|Miguel Viegas

BEFIT: a grande ilusão fiscal da União Europeia

Traduzindo: quem desviou lucros no passado será premiado no futuro. É trocar fiscalidade por amnistia e transformar fraude histórica em direito adquirido.

Dentro de dias, o Parlamento Europeu discutirá o relatório sobre o BEFIT, a nova encenação da União Europeia (UE) sobre o combate à fraude e evasão fiscal. Mas a verdade é simples e crua: a UE não combate a injustiça fiscal, gere politicamente o assunto, fingindo estar a fazer uma coisa para que tudo fique na mesma. E fá-lo com zelo, disfarçando imobilismo com reformas requentadas. O BEFIT é apenas o capítulo mais recente deste teatro.

A evasão fiscal através de paraísos fiscais é tão velha quanto conhecida. E apesar de décadas de retórica e «determinação europeia», nada de estrutural foi feito. Nem os escândalos LuxLeaks e Panamá Papers, que expuseram a escandaleira fiscal instalada no coração das instituições, mudaram esta inoperância. A UE anunciou na altura, entre 2015 e 2016, mais uma torrente legislativa, não fosse o presidente da Comissão Europeia na altura, nada mais nada menos do que Jean Claude Juncker, ex-primeiro-ministro do Luxemburgo onde construiu laboriosamente um dos maiores paraísos fiscais do planeta! É parte desta torrente que nos aparece agora reciclada em novas roupagens sob a sigla BEFIT. Como é visível no gráfico da Figura 1, o regabofe continua com o crescimento da riqueza mundial sediada em paraísos fiscais que ultrapassa hoje os 10% do PIB mundial.

A hipocrisia não tem limites, desde logo porque os maiores paraísos fiscais do mundo estão situados aqui, dentro da própria União Europeia: Irlanda, Holanda, Luxemburgo, apenas para citar alguns. Estes países drenam a receita fiscal dos restantes Estados-membros enquanto posam como modelos de integração europeia. E os outros Estados toleram, porque esta erosão permanente mantém a pressão para baixar o IRC em toda a União, enfraquecendo a capacidade fiscal e social de cada país.

É neste contexto que surge o BEFIT. Uma proposta apresentada como grande avanço, mas que não passa de uma reciclagem empobrecida de ideias com mais de 10 anos. Fala da necessidade de taxar os lucros onde são criados. E para isso, recicla uma proposta apresentada em 2011 (Common consolidated corporate tax base, CCCTB). Esta primeira proposta previa critérios robustos de economia real (emprego, ativo fixo, vendas, utilizadores de serviços digitais etc.) para impedir que as multinacionais declarassem os seus lucros em paraísos fiscais onde não existem nem fábricas nem trabalhadores, mas onde as taxas de IRC são baixas ou nulas. Na nova proposta do BEFIT, a repartição da base tributável passa a ser feita usando a média dos últimos três anos. 

Traduzindo: quem desviou lucros no passado será premiado no futuro. É trocar fiscalidade por amnistia e transformar fraude histórica em direito adquirido. Em contrapartida, restringe a sua aplicação a empresas com faturação superior a 750 milhões de euros, deixando de fora cerca de 80% das multinacionais. É difícil imaginar proposta mais inócua.

Com este ou outro BEFIT, as grandes multinacionais continuarão a drenar lucros para paraísos com total tranquilidade e impunidade. A engenharia fiscal permanece impune. Para isso existem as grandes empresas de consultadoria de onde saem e entram ministros e secretários de estados. Os regimes especiais continuam protegidos. E a UE continuará a publicar relatórios sonoros, propostas legislativas ferozes e anúncios épicos do tipo «agora é que é!». Porque o problema de fundo mantém-se. O que realmente prevalece dentro da União Europeia, acima de tudo e de todos, são os interesses do capital transnacional. Os Estados nacionais refugiam-se na ideia de que a solução é supranacional, furtando-se às suas próprias responsabilidades no combate à fraude e evasão fiscal. A UE, por sua vez, desdobra-se em iniciativas que sabe à partida serem inconsequentes, e procura aprofundar ainda mais a integração europeia, sabendo que é a livre circulação de capital que permite e fomenta grande parte do crime económico e em particular da fraude e evasão fiscal. Não é por acaso que defendemos uma outra Europa ao serviços dos trabalhadores e dos povos!

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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