Com os votos favoráveis do PS, BE e PAN, a Assembleia da República aprovou recentemente uma proposta do Governo que suspende, por 24 meses, os prazos constantes do artigo 501.º do Código do Trabalho, mais concretamente, os que se referem à sobrevigência e caducidade das convenções colectivas, após denúncia por uma das partes.
Foi no entanto rejeitada a proposta do PCP que visava regular a sucessão das convenções, eliminando de vez a caducidade e, também, repor o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.
Não é, como se sabe, a primeira vez que o governo recorre a uma manobra de diversão deste tipo, pois já em 2017, na sequência de um compromisso assumido pelo então Ministro do Trabalho, face ao avolumar da contestação social, procedeu-se à suspensão da publicação dos avisos de caducidade a executar pela Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT). Segundo conhecia quem se movimentava nestas lides, o governo teria prometido ao patronato, como contrapartida, não tocar na lei que regula a sobrevigência e a caducidade das convenções.
Desta vez, aparentemente o Governo também se mostrou preocupado com os efeitos sociais que uma denúncia em massa de convenções colectivas pode significar em tempos e crise pandémica. O facto, porém, é que, das duas vezes, o governo PS chefiado por António Costa, optou por medidas superficiais e caracterizadas por uma real ausência de vontade para atacar o problema na sua génese, ou seja, a revogação do regime da caducidade.
Instituído a partir de 2003, através do Código do Trabalho de Bagão Félix, obra do governo do PSD/CDS, o regime de sobrevigência e caducidade, não obstante as críticas do PS quanto ao plano de «reformas laborais» então propostas, veio, por acção dos sucessivos governos, no qual se incluem o de José Sócrates e o de António Costa, a ser objecto de progressivas «afinações estratégicas» que visaram torná-lo cada vez mais apto a atingir os objectivos que inicialmente se visaram e que, como é factualmente constatável, resultaram numa progressiva destruição de convenções colectivas, principalmente as outorgadas por associações sindicais filiadas na CGTP-IN.
Quem analisar na especialidade cada uma das alterações que se foram fazendo, não deixará de constatar que, cada vez que os sindicatos da CGTP-IN encontravam uma resposta para contornar a caducidade, o governo vigente operava uma alteração para a travar. Foi um tempo de parada e resposta, em que o poder patronal e os interesses económicos sempre contaram com a protecção dos governos para prosseguirem a ofensiva contra a contratação colectiva.
«Os governos sucessivos foram de “afinação” em “afinação”, procurando destruir o edifício contratual colectivo nacional»
Já por acção do Governo PS de António Costa, na anterior legislatura, através da Lei n.º 93/2019 de 04/09, procedeu-se a outra inovação que consistiu na previsão de um regime de arbitragem com vista à suspensão do período de sobrevigência e mediação com vista à obtenção e um acordo para revisão total ou parcial da convenção.
O facto é que, para além de nada resolver, o regime suplementar de arbitragem e mediação criado é absolutamente redundante, pois se nada se negociou até então, porque haveriam de querer negociar, as mesmas entidades patronais que originalmente denunciaram as convenções colectivas?
Para além das alterações anteriores, o PS ainda criou uma nova forma de caducidade, a que diz respeito à extinção de associação patronal ou sindical outorgante. Ou seja, uma associação patronal extingue-se, transforma-se em «associação empresarial», como sucedeu com a Associação Portuguesa de Seguradoras, e as convenções caducam por extinção de um dos outorgantes. Ao invés de legislar no sentido de que as convenções outorgadas e publicadas se manteriam em vigor, enquanto fontes de direito que são, o governo PS, fez o contrário: olhou apenas para a componente contratual da convenção colectiva e tratou-a como sendo um mero contrato civil. No fundo, adoptou a leitura doutrinária que mais servia ao objectivo inicial, o de colocar os sindicatos em situação de enorme desequilíbrio na relação negocial.
«Sempre bem comportado relativamente às directrizes da UE, o governo PS continuou a epopeia de destruição e subversão do direito de contratação colectiva»
Não obstante as preocupações que o Governo diz ter para com o estado da contratação colectiva, o tratamento que tem dado à matéria está em linha com a doutrina original, fundada numa aliança patronal e governamental. A comprovar as intenções originais estão os dados publicados pela DGERT, expressos numa diminuição drástica da cobertura da contratação colectiva – descendo de 1 512 200 trabalhadores abrangidos (antes de 2003), para um máximo de 241 500, em 2013.
Eis como se subverte o princípio segundo o qual a contratação colectiva constitui um importante meio de promoção do progresso social e económico, razão pela qual o exercício deste direito, reconhecido na Constituição da República às associações sindicais, deve ser fomentado.
Nunca mais, até hoje, se recuperou a cobertura existente até 2003. Poder-se-ia ter recuperado? Porventura. Mas apenas se, a par da criação do regime de sobrevigência e caducidade, não tivesse também o Código do Trabalho de 2003 revogado o principio do tratamento mais favorável ao trabalhador – o favor laboratoris – que por impor que, entre duas normas laborais reguladoras da mesma factualidade material, se aplicava a mais favorável para o trabalhador, tal determinava que os regimes negociados tinham sempre de ser mais favoráveis para quem trabalhava, obrigando as entidades patronais a negociar sempre que queriam regular o trabalho em termos que consideravam mais adequados.
Provando a importância primordial que o favor laboratoris tinha no edifício juslaboral, pela lógica interpretativa que imprimia ao direito do trabalho, a verdade é esta matéria tem sido amplamente debatida na Assembleia da República, sem que até hoje houvesse vontade política, por parte do «arco da governação», sublinhe-se, para afastar tão grave dano para os trabalhadores portugueses.
