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|Eleições presidenciais francesas

Zemmour. Não toques na mulher branca ou inventor do medo

Quando as coisas estão mal, podem sempre ficar pior. A França tem mais um candidato de extrema-direita que pode passar à segunda volta das eleições. Chama-se: Éric Zemmour.

O comentador e provável candidato presidencial discursa na convenção das direitas em Setembro. 
O comentador e provável candidato presidencial discursa na convenção das direitas em Setembro. Créditos / Lusa

Tornou-se célebre nos programas de comentário nas televisões que discutem política como quem fala de jogos de futebol. A sua presença aumentava as audiências a golpes de declarações mais estapafúrdias: os espectadores ocorriam como mirones para ver um acidente. De tanto aparecer, ajudou a normalizar racismo, xenofobia, machismo e homofobia. As suas teses, como as de que o corpo das mulheres é a recompensa dos homens, que a França está a ser invadida por muçulmanos e está à beira da guerra civil, são hoje compartilhadas por cada vez mais franceses. Quer ser candidato à presidência da República e as sondagens já lhe dão o segundo lugar.    

Éric Zemmour tem 64 anos, filho de judeus argelinos que vieram para França nos anos 50, cresceu nos subúrbios da classe trabalhadora de Paris e não é um candidato comum:  já foi condenado a 3 mil euros de multa por incentivo ao ódio religioso, devido a declarações feitas em 2016, em que, entre outras coisas, dizia que os muçulmanos «tinham de escolher entre o Islão e a França» e que «em inumeráveis subúrbios franceses se vive uma luta para islamizar o território, uma jihad».

No seu último livro autopublicado, La France n'a pas dit son dernier mot (A França não disse a sua última palavra), que já vendeu mais de 140 mil exemplares, Zemmour propõe a proibição do baptizado de pessoas nascidas em França com nomes muçulmanos ou não franceses. Descreve uma França de escolas «sitiadas por alunos, sobretudo norte-africanos e africanos, cada vez mais numerosos, cada vez mais rebeldes contra a aprendizagem e cada vez mais violentos», e povos sujeitos a estrangeiros que «roubam, violam, pilham, torturam, matam».

Há uns meses, antes do início da digressão para lançamento do último livro, Zemmour não apareceu nas sondagens, ou estava com cerca de 5 por cento dos votos. Agora é provável que ele seja o segundo candidato mais votado na primeira volta de 10 de Abril de 2022 e, por conseguinte, qualificar-se para a segunda volta a realizar-se a 24 de Abril do próximo ano.

Uma sondagem Harris, já em Novembro, colocou-o em segundo lugar pela primeira vez, com 17% a 18% dos votos, à frente de Marine Le Pen, candidata do partido de extrema-direita União Nacional. O actual presidente, o centrista Emmanuel Macron, obteria entre 24% a 27% dos votos, fazendo desaparecer os candidatos da esquerda e da direita moderada.

Segundo a revista semanal francesa L'Obs, Zemmour anunciará a candidatura a 5 de Dezembro, data do seu primeiro comício.

À sua volta junta-se uma miríade de pequenos grupos de integristas católicos, identitários de extrema-direita atraídos por um discurso que fala de Napoleão, da grandeza da França e que pretende juntar o general Charles de Gaulle, que se bateu contra a ocupação nazi, com o Marechal Philippe Pétain, que dirigiu os colaboracionistas que deram a mão a Hitler.

A extensão do domínio da luta

O escritor Michel Houellebecq escreve sobre a inevitabilidade da depressão numa sociedade em que tudo nos é prometido, em termos de publicidade, mas em que as nossas expectativas são totalmente irrealizáveis. Diz, a partir do seu ponto de horizonte social e de género, que a publicidade de mercado promete que todos os homens podem ter à sua disposição uma data de jovens e esbeltas modelos, quando na realidade o fim dos laços familiares, e a erupção dos valores de mercado na esfera afectiva e da sexualidade, deixa a maioria dos homens (quase nunca fala das mulheres) sem nada ou com muito pouco.

«O escritor de sucesso beneficia de certos produtos de luxo, que a sociedade reserva aos seus membros eminentes ou ricos; mas, para um homem, a benesse mais deliciosa da glória é constituída por aquelas a que se chama, retomando o termo anglo-saxónico, as groupies. Tratam-se de raparigas, sensuais e bonitas, que desejam oferecer-nos o seu corpo num espírito de amor, unicamente porque escrevemos algumas páginas que lhes tocaram a alma», revela quase esperançoso no seu livro Lanzarote et autres textes.

