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50 anos da maior catástrofe em Portugal desde o terramoto de 1755

Cheias de 1967: A miséria que a natureza esmagou e a ditadura encobriu

Na madrugada do dia 26 de Novembro de 1967, uma torrente lamacenta provocou milhares de vítimas, entre operários e camponeses, na Grande Lisboa. Apesar da tragédia, a ditadura de Salazar continuou indiferente ao sofrimento do povo e censurou-o.

Créditos / Jornal «O Século Ilustrado»

Foi a maior inundação que a região da Grande Lisboa alguma vez conheceu mas, fruto da censura que suportava o governo fascista de Salazar, a dimensão da calamidade nunca foi oficialmente conhecida ou revelada.

Estima-se que a forte chuva, que assolou os concelhos de Lisboa, Loures, Odivelas, Vila Franca de Xira e Alenquer tenha provocado mais de 700 mortos, milhares de desalojados e um sem-número de habitações destruídas.

Fernanda Silva, então a morar na Castanheira do Ribatejo, assume que os números nunca estiveram correctos. «Na aldeia de Quintas, o número não está correcto de certeza porque eu sei de uma família de Coimbra, um casal e dois filhos pequenos, que tinha vindo passar o fim-de-semana com familiares que tinham ali e também morreram», revela.

A aldeia de Quintas (Castanheira do Ribatejo) foi a que mais vítimas deu à tragédia. Fernanda assume que «lá morreu praticamente toda a gente». Lá morreu Elvira, uma colega da fábrica de confecções onde trabalhava, às portas da Castanheira do Ribatejo.

«Recordo-me perfeitamente, eu era encarregada nessa fábrica e ela chamou-me e disse-me: "Sabe, hoje estou muito feliz porque consegui arrendar casa e já posso marcar a data do casamento". Isto foi no sábado de manhã, à noite aconteceu aquela tragédia e ela morreu em casa com os pais e um irmão».

Aquilo a que milhares de operários chamavam casa eram na verdade barracas em zonas baixas e permeáveis a inundações, construídas pelos próprios com madeira e lata, e chão de terra. No lugar de Quintas, João Manquinho, morador de Vila Franca de Xira, conta que algumas já eram casas de tijolo mas, além de estarem situadas no vale, tinham sido construídas sobre as linhas de água, por descuido ou desconhecimento.

Ali moravam acima de mil pessoas, na sua maioria camponeses mas também operários de fábricas localizadas na região. Morreram quase quinhentas. Nalguns casos, famílias inteiras. «No fundo, quem foi afectado por aquela desgraça foram as camadas mais pobres, mais humildes, aquelas que tinham menos possibilidade de se defender. Os edifícios com melhor construção e com capacidade de resistência, esses não foram afectados», reconhece Manquinho.  

Mas não eram só as casas térreas dos camponeses e operários das Quintas que padeciam de más infra-estruturas. O bairro da Urmeira (Odivelas), de habitação pública, conta-se entre os que foram destruídos pelas cheias.

Mandado construir pelo ex-governador civil de Lisboa, Mário Madeira, integra o lote de conjuntos habitacionais com deficientes condições de habitabilidade, destinados a milhares de trabalhadores que não conseguiam pagar as rendas dos bairros residenciais de Lisboa (que se mantiveram intactos).

«Um balde de água gigante»

A chuva caía há já alguns dias, quase ininterruptamente. Na madrugada de 26 de Novembro, pelas 3h da manhã, uma tromba de água muito forte «foi o culminar de toda a situação», admite Manquinho.

Na aurora desse dia, diz que «Vila Franca parecia uma terra fantasma que tinha sido varrida por um ciclone». «Havia pessoas desaparecidas, muito lixo pelas ruas, muita lama, a linha do comboio estava cheia de escombros e de animais mortos», adianta.

A forte chuva rebentou com as ribeiras, o lixo das ribeiras impediu que a água seguisse para o Tejo e geraram-se enormes inundações, não apenas no concelho de Vila Franca de Xira, mas também noutros lugares como Arruda dos Vinhos, Alenquer, Alhandra, Alverca, Sacavém, Loures e Odivelas.

No trágico lugar de Quintas, em pleno vale, a inundação das casas abarracadas começou quando a maior parte das pessoas estava a dormir. Apenas os que conseguiram fugir para o telhado sobreviveram.

Mais tarde, Fernanda diz ter ouvido na televisão «um senhor do Instituto de Meteorologia dizer que o fenómeno tinha sido – para as pessoas perceberem –, um balde de água gigante que lançaram sobre esta zona».

Créditos

 

A incúria do Estado

As cheias no Ribatejo eram um fenómeno vulgar, do qual decorriam fortes prejuízos para os camponeses. Sistematicamente eram exigidas medidas, tais como desassoreamento dos rios e a construção de diques, mas a incúria do governo fascista de Salazar prevaleceu, apesar das reivindicações e alertas.

O mesmo senhor que Fernanda ouviu falar na televisão, «revelou que se sabia que aquilo iria acontecer. Só não sabiam onde e estavam com esperança que fosse no mar, assim não provocava tantos problemas». A informação ficou, no entanto, reservada e ninguém – comunicação social e forças de segurança (que eram ágeis, mas na repressão) – avisou a população do perigo que se avizinhava.

