|Jorge C.

A normalização

Num momento em que se anunciam alterações preocupantes à legislação laboral, desde o agravamento da precariedade, da facilitação dos despedimentos ao ataque ao direito à greve, esse discurso normalizador assume-se como instrumento fundamental para a resignação.

CréditosAndy Rain / EPA

Normalizar. Tornar normal, costumeiro, aceitável. A palavra anda na boca do mundo, tanto por choque, como por entusiasmo. Normalizar. Vivemos demasiado tempo, dizem, conformados com um conjunto de valores que julgávamos irreversíveis: a paz, o pão, a habitação, saúde, educação. Inscrevemos na pedra as palavras das canções que significavam a vida real, a vida concreta. Mas se calhar é tempo de esquecer isso, porque isso, dizem (mais uma vez), atrasa o crescimento económico. Nós, que nada sabemos de economia, ouvimos falar em milhões e concluímos que não temos fórmula de cálculo para aquilo tudo e entregamos o ouro ao bandido. Normalizámos a entrega do ouro ao bandido.

Há um medo, que paira sobre as nossas cabeças, de que a normalização da extrema-direita resulte numa daquelas ficções distópicas em que de um momento para o outro o céu azul é substituído pela noite escura. É como se a ascensão da extrema-direita na história da Europa moderna fosse um acontecimento semelhante ao de A Guerra dos Mundos, em que os invasores vêm de fora e nós somos colonizados, sem escolha. É como se o discurso não contribuísse, como se a introdução de ideias equívocas e a sua disseminação, a sua normalização, não gerassem um apoio popular a esse movimento colonizador.

A génese desta normalização está na relativização de um discurso que nos vai afastando dos princípios fundadores daquela que é a primeira sociedade que construímos democraticamente. Quando nos afastamos daquilo que é a nossa ideia de sociedade, do compromisso que todos assumimos uns com os outros; quando relativizamos certos problemas e fazemos cedências a um discurso que sabemos ser desumano, mesmo que na nossa consciência estejamos a ser muito decentes, pragmáticos, etc., contribuímos para essa tal normalização que muito nos indigna. Mentimo-nos a nós próprios para estabelecer uma relação entre os nossos medos e o nosso bom senso. E que critérios usamos para estabelecer essa relação? A informação que nos chega e o discurso dominante – a hegemonia de um discurso difundido sem contraditório. 

«Quando nos afastamos daquilo que é a nossa ideia de sociedade, do compromisso que todos assumimos uns com os outros; quando relativizamos certos problemas e fazemos cedências a um discurso que sabemos ser desumano, mesmo que na nossa consciência estejamos a ser muito decentes, pragmáticos, etc., contribuímos para essa tal normalização que muito nos indigna.»

Essa dominância não nos chega por acaso. Ela é construída com a introdução de ideias que desvalorizam aqueles princípios e valores em que nos inspirámos. São ideias que surgem a reboque de conceções forjadas na demagogia – conceções de evolução, de novos tempos. Para evoluirmos, todos sabemos, temos de aceitar a perda de direitos, sobretudo os direitos dos outros. É uma conclusão muito lógica, principalmente para muitos daqueles que nos garantiram que havia uma terceira via e um elevador social e que disso decorreria uma natural evolução da sociedade para um bem-estar geral, a partir dos bens de consumo. 

Um bom exemplo disso chega-nos agora por um dos canais da propaganda neoliberal – a publicidade. Há dias deparei-me com um vídeo de uma plataforma de entrega de comida em casa, no qual a empresa anunciava que 48% dos seus estafetas realizava este serviço em regime de part-time. Assim justificavam o facto de o valor que estes trabalhadores recebem por cada entrega ser miserável. Para tal, surgia-nos um estafeta, um homem, adulto, com família constituída, que dizia que este part-time era uma absoluta maravilha porque lhe permitia ganhar mais uns trocos para dar resposta às necessidades que, de outra forma, não conseguia enfrentar. Portanto, nada como ter de se multiplicar em empregos, independentemente da carga horária que isso implica e de isso significar que o seu principal emprego não lhe dá um salário suficiente. 

Não se via um discurso neoliberal tão agressivo desde os tempos da troika. São as próprias empresas e os seus meios de publicidade a promover a normalização da perda de direitos. Enquanto isso, beneficiam de borlas fiscais e de grandes ajudas dos sucessivos governos ao não impor uma política de aumento dos salários, da regulação dos horários e do tempo para a vida. 

Esta normalização do trabalho à jorna, romanceado na figura deste pai de família, afasta-nos das conquistas da nossa democracia e das nossas aspirações em ter uma vida melhor. Não só cada um de nós, individualmente, mas a aspiração de uma vida melhor para todos nós, uma dignidade na vida coletiva. Este é só um exemplo dos múltiplos instrumentos de normalização que contaminaram a nossa ideia conjunta de sociedade, nas nossas conceções sobre direitos fundamentais: trabalho, justiça, saúde, habitação ou educação. Normalizou-se a ideia de que tudo tem um preço, de que quem não pode pagar esse preço, olha, que se amanhe e se faça à vida. Normalizou-se a ideia da inevitabilidade dos baixos salários e dos horários desregulados. Normalizou-se a ideia de que estas empresas parasitas, em plataformas digitais, vieram acrescentar alguma coisa ao bem-estar porque não temos tempo, nem energia. E normalizou-se a ideia de que nada disto é política, de que nada disto são opções políticas. Exceto quando os trabalhadores lutam pelos seus direitos, aí já é ideologia. 

«Portanto, nada como ter de se multiplicar em empregos, independentemente da carga horária que isso implica e de isso significar que o seu principal emprego não lhe dá um salário suficiente.»

Se o discurso daquele estafeta é um discurso possível – e pode bem sê-lo em vários contextos de exploração – então esta normalização será a primeira responsável de todas as outras normalizações que nos parecem indecorosas. Porque é esta normalização que acentua as desigualdades, que acentua injustiças e desumanização. Num momento em que se anunciam alterações preocupantes à legislação laboral, desde o agravamento da precariedade, da facilitação dos despedimentos ao ataque ao direito à greve, esse discurso normalizador assume-se como instrumento fundamental para a resignação. A este cenário junta-se um quadro internacional de subserviência humilhante e capitulação das instituições europeias ao imperialismo estadunidense. Um cenário que, a confirmar-se, terá consequências trágicas não apenas no plano económico, mas sobretudo num plano de paz e cooperação internacional. Normaliza-se, assim, a perda de soberania e a guerra.

Para combater essa normalização, precisamos de recuperar uma ideia de sociedade que outrora orientou a nossa vida. Precisamos de substituir a resignação por um desígnio comum que, mais do que nos limpar a consciência, nos inspire a lutar uns pelos outros. 

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