A concepção de Zemmour é muito semelhante. A mulher aparece como uma espécie de despojo e botim de guerra do homem, e o facto de as terem deixado ter independência e direitos está na origem de todo o mal, até podem não nos aceitar e ir parar às mãos dos estrangeiros, imigrantes e muçulmanos.

  Para o novo arauto da extrema-direita, o agudizar dos males da França data da morte, em 1970, do patriarca da nação do pós-guerra, general Charles de Gaulle, que coincidiu com o que o comentador vê como a morte trágica do «patriarcado», arrastado pelos protestos de Maio de 1968. «A nossa paixão imoderada pela Revolução cegou-nos e perverteu-nos», escreve. «A França que saiu de Maio de 68 é a vingança da feminilidade sobre a virilidade», defende o autor de Suicídio da França, livro que vendeu mais de meio milhão de exemplares no país.

O provável candidato associa o momento simbólico da morte do pai da pátria com o fim da moral associada a um patriarcado que afirma os valores sobre o prazer. O pai, na sua concepção, representaria, para Zemmour, todos os princípios que uma nação precisa para prosperar - estoicismo, sacrifício, gratificação tardia. «O pai encarna a lei e o princípio da realidade em oposição ao princípio do prazer», defende. A feminilidade, em conjunção com o feminismo, destruiria estas supostas estruturas de rectidão, desfazendo a família. A «procura da felicidade tornou-se o grande negócio de todos», queixa-se Zemmour. O resultado da revolta contra cultural foi «o tríptico de 68: A Derisão, Desconstrução, Destruição», que «minou as fundações de todas as estruturas tradicionais: família, nação, trabalho, Estado, escola».

O cronista e comentador chega a culpabilizar o sucessor de De Gaulle, Georges Pompidou, pelo facto de ter autorizado as mulheres a abrir conta no banco sem autorização dos maridos. Uma vez identificado o pecado original que levaria ao suicídio do hexágono francês, é possível descrever e analisar os passos sucessivos legais e sociais que apagaram a glória da França.

A legalização do aborto é, para o autor, um «suicídio colectivo», porque o peso demográfico das crianças francesas que nunca nasceriam seria cada vez maior,  «poder perdido, perdido para sempre», permitindo a chegada de mais imigrantes para alimentar a economia; a emergência da «homossexualidade triunfante» está ligada à «evolução decisiva do capitalismo», porque o capitalismo ocidental tem uma necessidade insaciável de consumismo, e «o universo homossexual, especialmente o masculino, encarna o templo do prazer desenfreado, da sexualidade sem restrições, do hedonismo sem limites»; a revolução sexual terá conduzido para «santificar a traição feminina como valor supremo nas relações entre os sexos».

Numa passagem, de um seu livro, Zemmour lembra uma cena de um filme popular, «Elle Court, Elle Court la Banlieue», de 1973: «Quando o jovem condutor de autocarro desliza uma mão concupiscente sobre o encanto feminino, a jovem mulher não processa por assédio sexual», escreve ele. «Reina a confiança». Para concluir, melancólico, afirma que «eram tão simples os tempos em que os homens viris preferiam possuir as mulheres sem as compreender, mais do que as compreender sem as possuir».

No seu último livro, prega o regresso aos valores de sempre. Mas eis como fala das mulheres nas campanhas eleitorais, em que garante que a França não disse uma última palavra: «Numa sociedade tradicional, o apetite sexual dos homens vai a par do poder; as mulheres são o objectivo e a recompensa de todo o homem dotado que aspire a elevar-se na sociedade. As mulheres reconhecem-no, escolhem-no, apreciam-no. Bonaparte [ainda] desconhecido teve de ir a uma prostituta para perder a virgindade; Napoleão imperador do Ocidente acumulava amantes».

O drama da modernidade é que os imigrantes podem dominar e querer tomar para si as mulheres brancas. «Está inscrito na natureza da mulher que ela é atraída pelo dominador. Hoje quem domina são os imigrantes», afirma Éric Zemmour.

A decadência da França e a «grande substituição»

«Os franceses devem lutar para defender a França tal como a conhecemos: o que está em jogo é a civilização, a substituição de um povo», declara ao El País, o comentador de extrema-direita que, com a sua possível candidatura ao Palácio do Eliseu, virou a política do seu país de pernas para o ar. Acrescenta: «Uma guerra de civilizações está a ser travada no nosso solo. Se continuarmos, estamos a caminho da guerra civil».

