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Covid-19. Governos recusam tornar vacinas bens públicos

A Organização Mundial do Comércio recusou levantar as patentes das vacinas para combater a pandemia. O AbrilAbril falou com o sociólogo Boaventura Sousa Santos e com o eurodeputado João Ferreira.

Há uma distribuição desigual de vacinas no mundo.CréditosSergey Dolzhenko/EPA / Lusa

A 18 de Janeiro de 2021, o director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, fazia uma constatação dramática do processo de vacinação: «Mais de 39 milhões de doses de vacinas foram inoculadas nos 49 países com o rendimento mais elevado. Somente 25 doses foram administradas nos países mais pobres. Não foram 25 milhões, nem 25 mil, apenas 25».

No dia 10 de Março, a Organização Mundial do Comércio (OMC) voltou a rejeitar o levantamento de patentes das vacinas da Covid-19, para que pudessem ser produzidas na maior parte dos países. A medida proposta pela Índia e a África do Sul tinha o apoio de 110 países, mas voltou a ser recusada pelos Estados Unidos da América, países da União Europeia, incluindo Portugal, e o Brasil. Tendo este último sido o único país em vias de desenvolvimento que se colocou ao lado dos interesses das grandes companhias multinacionais, isto apesar de quase 300 000 pessoas já terem morrido da pandemia no Brasil.

Indianos e sul-africanos voltaram a insistir que a escassez de vacinas no mundo seria em parte resolvida se as empresas abrissem mão das suas patentes e permitissem a produção dos produtos em versões genéricas, por laboratórios em todo o mundo. A proposta é alvo de ataques por parte dos governos europeus, americanos e de outros países desenvolvidos, que insistem na tese que quebrar patentes não resolveria a crise. Estes governos também alertam para que a iniciativa mandaria uma mensagem equivocada para o sector que fez investimentos para garantir as descobertas médicas.

Um argumento que é contestado pela cientista social e activista de defesa do acesso universal aos cuidados de saúde Gaëlle Krikorian ao jornal Le Monde: «É verdade que alguns laboratórios apostaram na produção de um novo tipo de vacina de RNA mensageiro. Mas será que podemos realmente falar de correr riscos quando tiveram o benefício de 30 anos de investigação sobre esta tecnologia, largamente financiada pelo sector público? Além disso, o facto de várias empresas lançarem praticamente o mesmo produto ao mesmo tempo atesta que todas elas beneficiaram do mesmo nível de conhecimento científico».

«A investigação médica é fortemente subsidiada. É financiada por fundos públicos através de muitos canais: programas de investigação em instituições públicas, financiamento de projectos, parcerias público-privadas, subvenções, créditos fiscais, mas também com o reembolso dos sistemas de segurança social e de seguros mútuos. Além disso, no caso da vacina Covid-19, existem mecanismos para apoiar a produção através de pré-compras ou financiamento do local. Estes mercados beneficiam tanto de um monopólio, na venda, como da garantia de serem pagos».

O eurodeputado comunista João Ferreira sublinha, ao AbrilAbril, que não é a primeira vez que, por interesses de saúde pública, as patentes são «quebradas», adicionando que «os próprios os EUA já o fizeram no caso do Tamiflu em 2017». No entanto, os governos da União Europeia e dos EUA usam a opacidade para insistir na manutenção das patentes das grandes multinacionais.

«A argumentação é absolutizar os direitos de propriedade intelectual, dizendo que seria uma desgraça porque as multinacionais não investiriam na investigação. Quando se contra-argumenta, que pode ser assim, mas que há circunstâncias que, por motivos de força maior e saúde pública, as patentes devem ser abertas, com maioria de razão quando houve um enorme investimento público que pagou grande parte da investigação e seguros de risco inteiramente financiados com recursos públicos» diz o eurodeputado.

