da questão migratória e pós-colonial, segundo Piketty:

«O eleitorado popular jovem e urbano com uma origem nacional mais mixigenada vota nas forças de esquerda; inversamente, o eleitorado popular menos jovem e mais rural sente-se abandonado e vira-se para o bloco nacionalista. O bloco burguês espera permanecer perpetuamente no poder graças a esta divisão, mas esta é uma aposta arriscada e perigosa, porque a retórica utilizada pelo bloco nacionalista (e muitas vezes encorajada pelo bloco burguês) não conduz a nenhum resultado construtivo e apenas agrava os conflitos num impasse.».

Não é por isso de admirar que perante esta disputa, o primeiro-ministro português, António Costa, tenha estado recentemente em França para apoiar Macron, contra a opinião do Partido Socialista local.

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«Eu já não saio. Já não vou à esteticista ou cabeleireira. E não ponho os meus pés na prais há dois anos", resume uma trabalhadora, divorciada e mãe de três filhos ao diário Le Monde. «Ganho 1 400 euros líquidos, incluindo a antiguidade, mas mil euros vão para despesas fixas. Tenho de apanhar legumes na horta dos meus pais. Porque aqui trabalha-se mais para ganhar menos, e nunca se é aumentado».

Tal como em Pommier, todas as semanas surgem em França mobilizações para aumentos salariais. Apoiados pelos sindicatos, afectam pequenas e médias empresas (PMEs), bem como multinacionais, em todos os sectores de actividade. Exemplos incluem greves na Gerflor, perfumista Marionnaud, empresa de energia RTE, seguradora AG2R La Mondiale e especialista em obras rodoviárias Eurovia.

As greves de três semanas, como em Pommier, são raras. E as mobilizações são desigualmente bem sucedidas. No final de Maio, 550 dos 700 empregados do fabricante de artigos de couro de luxo Arco, que fabrica bolsas Vuitton em Châtellerault (Vienne), pararam de trabalhar durante três dias. Obtiveram, para todos eles, um extra de 100 euros líquidos por mês e um aumento de 25% nos turnos nocturnos.

Um parlamento dos ricos em que o poder prefere a extrema-direita

A situação dos trabalhadores com salários congelados durante anos -  multiplicam-se as crises, em que apesar dos rendimentos do trabalho baixarem, os lucros não deixam de subir - , não são alheias às instituições há muito dominadas pela direita liberal. A esse respeito, o escritor francês Eric Vuillard denuncia um poder cada vez mais ligado aos ricos, que se encosta à sombra do presidente Macron.

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A coligação de esquerda surpreende na primeira volta

Depois de uma campanha sem brilho e num contexto de uma abstenção recorde de 52,51%, os Nupes (25,65%) estão ligeiramente à frente do Ensemble! (25,2%), nas primeiras estimativas.

O candidato de esquerda apela à mobilização na segunda volta para derrotar o partido do presidente. 
CréditosDR / DR

Fechar os olhos, ranger os dentes e ficar calado pode ser uma estratégia política? Não, de acordo com os resultados da primeira volta das eleições legislativas de domingo, 12 de Junho, afirma a análise do diário Le Monde. Desde a sua reeleição como Presidente da República a 24 de Abril, Emmanuel Macron tem utilizado a «estratégia do clorofórmio», segundo os seus opositores, para tentar amortecer o impacto de uma votação que os estrategas da maioria cessante se aproximavam com um sentimento de afundamento.

Com excepção de um texto sobre o poder de compra, prometido para o início do Verão, o chefe de Estado, voluntariamente, imobilizou-se durante as sete semanas que separaram a segunda volta das eleições presidenciais da primeira volta das eleições legislativas. Apenas anunciou a reforma das pensões. Isto não foi suficiente para travar a dinâmica da Nova União Popular Ecológica e Social (Nupes).

A coligação que apoia Macron recusa-se a dar indicação de voto quando a segunda volta se disputa entre a coligação de esquerda e os candidatos da extrema-direita de Marianne Le Pen. Justificam-se, afirmando que são ambas forças extremistas. Longe vai o tempo que Macron apelava ao voto de todos os «republicanos» contra a candidata da extrema-direita nas presidênciais.

Várias figuras apoiantes de Macron, incluindo a porta-voz do governo, Olivia Gregoire, recusaram-se a inidicar uma preferência entre a coligação de esquerda e o partido da extrema-direita para a segunda volta. Darão instruções de voto "caso a caso".

Na noite de 12 de Junho, os macronistas desfilaram nos aparelhos de televisão. Um hábito nas noites de eleições. Encontraram-se numa posição a que não estão habituados: Em vários círculos eleitorais, os candidatos do Ensemble! (Juntos), coligação que apoiava o presidente reeleito foram eliminados na primeira volta. A segunda ronda será jogada sem eles. A esquerda, unida sob a bandeira dos Nupes, enfrentará aqui ou ali a extrema-direita. A partir daí, coloca-se a questão: quem apoiar? A tradição republicana é que o partido eliminado - neste caso o Ensemble! - deve declarar apoio para o partido que enfrenta a extrema-direita de Marine Le Pen, a União Nacional. Mas para as grandes figuras do macronismo, a resposta não é tão óbvia. Especialmente depois do próprio Emmanuel Macron ter declarado no primeiro dia da campanha: «O projecto de Jean-Luc Mélenchon ou Marine Le Pen é a desordem e submissão».