Tal sucede por falta de reconhecimento da importância da contratação colectiva? Não, nem por sombras! Como o próprio governo sublinha na exposição de motivos da proposta de lei aprovada, «o direito de contratação colectiva constitui um direito fundamental, inscrito no capítulo constitucional dos direitos, liberdades e garantias».
«A revogação do princípio do tratamento mais favorável constituiu outro dos factores de destruição e subversão do direito de contratação colectiva»
Então porque veio o Governo apresentar-nos esta medida de suspensão do regime de sobrevigência e caducidade, sem que proceda antes à necessária resolução definitiva deste problema?
Tal como transparece também da exposição de motivos, o governo receia, de alguma forma, um recurso intempestivo por parte das associações patronais, à caducidade das convenções em vigor, como forma de resposta à crise por que o país passa, no âmbito da pandemia de Covid-19. A verificar-se, pelos conflitos sociais e laborais que se causariam, tal seria tudo o que um Governo não necessitaria em tempos como os que vivemos.
Mas o mais importante é que, independentemente das reais intenções do executivo, a proposta de introdução de uma norma com o conteúdo proposto, que suspende os prazos já a decorrer, bem como os que possam vir a sê-lo por força dos pedidos de caducidade que possam ser requeridos, não é mais do que um reconhecimento, mesmo que indirecto, de que o que está verdadeiramente errado é o próprio regime imposto pelo artigo 501.º do Código do Trabalho. Reconhecimento, esse, que já tinha sido feito aquando da suspensão da publicação dos avisos de caducidade pela DGERT.
Efectivamente, não haveria a necessidade de suspensão, hoje como no passado, se os trabalhadores não fossem lesados, assuma-o ou não o Governo que, no caso, invoca o recurso a uma medida extraordinária suscitada pela presente crise sanitária.
Ou seja, reconhecendo o problema e os danos causados; para o governo, tal gravidade só existe e só é causa de acção porque estamos numa pandemia. Para o governo PS, numa situação normal, os trabalhadores já estão aptos a suportar os danos causados, em termos de rendimentos e direitos, por tal ataque à contratação colectiva.
«O PS vive bem com os danos que as normas gravosas do código do trabalho exercem sobre os trabalhadores portugueses»
Na concepção do executivo liderado por António Costa, o problema apenas existe enquanto «problema adicional» a outros tantos que hoje se verificam e que podem, somados, fazer escalar a contestação social a níveis que considera indesejáveis para a sua imagem. Eis a real intenção governativa. Nenhum sentido de justiça social a move, ou de preocupação com o dano que tal situação traz a centenas de milhares de trabalhadores.
Com tal proposta de suspensão temporária, longe de resolver o problema suscitado a partir de 2003, apenas se pretende deferir os seus efeitos para um período no futuro, de preferência pós-pandemia, deixando em suspenso a resposta à inevitável pergunta: nesse futuro, já o governo considerará aceitável a produção de efeitos que agora diz temer e que, nas suas próprias palavras, poderiam colocar em causa a função de «salvaguarda dos direitos dos trabalhadores e da coesão social» que a contratação colectiva assume?
Em suma, para o actual governo, em períodos de crescimento económico, o país pode dar-se ao luxo de manter em vigor um regime jurídico que, como ele próprio reconhece, durante a crise, enfraquece o papel que a contratação colectiva tem na promoção do crescimento e desenvolvimento social e económico do país.
O combate, denúncia e contestação que os trabalhadores e seus sindicatos têm encetado, implica a afirmação do princípio, segundo o qual, o exercício de direitos fundamentais, como o que está aqui em causa, não apenas é importante durante as crises, como durante os períodos de crescimento, não sendo o quadro económico em que vivemos que altera a natureza e conteúdo desses mesmos direitos. Direitos como o direito de contratação colectiva são designados de direitos fundamentais, precisamente, porque são estes que dão corpo e forma ao que designamos como estado democrático de direito. É por razões relacionadas com a necessidade de se conferir estabilidade ao seu conteúdo que estes direitos se encontram previstos na Constituição. Tudo isto para que não possam ser desvirtuados ao sabor de perspectivas de governação muito pouco defensoras – e mesmo subversoras – dos princípios constitucionais.
O Governo falha, também, e talvez propositadamente, tal o número de vezes que já foi interpelado sobre este assunto, em identificar a influência que a revogação do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador teve sobre o dinamismo da contratação colectiva. É que, se até 2003, fruto deste princípio, eram as associações patronais e empresas que tinham interesse directo na celebração e convenções colectivas, a partir de 2003, com a revogação do princípio do tratamento mais favorável, o legislador inverteu os papéis, colocando os sindicatos numa situação extremamente difícil, em que, para negociarem convenções colectivas são ameaçados de chantagem, com vista a terem de aceitar a redução e degradação dos direitos dos trabalhadores que representam.
Em suma, o que os sucessivos governos PS, PSD e CDS foram fazendo foi destruir os instrumentos práticos que o direito do trabalho utilizava, no sentido de contribuir para um maior equilíbrio de poder na relação entre patrão e trabalhador, assumindo, este ramo de direito, uma maior protecção deste último através da previsão de condições mínimas de trabalho apenas derrogáveis por condições mais favoráveis para os trabalhadores abrangidos. Assim se destrói e descaracteriza o próprio direito do trabalho, do qual o direito de contratação colectiva é base fundamental.
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