Para acrescentar que «os governos juntam uma outra argumentação que, mesmo que a patente seja aberta, não se produziria muito mais, porque a vacina é muito complexa, tem cadeias de produtos e substâncias necessárias que já estariam a ser "exprimidas". Ignorando e escamoteando duas coisas, mesmo se aumentasse apenas 10% ou 20%, já era ganho. Mas sobretudo, que como estas patentes não são abertas esse argumento não é sequer escrutinável».

«Estamos numa discussão que é propositadamente opaca, como os contratos com as multinacionais. Os governos parecem mais preocupados em defender o negócio das multinacionais, embora elas tenham sido financiadas por recursos públicos, que a saúde das populações», defende o eurodeputado comunista.

Contratos escondidos

Os Estados-membros e a União Europeia estão a usar um duplo discurso. Enquanto fazem juras eternas de ajudar os países pobres na pandemia, na realidade, a realpolitik prevalece em benefício das multinacionais dos medicamentos. Apesar da grande opacidade que envolve os «acordos de compra antecipada» da União Europeia às empresas farmacêuticas, os elementos mais turvos são cada vez mais conhecidos.

Mais uma vez, aplica-se a lei de ferro do capitalismo neoliberal: a socialização das perdas e a privatização dos lucros. Os laboratórios foram subsidiados em milhares de milhões de euros pelos estados e pela Comissão Europeia – que pagaram mais de 2 mil milhões durante o desenvolvimento das vacinas – para a investigação e desenvolvimento, e depois para a produção em massa das doses, limitando assim os riscos das empresas. No entanto, as empresas mantêm o controlo sobre patentes, negociam duramente os preços com os governos e restringem potenciais doações e revendas a países em desenvolvimento.

Finalmente, a responsabilidade legal das empresas é reduzida ao mínimo no caso de efeitos secundários graves, que mais uma vez seriam suportados pelos estados signatários. Seria injusto culpar apenas as multinacionais que conseguem impor contratos tão grosseiramente desequilibrados.

Uma vacina só para os ricos mas que pode manter a doença em todo o planeta

Neste contexto tenso, é compreensível que as populações dos países em desenvolvimento já não sejam uma prioridade. Com as empresas farmacêuticas agarradas às suas patentes, os mecanismos Covid-19 Technology Access Pool (C-TAP) e Covax, destinados ao fornecimento de vacinas aos países pobres, não estão a funcionar.

De acordo com a Oxfam, 13% da população mundial, que vive em países ricos, encomendou previamente 51% das doses. E até no seio da União Europeia, as primeiras entregas revelaram desigualdades gritantes: Itália recebeu 9 750 doses, França 19 500 e Alemanha 151 125. Mesmo considerando as respectivas populações destes países, estas diferenças permanecem inexplicáveis e parecem sugerir que alguns são mais iguais do que outros. A Alemanha, além disso, está a negociar ao balcão doses adicionais, apesar de ser membro do mecanismo conjunto da Comissão para a aquisição de vacinas.

13%

De acordo com a Oxfam, 13% da população mundial, que vive em países ricos, encomendou previamente 51% das doses

Das 225 milhões de doses de vacinas administradas até agora, diz o director-geral da OMS antes da reunião da OMC, em artigo publicado no The Guardian, «a grande maioria foi de uns quantos países ricos e produtores de vacinas, enquanto os países de baixo e médio rendimento observam e esperam. Uma abordagem me-first [eu primeiro] pode servir a interesses políticos de curto prazo, mas é autodestrutiva e levará a uma recuperação adiada e demasiado lenta, com o comércio e as viagens a continuarem a sofrer. Qualquer oportunidade de derrotar este vírus deve ser agarrada com as duas mãos».

Tedros Adhanom Ghebreyesus afirma que uma série de medidas deve ser recomendada. «Quer se trate de partilha de doses, transferência de tecnologia ou licenciamento voluntário, como incentiva a própria iniciativa C-TAP da OMS, ou renunciando aos direitos de propriedade intelectual, precisamos de levantar todos os obstáculos».