Uma declaração que não admira, dado que só uma força pode, embora dificilmente, ter mais deputados que a coligação que apoia o presidente, e essa força é a coligação de esquerda Nupes.

Por sua vez, o líder da coligação de esquerda Nupes, Jean-Luc Mélenchon, reclamou este dominfo à noite vitória na primeira volta das eleições legislativas, considerando que o partido presidencial foi «desfeito» e apelando à mobilização na segunda volta para construir um «futuro de harmonia».

«Pela primeira vez na Quinta República, um Presidente recentemente eleito não consegue ter uma maioria absoluta na eleição legislativa que lhe sucede», frisou.

«No fim desta primeira volta, a Nupes está à frente: estará presente em mais de 500 círculos eleitorais na segunda volta», declarou Jean-Luc Mélenchon, no espaço «La Fabrique Événementielle», onde decorreu a noite eleitoral da Nupes, no norte de Paris, reagindo às primeiras projeções dos resultados eleitorais.

O líder da coligação que junta várias forças de esquerda – designadamente a França Insubmissa, o Partido Socialista francês, o Partido Comunista francês e a Europa Ecologia Os Verdes – considerou que, nesta primeira volta, o partido presidencial «foi derrotado e desfeito».

Mélenchon apelou assim que o povo se mobilize para a segunda volta das eleições legislativas, afirmando que o resultado da primeira volta cria uma «oportunidade extraordinária» para o «destino comum da pátria».

«Mobilizem-se para escancarar as portas do futuro, um futuro para o qual se mobilizaram tantas gerações antes da nossa. Esse futuro é um futuro de harmonia entre seres humanos, livres das dominações sociais, culturais e de género. É um futuro de harmonia entre os seres humanos e a natureza», sublinhou.

Mélenchon apelou designadamente à mobilização junto dos jovens – «a quem pertence o futuro» –, mas também junto «das classes populares que foram tão duramente atingidas por 30 anos de neoliberalismo».

As primeiras estimativas da primeira volta das eleições legislativas em França dão a coligação de esquerda liderada por Jean-Luc Melénchon com 25,6 % dos votos e o partido de Emmanuel Macron com cerca de 25,2 % dos votos, com muitos duelos na segunda volta.

A União Nacional de Marine Le Pen será a terceira força política podendo chegar a cerca de 19%.

De forma a vencer na primeira volta, o vencedor tem de reunir 50% dos votos que representem pelo menos 25% dos eleitores inscritos. Quando isto não acontece, passam à segunda volta, que se realiza no dia 19 de junho, todos os candidatos que tenham obtido votos equivalentes a mais de 12,5% dos inscritos ou os dois candidatos mais votados.

Assim, os resultados desta noite não vão definir completamente a configuração da Assembleia Nacional nos próximos cinco anos, já que tudo se joga na segunda volta das eleições legislativas, em 19 de junho.

A Nupes é uma coligação eleitoral liderada por Jean-Luc Mélenchon que junta vários partidos de esquerda, partilhando um programa comum e ultrapassando rivalidades históricas entre partidos de esquerda populista, como a França Insubmissa, os verdes, os comunistas e partidos de centro-esquerda pró-europeus, como o Partido Socialista francês.

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«A representação política é um procedimento de delegação de poder. Mesmo que não seja interpretado literalmente, mesmo que um membro do parlamento deva representar algo diferente da sua posição social e assumir uma vocação universal ao entrar no hemiciclo, o simples facto de haver apenas uma operária qualificada entre os membros da última legislatura para 27 chefes de empresas com mais de dez empregados, o facto de os chefes de empresas, executivos e profissões intelectuais superiores representarem mais de três quartos da Assembleia, é suficiente para lançar sérias dúvidas sobre todo o procedimento.»

Quando o verniz se dissolve, os ricos tomam a posição contra quem os ameaça mais. E parece claro que o actual presidente Macron prefere que sejam eleitos mais candidatos de extrema-direita que a esquerda possa ter condições para impedir as suas reformas neoliberais.

Eleições legislativas: apenas seis dos 61 candidatos da coligação que apoia Macron apelam para votar a favor dos candidatos da coligação de esquerda contra a extrema-direita, em círculos eleitorais que a segunda volta será decidida entre estas duas forças. Seguem a consigna do presidente, que a esquerda e extrema-direita são extremos iguais. Uns meses depois do mesmo ter apelado aos eleitores de esquerda a votarem nele, contra o ascenso da extrema-direita. É a luta de classes.