Para o acolhimento favorável das teses estapafúrdias do comentador de extrema-direita concorrem vários factores. A França há muito que não é império, a sua influência no mundo diminuiu, mas sobretudo o desenvolvimento da globalização e das políticas económicas neoliberais cortaram laços sociais e aumentaram em muito a precariedade laboral e tornaram visível para muita gente que as novas gerações vão viver pior que as actuais.

Antes da Segunda Guerra Mundial, a França, com as suas colónias africanas e asiáticas, governava quase 10 por cento da área terrestre do planeta. Em 1950, a Europa representava 20 por cento da população mundial, e hoje representa menos de 10 por cento. O PNB (Produto Nacional Bruto) da França, embora ainda o sétimo maior do mundo, representa apenas cerca de 3,5 por cento da economia mundial.  Zemmour parece pensar que as enormes mudanças globais – a triplicação da população mundial, a descolonização, a ascensão da China e da Índia – são coisas a que os políticos franceses poderiam e deveriam ter resistido.

A situação social não ajuda, nas vésperas da pandemia, a pobreza e a desigualdade continuavam a crescer em França. Um relatório do Instituto Nacional de Estatística da França (INSEE), em 2018, mostrava que a pobreza subia e que 14,3% da população, o equivalente a 9,1 milhões de franceses, eram pobres. O índice Gini, que mede as desigualdades, registava a sua maior progressão desde 2010. Dados que foram seriamente agravados com a pandemia.

Perante este quadro de frustração e dificuldades, a extrema-direita tem conseguido ganhar o debate das ideias em França. O politólogo Vincent Martigny reconheceu, ao jornal Público, que existe, desde os anos 1980, «uma corrente de opinião que é de extrema-direita, que chegou a 15% nos anos 2000 e aumentou, até cerca de 25%, talvez mesmo até 30%, hoje». Estes votos, diz, foram arrebatados, em grande parte, à direita francesa, de forma que as fronteiras entre a direita e a extrema-direita se tornaram menos estanques. «Temos eleitores de direita que estão cada vez mais extremistas desde os anos 2000 e por isso têm uma tendência maior para votar na extrema-direita do que antes», explica o politólogo.

Na globalização, muitas vezes, os centros do capitalismo financeiro e os seus decisores estão longe e parecem invisíveis, enquanto as centenas de milhares de imigrantes que procuram uma vida melhor são os bodes expiatórios da mudança da época.

O medo é uma arma usada pela extrema-direita que prega um suposto perigo da população francesa ser substituída por imigrantes maioritariamente negros e muçulmanos. Segundo o sociólogo François Héran, professor no Collège de France, é um «medo que escapa a toda a argumentação racional», dado a proporção de imigrantes em França (10,2%) ser inferior à média da OCDE (13,6%).

Mas os números não têm que ser sérios, o medo escolhe os seus partidários impermeáveis aos factos mesmo quando exibidos nos espaços em que o novo predicador construiu a sua fama.

No livro O Suicídio da França, Zemmour alinha números que garantem que em poucas décadas os estrangeiros vão mandar no país. Quando no programa de televisão que o fez célebre, «On n'est pas couché», lhe dizem que é falsa a afirmação, que faz, de que havia sete milhões de filhos de estrangeiros com menos de 4 anos em França, em 2014, porque as estatísticas assinalam menos de 4 milhões de pessoas em França com esta idade, entre franceses e estrangeiros, Zemmour garante que as verdadeiras estatísticas estão escondidas e que ele leu o relatório verdadeiro de uma fonte que não cita nem apresenta.

No discurso que proferiu na Convenção de Direita, em Setembro de 2019, Éric Zemmour não se cansou de agitar o fantasma: «O dinamismo demográfico do nosso continente permitiu aos brancos colonizar o mundo. Exterminaram os índios e os aborígenes; escravizaram os africanos. Hoje, vivemos tempos de inversão demográfica, que envolve uma inversão das correntes migratórias e em termos de colonização. Deixo-vos adivinhar quem serão os índios destes novos invasores e quem serão os seus escravos: serão vocês!».