O responsável da OMS apoia uma renúncia de patente que permitiria aos países fazer e vender cópias baratas de vacinas que foram inventadas noutros lugares, para garantir que toda gente é imunizada contra o coronavírus.

Quando a doença é a galinha dos ovos de ouro

Uma perspectiva que conta com o apoio pessimista do professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Boaventura Sousa Santos.

«Estou bastante pessimista, não me parece que na Organização Mundial do Comércio se vá vencer esta posição da indústria farmacêutica que tem sido prevalecente e defender a todo o custo os direitos de patente. Já no ano passado eles se tinham oposto a um licenciamento temporário da produção livre de vacinas, apenas durante o tempo que durasse a pandemia. Uma medida que foi vetada pelo Canadá, Estados Unidos da América e União Europeia, que têm uma influência enorme destas empresas que não querem permitir a quebra de patentes durante a pandemia», declara o sociólogo ao AbrilAbril.

Para eles, esta catástrofe «é vista como um novo negócio de ouro para os laboratórios. Até um comentador financeiro da CNN declarava que as vacinas eram, depois do petróleo, o novo ouro líquido. Vamos entrar num período, que descrevo no meu livro O Futuro Começa Agora, da Pandemia à Utopia, em que as vacinas vão ser sazonais, as mutações do vírus vão ser muito grandes. Tudo isto vai exigir, em permanência, a produção de novas vacinas. Esta pandemia, a primeira do século XXI, e que não será a última, existe em grande parte devido à globalização, à circulação por todo o planeta de pessoas e mercadorias, à comunicação mundial. Por isso, neste momento está tudo claro, se não se vacinar grande parte da população do mundo não haverá segurança em lado nenhum. Nem sequer para os habitantes do chamado primeiro mundo».

Segundo Boaventura Sousa Santos, se isso não for feito, o que vai acontecer é que as vacinas não vão conter a pandemia. Vão ser precisas novas vacinas, os confinamentos e mortes vão-se suceder, assim como se vai eternizar o negócio milionário de venda de vacinas.

No fim do ano passado, o Ministério da Saúde do Brasil confirmou, segundo escreve a revista Piauí, o primeiro caso de reinfecção por Sars-CoV-2 no país. Uma profissional de saúde de Paraíba, de 37 anos, sem comorbidades, apresentou dois episódios clínicos da Covid-19 em um intervalo de quatro meses.

No primeiro, em Junho de 2020, teve sintomas leves e sem complicações. No segundo, em Outubro, relatou fadiga e perda de olfacto e paladar. Investigadores da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, analisaram as amostras recolhidas em Paraíba e descobriram que a reinfecção havia sido causada por uma variante até então desconhecida do vírus – a sub-linhagem P.2, não alcançada pela acção de anticorpos de infecções anteriores.

As mutações mostraram aos cientistas que a esperada imunidade colectiva – que, em tese, protegeria a população conforme mais pessoas fossem infectadas – não era uma saída viável para a pandemia, pelo menos a curto prazo. Por enquanto, a vacinação é a única solução à vista, mas ela precisa de ser rápida. Especialistas alertam que a demora na campanha de vacinação, potencializada pela inépcia dos governos, pode ser mais uma ocasião para o surgimento de novas variantes da Sars-CoV-2.

Para Boaventura Sousa Santos, esta corrida para preservar a saúde só é possível num mundo em que se coloque a saúde à frente dos lucros. «A OMS podia ser uma plataforma para que a saúde fosse um bem público universal e, por maioria de razão, as vacinas também o seriam porque são absolutamente indispensáveis para se conseguir combater muitas doenças. Penso que esta seria a única solução que vamos ter no mundo, mas aparentemente só depois de uma desgraça ainda maior que esta, difícil de imaginar, é que os governos dos países desenvolvidos vão mudar a sua política de protecção ao negócio das farmacêuticas».

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