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No seu livro A Tirania do Mérito, o filósofo estado-unidense Michael Sandel, fala desse fenómeno que não acontece só na França, a tomada da representação por parte de elites económicas e com formação superior. «No Reino Unido, em 1979, 37% dos parlamentares trabalhistas eram originários da classe operária; em 2015, já só sete por cento tinham essas raízes», actualmente são menos de 4%. «Em França, mais de 70% da população não tem diploma universitário, mas muitos poucos desses cidadãos conseguem aceder a um lugar parlamentar», nota o filósofo.

«Converter o Congresso e os parlamentos num quase exclusivo das classes «credenciadas» não serviu para que os governos desses países fossem mais eficazes, só tornou os parlamentos menos representativos. Também afastou a população trabalhadora dos partidos tradicionais de esquerda», observa Sandel.

Para o filósofo, o acesso à educação não é independente da classe social, e mesmo se fosse, ela por si não resolveria o problema da desigualdade, mais do que a educação, o que está em causa é o acesso ao poder.

Nesse sentido, o historiador norte-americano Thomas Frank defendeu que os democratas ficaram distraídos de tanto falar em educação e mérito, que renunciaram a fazer uma reflexão clara sobre as políticas que agravaram as desigualdades. Como o facto de a produtividade dos trabalho ter crescido a partir dos anos 80 e os salários terem ficado estagnados. Para o historiador, a desigualdade não se explicava sobretudo pela falta de educação, mas pela perda de poder negocial na sociedade: «O verdadeiro problema não está na inadequada inteligência dos trabalhadores, mas na inadequação do seu poder.», conclui.

Num artigo, publicado no diário Le Monde, o economista Thomas Piketty abordou os desafios políticos que estas eleições colocam, com a existência de um bloco liberal de direita, a esquerda e a extrema-direita, da seguinte forma: «É possível saírmos de uma democracia com três partições eleitorais e reconstruir uma divisão esquerda-direita centrada em questões de redistribuição e desigualdade social, em França e, de uma forma mais geral, à escala europeia e internacional? Esta é a questão central das actuais eleições legislativas».

Como explica o economista esta partição do eleitorado em três blocos não acabou com as clivagens políticas fundadas sobre os interesses diferentes e divergentes das várias classes sociais.

«O bloco liberal atinge de longe os seus melhores resultados entre os eleitores mais favorecidos socialmente, qualquer que seja o critério utilizado (rendimento, riqueza, diploma), particularmente entre os mais velhos. Se este "bloco burguês" consegue reunir um terço dos votos, isso deve-se também à evolução da participação, que se tornou muito mais forte entre os mais abastados e os mais velhos do que entre o resto da população durante as últimas décadas, o que não era o caso antes.»

«De facto, este bloco sintetizou as elites económicas e imobiliárias que anteriormente votaram a favor do centro-direita com as elites instruídas que assumiram o centro-esquerda em muitos lugares desde 1990, como mostra a World Political Cleavages and Inequality Database. Com a participação igualitária de todos os grupos sociodemográficos, no entanto, este bloco apenas reuniria cerca de um quarto dos votos e não poderia pretender governar sozinho. Em contraste, as forças de esquerda estariam potencialmente na liderança, uma vez que têm melhor pontuação entre as classes trabalhadoras, e especialmente entre a geração mais jovem. O bloco nacionalista também avançaria, mas mais ligeiramente, porque o perfil do seu voto popular é mais equilibrado entre os grupos etários.»

«De certa forma, poderíamos dizer que esta divisão em três blocos se refere às três grandes famílias ideológicas que estruturaram a vida política durante mais de dois séculos [em França]: o liberalismo, o nacionalismo e o socialismo. Desde a revolução industrial, o liberalismo tem sido baseado no mercado e no desmantelamento social da economia, e tem atraído a maioria dos vencedores do sistema. O nacionalismo responde à crise social resultante, reificando a nação e as solidariedades etno-nacionais, enquanto o socialismo tenta, não sem dificuldade, promover a emancipação universalista através da educação, do conhecimento e do acesso ao poder.», analisa Piketty.

Para o economista, a grande novidade no presente é que a visibilidade da questão social «perdeu intensidade, em parte, porque quando a esquerda esteve no poder perdeu a sua ambição transformadora e aliou-se muitas vezes ao liberalismo triunfante depois da queda do comunismo.»

Aquilo que define esta democracia dividida em três polos, é que as classes populares estão profundamente divididas em torno da questão migratória e pós-colonial, segundo Piketty:

«O eleitorado popular jovem e urbano com uma origem nacional mais mixigenada vota nas forças de esquerda; inversamente, o eleitorado popular menos jovem e mais rural sente-se abandonado e vira-se para o bloco nacionalista. O bloco burguês espera permanecer perpetuamente no poder graças a esta divisão, mas esta é uma aposta arriscada e perigosa, porque a retórica utilizada pelo bloco nacionalista (e muitas vezes encorajada pelo bloco burguês) não conduz a nenhum resultado construtivo e apenas agrava os conflitos num impasse.».

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