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|cultura

A música agora é outra

A partir das declarações de Pedro Adão e Silva conseguimos perceber o que é que o novo ministro da Cultura considera ser «a cultura»: uma conceção limitada, centralista, elitista e superficial.

CréditosMário Cruz / Agência Lusa

A estreia de Pedro Adão e Silva no palco parlamentar começou muito bem, com uma declaração reveladora sobre a precariedade na Cultura. O ministro, conhecido pela ocupação que faz dos seus tempos-livres (não apenas como cronista, mas como surfista e melómano popular), aplicou a fórmula TINA (there is no alternative/não existe alternativa) a todo o setor da Cultura, indo mais longe do que a própria TINA, defendendo que acabar com a precariedade, em muitos casos, não é desejável. 

Esta afirmação tem duas dimensões que é importante explorar. A primeira é a da conceção do que constitui a Cultura. A partir daquelas declarações conseguimos perceber o que é que Pedro Adão e Silva considera ser «a cultura». Trata-se de uma conceção limitada, centralista, elitista e superficial, em que a Cultura se restringe a um magma de criação artística e acesso, visível a olho nu.

A produção cultural, onde se encontra a esmagadora maioria do trabalho em Cultura, nem sequer entra nesta conceção, precisamente pela sua aparente invisibilidade. O apoio à criação artística é visto como a génese das necessidades da cultura e o acesso como o fim último da utilidade cultural.

Dentro desta lógica binária, ou há público ou o artista não come. Para que coma, é preciso ter uma certa liberdade contratual. O espírito neoliberal da conceção desta dinâmica é evidente e ajuda-nos a compreender que a continuidade da política do PS na pasta da Cultura foi assegurada. 

Tudo o que tenha a ver com a cultura de base das populações, com as dinâmicas e realidades do movimento associativo popular, das escolas de música, de dança ou de artes plásticas de origem popular e associativa, de fenómenos culturais de criação singular e específica de determinados territórios – tudo isso –, não cabe naquela conceção de Cultura. Como tal, exclui um conjunto substancial de protagonistas.

«O espírito neoliberal da conceção desta dinâmica é evidente e ajuda-nos a compreender que a continuidade da política do PS na pasta da Cultura foi assegurada.»

Uma segunda dimensão é a do trabalho. O trabalho em Cultura está essencialmente, como disse, na produção. Falamos de trabalhadores do audiovisual, de eletricistas, trabalhadores da limpeza, carregadores, transportadores, carpinteiros, pintores, produtores, aderecistas, roadies, tipógrafos, editores, tradutores, paginadores, designers, conservadores/restauradores, inventariadores, trabalhadores da comunicação e divulgação, rececionistas, projecionistas, arrumadores de sala, entre tantos outros.

«O fetiche do trabalho na Cultura não é um exclusivo deste ministro. Esta é, de resto, uma perspetiva comum, até em setores progressistas que olham para a Cultura como um fenómeno idílico de criação e expressão individual das sensibilidades e do conhecimento. Esta conceção [...] choca com a realidade do trabalho na Cultura – um trabalho como todos os outros, com as mesmas características essenciais, e que de fascínio tem muito pouco.»

Quem ouve Pedro Adão e Silva sabe que ele só ali está a considerar o criador artístico (enquanto indivíduo que trabalha com a criatividade) e a tal inevitabilidade do trabalho intermitente, daquele em que a precariedade é até desejável. De fora ficam, portanto, milhares de trabalhadores cujas funções diárias são executadas no setor da Cultura, em permanente precariedade, funções essas que possibilitam a criação e o acesso. Estes não são trabalhadores paralelos à cultura, trabalhadores associados. Estes são, objetivamente, trabalhadores da Cultura. 

O fetiche do trabalho na Cultura não é um exclusivo deste ministro. Esta é, de resto, uma perspetiva comum, até em setores progressistas que olham para a Cultura como um fenómeno idílico de criação e expressão individual das sensibilidades e do conhecimento. Esta conceção idealista choca com a realidade do trabalho na Cultura – um trabalho como todos os outros, com as mesmas características essenciais, e que de fascínio tem muito pouco. 

Lembremo-nos de 2020 e da rápida organização dos trabalhadores do audiovisual na exigência de medidas do governo para sobreviver ao confinamento e ao cancelamento de toda a agenda cultural. À tona veio uma realidade que há muito se agravava: para sobreviver, muitos trabalhadores têm obrigatoriamente de ter outros empregos. O trabalho na Cultura não só é precário como, em muitos destes casos, não é reconhecido.

Quando os espetáculos pararam e foi preciso encontrar alternativas perceberam-se bem as necessidades que todos os dias existem para materializar a criação artística e esperar pela presença do público. É tudo o que está entre estes dois momentos, que representa o grosso do trabalho na Cultura, que deve ser a prioridade de uma política para a Cultura: como é que asseguramos uma política cultural? 

É certo que o trabalho do criador artístico depende muito de um conjunto de opções públicas: a existência de equipamentos culturais, a descentralização, um movimento associativo robusto e participado, uma rede eficaz de equipamentos setoriais, uma política de serviço público nos media diferente, etc. Apesar de o apoio à criação artística e uma rede de proteção social aos artistas serem essenciais, o trabalho do artista não tem ascendente sobre todos os outros trabalhos. Aliás, como diria Mário Dionísio, numa sociedade socialista, idealmente, não existem pintores, existem pessoas que pintam. 

Para lutar por uma política cultural que sirva as necessidades reais dos trabalhadores e das populações é fundamental mudarmos a nossa perspetiva sobre aquilo que é a Cultura e libertá-la de um certo elitismo a que nos fomos habituando, mesmo quando não pertencemos a elite nenhuma. A Cultura não serve para nos sentirmos especiais e únicos. Se ela tem uma utilidade, certamente que não será a do preenchimento hedonista. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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