Para resolver essa questão, Zemmour propõe proibir o reagrupamento familiar dos imigrantes e deportar todos aqueles que considera não serem «assimiláveis». Em 2014, foi mais longe numa declaração ao jornal Corriere della Sera, defendeu a possibilidade de deportar cinco milhões de muçulmanos, a maioria dos quais de nacionalidade francesa. Lamentou o facto de os franceses viverem «em minoria no seu território» e afirmou que «terão de lutar pela sua libertação».

Produto das redes sociais e dos programas de debate

«Zemmour é um puro produto da competição desenfreada entre canais de televisão de informação contínua franceses, que privilegiam o comentário permanente em vez da reportagem e da análise. É um produto da cultura do ‘clash’ [confronto] que caracteriza o debate francês», diz ao caderno 'P2' do jornal Público Jean-Yves Camus, investigador associado do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS), em Paris, e especialista em extrema-direita.

Para o politólogo Vincent Martigny, professor de Ciências Políticas na Universidade de Nice e na Escola Politécnica [engenharia], «houve dois vectores que contribuíram para tornar o debate histérico em França: as redes sociais, a começar pelo Twitter, e as televisões de informação contínua». Em afirmações também ao jornal Público, Martigny explica que os canais de televisão de informação permanente «são globalmente dirigidos para opiniões conservadoras, quer seja o canal BFMTV ou a CNews, embora nesta última seja ainda mais evidente. Repetem durante todo o dia os mesmos temas, que muitas vezes são assuntos caros à extrema-direita, de tal forma que conseguem inculcá-los no espírito dos franceses».

«Por isso, embora não costume atribuir culpas aos media, julgo que as televisões são responsáveis [pelo fenómeno político Zemmour]. Alguns media e algumas redes sociais contribuíram para libertar as palavras racistas, as palavras xenófobas e, por vezes, até as palavras anti-semitas», conclui o politólogo.

Tal como as redes sociais, a comunicação social privilegia debates de informação espectáculo, em que comentadores de direita de vários matizes atiram os argumentos mais escandalosos e agressivos para capturarem audiências inertes nos seus sofás.

O segredo é fazer mais escândalo que todos os outros, mesmo em pré-campanha. Em 20 de Outubro, em Seine-Saint-Denis, numa feira sobre segurança interna, Zemmour apresentou a sua encenação apontando uma arma aos jornalistas. A imagem provocará uma reacção indignada do establishment, reafirmando o carácter rebelde e «anti-sistema» da sua figura. Zemmour é puro espectáculo político. Segundo The Atlantic, em Setembro deste ano, mesmo com o programa de televisão suspenso, a sua presença na comunicação social é esmagadora: foi mencionado 4167 vezes na imprensa, 139 vezes por dia, e acumulou nesse mês, mais de 11 horas de tempo de televisão em comparação com duas horas para Anne Hidalgo, presidente da Câmara de Paris, ou Le Pen, da Frente Nacional, com pouco mais de uma hora.

As posições de Éric Zemmour sobre as mulheres, sobre Pétain ou sobre o Islão estavam presentes desde os primeiros anos, como demonstra Étienne Girard no seu livro sobre o processo de radicalização de Zemmour. Mas os estúdios de televisão ensinaram-lhe as regras do jogo e deram-lhe um palco para ganhar força política, procurar sempre as polémicas e nunca recuar.

Como o filósofo Alain Badiou escreveu a propósito de Nicolas Sarkozy: «A crise moral é sempre um enunciado que visa dar plenos poderes ao Estado, argumentando com a irresponsabilidade dos governados, nomeadamente dos mais pobres e dos mais fracos. Como reparar uma crise moral com meios estatais não é nunca muito claro. Aquilo que está subentendido é que é necessário tomar medidas enérgicas. É o que sobrará deste mantra moralizante - polícia, justiça, controlo e expulsões, leis celeradas e sistema penitenciário. Naturalmente, com o enriquecimento dos ricos como bem absoluto».

No panorama eleitoral e social em França, a esquerda parece ter desaparecido. O descontentamento das consequências do capitalismo neoliberal expressa-se em candidatos que somam mais autoritarismo ao capitalismo.

Para reconquistar os eleitores perdidos e a capacidade de acção e movimentação, a esquerda devia inspirar-se naquilo que fizeram os pequenos candidatos da direita reaccionária depois de mais de 30 anos: recriar um imaginário colectivo e um desejo de futuro. É com essa grande vontade da emancipação humana que se pode deitar fora esta estranha tralha obscurantista, e de certa forma Zemmour é o espelho ideológico dessa impotência em o fazer.

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