Cimeira UE-CELAC desmonta suposta unanimidade da «comunidade internacional»

No início da cimeira UE-CELAC, cimeira que reuniu chefes de Estado da União Europeia e chefes de Estado e diplomatas da América Latina e Caribe Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, no discurso de abertura disse: «o escritor argentino, Jorge Luis Borges disse certa vez: "Ao contrário do amor, a amizade não exige frequência"». A citação não foi em vão. Visava atenuar o facto da última iniciativa semelhante ter sido há oito anos e uma nova significaria e em parte por falta de vontade europeia. 

Num curto discurso, Charles Michel fez o enquadramento da situação internacional, destacando a guerra na Ucrânia e a pandemia da Covid-19 e procurando assinalar o esforço em torno da Cimeira de Paris do novo Pacto Global para o Financiamento. Foi após esse enquadramento que o mesmo colocou os objetivos da cimeira e enfatizando que os «presentes representam mil milhões de pessoas e mais de 20 % do PIB mundial» admitiu logo o «enorme potencial por explorar» no que toca ao comércio e investimento. 

Identificando desafios «urgentes e complexos» propôs uma maior regularidade das cimeiras e que essas passassem a ser realizadas de dois em dois anos de forma a desenvolver «economias limpas», «uma transformação digital» e «um modelo económico centrado no ser humano». À vista desarmada parecia que o presidente do Conselho Europeu estava pronto para abdicar do sistema capitalista dadas as contradições desse com os objetivos colocados, algo que claramente não será o seu intuito.

De qualquer forma, apesar do vazio de intenções que o discurso de Charles Michel pudesse parecer, os objetivos da cimeira que foram anunciados eram mais profundos que os três pontos abordados na abertura já que no site da cimeira consta que afim de reforçar ainda mais a parceria UE-CELAC iriam ser abordados um vasto conjunto de temas, entre os quais: uma cooperação reforçada em instâncias multilaterais; o comércio e o investimento; a recuperação económica; a investigação e a inovação; a justiça e a segurança para os cidadãos; os esforços de luta contra as alterações climáticas; a paz e a estabilidade a nível mundial. 

Dentro do tal vasto conjunto de temas talvez se possa considerar que a cimeira possa não ter sido um falhanço dados os avanços alcançados do ponto de vista comercial já que Von der Leyen anunciou uma agenda de investimentos na América Latina de 45 mil milhões de euros euros. Resta, no entanto, saber qual o peso político deste auxílio já que se assume que a União Europeia parte com um interesse estratégico uma vez que procura contrariar e reverter a forte cooperação já existente entre os países da América Latina e Caribe com a República Popular da China.

Se na parte comercial houve entendimentos, na parte da tentativa de condenação e isolamento à Rússia pela União Europeia já não se pode dizer o mesmo. Pode-se dizer até que, sem querer, a União Europeia fez por demonstrar que a alegada unanimidade da comunidade internacional no alinhamento da narrativa ocidental não passa peça de ficção criada pelos instrumentos de difusão e propaganda dos centros de decisão capitalistas ocidentais.

Nas conclusões da cimeira, os países da América Latina, não recusando destacar a necessidade de paz e a necessidade de um caminho até ela, não alinharam na tese de culpabilização isolada da Rússia e, como tal, não desligaram a situação que hoje existe das causas que levaram a que houvesse guerra. Por cá, vários órgãos de comunicação social procuraram veicular que era somente Cuba, Venezuela e Nicarágua a recusar colaborar com a União Europeia, mas sabe-se que, por exemplo, Lula da Silva já outrora fez uma análise que não encaixa na descrição dos acontecimentos que são impostos, assim como Gustavo Petro, presidente da Colômbia. 

A sobranceria Europeia não se fez esperar. O chanceler alemão, Olaf Scholz, fez questão de avisar que os efeitos da guerra são globais, pois «muitos países, também na América do Sul, sofrem as consequências da guerra de agressão da Rússia devido ao aumento dos preços e às questões de segurança alimentar», numa atitude quase paternalista. Já o  primeiro-ministro holandês diz que a questão que se coloca é «como convencer» a América Latina «a apoiar a Ucrânia», como se países soberanos não fossem capazes de fazerem as suas próprias análises. 

Escusado será dizer que, apesar desta grande preocupação dos chefes de Estado europeus e a recente veia humanista, estavam na sala países que sofrem gravemente com sanções. Por isso mesmo, a vice-presidente executiva da Venezuela, Delcy Rodríguez, defendeu a eliminação das desigualdades económicas e sociais e dos bloqueios contra as nações. «Estamos numa situação agravada no meio do bloqueio e é por isso que devemos corrigir os desequilíbrios entre dois blocos», afirmou a ex-ministra das Relações Exteriores da Venezuela. 

Para Delcy Rodríguez, «a agressão económica contra a Venezuela também afetou muito os parceiros que estão na Europa. Por exemplo, as empresas de energia européias que tinham projetos de negócios para produção de 130 mil barris por dia hoje estão com 30 mil barris por dia de produção». Recorde-se que no plano das sanções Portugal tem a sua quota-parte já que o Novo Banco bloqueou contas venezuelanas com saldos totais de 1,5 mil milhões de euros.