Embora as comunidades ribeirinhas, indefesas, alertassem para os perigos que corriam, tal como as suas colheitas, o jornal Avante!, que à época o PCP fazia circular clandestinamente, denunciava o facto de o governo se manter concentrado noutras prioridades.

Em 1967, um ano antes de Marcello Caetano suceder a Salazar, o Estado gastou 257 mil contos com despesas da NATO e cerca de 7 milhões de contos com a guerra colonial e a repressão. O Avante! sublinhava ainda que, também nesse ano, seiscentos mil contos foram para a Base Aérea de Beja, construída em 1964, «para serviço dos alemães».

No final das contas, não sobrou uma fatia para regularizar as águas do Tejo ou acudir à população afectada.

Para se ter uma ideia do desfasamento entre os valores gastos nas prioridades do governo fascista e o investimento na habitação pública, basta ter em conta que, de 1946 a 1967, a  média anual de despesas do Estado com a habitação foi de 2126 contos. Em 1965, o valor caiu para 992 contos (menos de 5 mil euros).

Apesar de os prejuízos terem sido calculados em 3 milhões de dólares, a preços da época (cerca de 20 milhões a preços actuais), numa nota oficial, divulgada pela imprensa a 30 de Novembro, o governo não assumiu qualquer verba extraordinária para socorrer as vítimas, referindo que seria com o orçamento normal de cada ministério que se iria fazer face às despesas geradas pela catástrofe.

Foi também anunciado que a Caixa Geral de Depósitos estava autorizada a conceder empréstimos aos municípios das regiões atingidas pelas cheias, «nas condições mais favoráveis de juro e amortização». O Avante! alertava, no entanto, que, «esse empréstimo atinge a ridícula soma de 70 000 contos que reentrarão nos cofres das Câmaras Municipais, pagos pelo povo, sob a forma de novas taxas, de novas alcavalas, de novos impostos».

O espírito benemérito do governo de Salazar ficava-se por aqui, empurrando para a caridade o dever de assistir as milhares de vítimas.

Número de mortos censurado

 

Numa altura em que a informação não fluía ao ritmo que conhecemos actualmente, as notícias corriam sobretudo de boca em boca e pela comunicação social, mas sob a prévia supervisão dos serviços censórios.

Fac-símile da capa da edição n.º 386, de Dezembro de 1967, do jornal «Avante!» Créditos

«Muita coisa foi abafada», recorda João Manquinho, mas «os jornais O Século e o DN, que eram os jornais com maior incidência na altura, tinham que publicar fotografias senão era um escândalo».

 

E publicaram, mas a Direcção da Censura começou a controlar as publicações assim que os contornos da tragédia se começaram a definir. A 27 de Novembro, informava-se num telegrama que: «Gravuras da tragédia: é conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos».  

 

Na quarta-feira a seguir à tragédia, nova indicação chegou às redacções: «Inundações: os títulos não podem exceder a largura de meia página e vão à censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres.»

 

Apesar dos 50 anos volvidos, o cheiro e a imagem dos cadáveres permanece gravada na memória de João Manquinho, então com 24 anos de idade. «Lembro-me de ir ao Largo da Misericórdia, onde está uma igreja antiga, e de ver as camionetas a chegarem das Quintas com a aurora a romper, cheias de corpos inchados, disformes e cheios de lama, com expressões de aflição e em posições dramáticas». Depois de lavados, os corpos eram reconhecidos por familiares e alguns levados para as suas terras.

 

Na Castanheira do Ribatejo, Fernanda assistiu a 17 funerais. Recorda, no entanto, que «a gente não podia entrar no cemitério». «Tínhamos que ficar longe porque o chão estava tão instável que eles não queriam ninguém a passar onde fizeram os buracos porque aquilo podia ruir», explica.

 

O despertar de consciências

Apesar da censura, a informação sobre a tragédia levou milhares de estudantes a organizarem-se para prestar o auxílio negado pelo Estado. Havia falta de água, de alimentos, de abrigos para os milhares de desalojados e de cuidados médicos. Em contrapartida, sobravam escombros e muita lama, que muitos homens e mulheres retiravam às pazadas.

Antevendo, porém, as consequências que o confronto com a realidade podia surtir em muitos dos jovens estudantes, citadinos e de diferentes classes sociais, a ditadura de Salazar reprimiu esses movimentos, assim como o eco que poderiam ter através dos meios de comunicação social. Na informação enviada às redacções, no dia 29 de Novembro, a Direcção da Censura acrescentava: «Actividades beneméritas de estudantes – Cortar».

Salazar não temia apenas que os jovens se apercebessem da indiferença com que lidava com os mais desprotegidos, temia, isso sim, a criação de consciência política, o que veio a acontecer.

Numa análise aos dados do Serviço Meteorológico Nacional, o boletim Solidariedade Estudantil, criado pelos estudantes que se organizaram para auxiliar as vítimas da tragédia, revelava que, apesar das mortes terem ocorrido nas zonas desfavorecidas de Lisboa e do Ribatejo, foi na zona abastada do Estoril que se registou a maior precipitação.

Sem rodeios, o Comércio do Funchal declarava que, mais importante do que a chuva que caiu na madrugada do dia 26 de Novembro, «foi a miséria, miséria que a nossa sociedade não neutralizou, quem provocou a maioria das mortes. Até na morte é triste ser-se miserável. Sobretudo quando se morre por o ser».

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