Quando entrou em funções, para disfarçar o incómodo provocado pela Ministra da Cultura anterior, Pedro Adão e Silva afirmou que não era desejável acabar com a precariedade na Cultura. A afirmação não mereceu grande atenção na altura porque o ministro aparenta uma sofisticação no discurso e cálculo em tudo o que diz. Certamente que muitos terão pensado que ele estava a falar de algo filosoficamente mais complexo, tendo em conta que é uma pessoa que lê. Mas não estava. Pedro Adão e Silva parece não ser mais do que um neoliberal que soube, melhor do que ninguém, «ser de esquerda».
A mudança de ministro na pasta não serviu para mudar a política do Governo, serviu para aprofundar uma conceção política mercadorizada da Cultura. Já quase no final de junho, na tournée do Conselho de Ministros pelo país, Adão e Silva assumiu o papel de porta-voz e anunciou, com alegria e entusiasmo, a sua proposta para a Cultura. Depois, multiplicou-se em entrevistas e vídeos institucionais a mostrar ao mundo o seu contributo para o desenvolvimento do setor que tutela.
Veio, então, o ministro, depois de muita reflexão e trabalho no terreno, provavelmente inspirado pela benemérita e altruísta responsabilidade cultural do Grupo Visabeira e do restauro dos claustros do Mosteiro de Alcobaça, anunciar que o Governo do PS vai adotar o modelo empresarial para a Cultura, que vai abrir a porta aos privados («mais envolvimento»); um «modelo ambicioso», para «potenciar a economia», «acrescentar valor» e «internacionalizar». De repente, parecia que estávamos numa daquelas palestras nos fóruns empresariais em 2011. Em poucos minutos, Adão e Silva conseguiu debitar todos os clichés neoliberais que constam na mais pobre das cartilhas.
Reafirmo: não é o gosto musical, cinematográfico ou literário que define ou muito menos garante as boas opções políticas de um governante, nem o seu discurso. E não será, certamente, a sua relação com objetos artísticos de uma determinada cultura que o qualifica para a ocupação de qualquer cargo político. O que o qualifica e o que o caracteriza é a sua capacidade para pôr em marcha esta agenda do Governo. Por muito bons sentimentos que tenha, na hora da verdade, também Pedro Adão e Silva opta pelo alegado pragmatismo, designação que não tem outro significado que não seja servir interesses de grupos económicos, perpetuar a precariedade no setor, criar constrangimentos no acesso de todos à Cultura e que esconde, atrás da cartada da racionalidade, o caráter político da política que institui.
Soubemos, também, que as estruturas diretivas sob tutela do Ministério da Cultura iriam ser reformadas, nomeadamente a Direção-Geral do Património Cultural. Quem não tinha saudades de uma boa reforma? O ministro começou por dizer que a última reforma tinha sido um desastre, mas agora, que é ele a pensar sobre o assunto, vai ficar tudo melhor. A autoconfiança é sempre um elemento importante. Mas o que é uma boa reforma sem investimento? Como poderá a Cultura em Portugal ter um projeto se a fatia do Orçamento do Estado para o setor se mantiver nos mesmos níveis de sempre?
«A autoconfiança é sempre um elemento importante. Mas o que é uma boa reforma sem investimento? Como poderá a Cultura em Portugal ter um projeto se a fatia do Orçamento do Estado para o setor se mantiver nos mesmos níveis de sempre?»
Adão e Silva propõe, então, um modelo empresarial para a gestão dos museus, para que estes gerem receita e trabalhem por objetivos – uma espécie de autofinanciamento dos museus que faz a Administração Central lavar as suas mãos e que coloca as instituições a competirem umas com as outras e a optar por critérios comerciais, em detrimento de opções ligadas a um serviço público e de democratização da Cultura. Esta abertura à mercadorização dos museus colocará em causa o espírito da Lei de Bases do Património Cultural e será mais um entrave à revisão e reforço da Lei-Quadro dos Museus, que parece cada vez mais distante.
Não há muita novidade, aqui. O plano parece ser replicar a fórmula da EGEAC – esse clube privado das elites culturais de Lisboa, com o qual há cada vez menos espaço para outras expressões culturais que não sejam as de um circuito fechado, gregário e aparentemente erudito ou pós-moderno, refém de tendências sociais determinadas por fatores externos à cultura popular e à cultura de massas.
A urgência do Governo deve-se, sobretudo, à necessidade de se desresponsabilizar e cortar na despesa. São as contas certas do neoliberalismo, que para os museus e monumentos, fora da área da capital, serão um desastre total e que para os museus dos grandes centros urbanos resultará na prevalência de fatores como o entretenimento e o turismo, certamente para «ganhar escala».
De fora desta equação ficam, ainda, os trabalhadores da Cultura e a sua realidade laboral que, com um «envolvimento» maior dos privados, poderá significar o agravamento da precariedade. Isto para já não falar da externalização de serviços fundamentais, como o são a limpeza, a vigilância, a manutenção, a museografia e, claro, a conservação e restauro.
«A urgência do Governo deve-se, sobretudo, à necessidade de se desresponsabilizar e cortar na despesa. São as contas certas do neoliberalismo (...).»
Na sua visão internacional, o Governo perspetiva, ainda, um modelo de envolvimento dos privados que financiam arquitetura, incorporação de obras de arte e design, para mandar cenário lá para fora. É o velho «para inglês ver», não obstante alguém achar que isto é tudo muito sofisticado.
Mas no grande plano do Governo para cortar na despesa da Cultura, ainda não sabemos o que pretende o ministro anunciar sobre companhias de teatro que fecham, academias de artes que vão definhando, estruturas associativas que se substituem ao papel das autarquias e que continuam sem um apoio realista para responder a grandes ameaças à sua sobrevivência e património cultural local em decomposição acelerada. Provavelmente é aqui que entram as autarquias e o seu já parco financiamento na transferência de encargos que o PS vai forçando.
Continuamos, assim, sem saber o que fará o Governo no apoio à criação e produção cultural e que relação quererá imprimir entre isso e a fruição e acesso à Cultura da população por todo o território, nas suas diversas dimensões e formas de expressão. Para já, sabemos que há aqui um modelo limitado de conceção cultural, que servirá para limpar a imagem de empresas, dar-lhes variadíssimos benefícios e colocar aqueles que são os grandes protagonistas da Cultura em todo o território – nós – como meros figurantes à espera de esmola.
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