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|Entrevista

Filipa Costa: Temos direito a viver bem o ano inteiro, não só quando dão bónus

No dia 24 de Dezembro, véspera de Natal, os trabalhadores do comércio e da distribuição entram em greve. Ao AbrilAbril, a presidente do CESP falou sobre os salários de miséria, os horários desregulados e a violação «de tudo o que é lei» laboral.

Filipa Costa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP/CGTP-IN) 
Filipa Costa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP/CGTP-IN) Créditos / A Voz do Operário

Um ano muito bom para os patrões, um annus horribilis para os seus trabalhadores. Nos primeiros nove meses do ano, o Pingo Doce acumulou 419 milhões de euros de lucros, um aumento de quase 30% face a 2021. No mesmo período, a Sonae (dona do Continente, Worten, Wells e dezenas de outras lojas) viu os seus lucros aumentar em 32,6%: 210 milhões de euros.

Em contraponto, os pescadores, por exemplo, vendem o pescado «em média 40 a 50% mais barato do que em Fevereiro», explicou um trabalhador à CNN, afirmando não compreender como é que vendendo mais barato, o peixe ainda não parou de aumentar nos supermercados. O preço do pescado, para os consumidores, terá subido cerca de 25% em 2022.

O AbrilAbril falou com Filipa Costa, presidente do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP/CGTP-IN), sobre a ambiciosa greve dos trabalhadores do comércio e distribuição agendada para o dia 24 de Dezembro de 2022, véspera de Natal. Esta luta abrange todos os trabalhadores do sector: caixas de supermercado, repositores, transportadores, trabalhadores dos armazéns, lojistas, trabalhadores de empresas de trabalho temporário.

Todos os empregados no comércio são chamados a largar o trabalho no dia 24 de Dezembro e a «aproveitar o dia» com a sua família e amigos. No resto do ano «estarão a trabalhar sob ritmos de trabalho intensos, de uma exploração que é uma coisa incrível». «Pois que aproveitem este tempo», sem estar no tempo do patrão.

Qual é o perfil dos trabalhadores da grande distribuição e comércio?

Cada vez há mais juventude na distribuição e comércio. Temos muitos trabalhadores que entraram recentemente, malta mais nova, assim como trabalhadores já com alguma idade e experiência, com uma carreira de muitos anos nas empresas.

Há uma coisa comum a todos estes trabalhadores. Vás para a grande distribuição, para o retalho, os caixas, etc... o Salário Mínimo Nacional é prevalente. Acho que essa é a grande caracterização que une estes trabalhadores.

A precariedade é um termo bastante abrangente, abarca várias formas de exploração e abuso patronal. Quais são as principais características da precariedade nestes sectores?

Quer seja no sector do retalho, com os caixeiros das lojas, nas empresas de distribuição, a precariedade está em todo o lado. Seja através dos vínculos feitos com as empresas de trabalho temporário ou pelos contratos a termo, aquilo a que vimos assistindo é que um crescimento, renovado, da precariedade no sector da grande distribuição.

Há cada vez mais casos de precariedade. Por exemplo, nos supermercados My Auchan, que agora abrem em cada esquina, os trabalhadores que usam o colete vermelho da Auchan parecem trabalhadores normais, com ligação à empresa, mas se olharmos com mais atenção para a placa com o nome vemos 'ao serviço da Addeco' ou de uma outra qualquer empresa de trabalho temporário.

Isto está a crescer, está a crescer muito neste sector. São trabalhadores mais precários do que os outros pela fragilidade do seu vínculo laboral: não são abrangidos pela contratação colectiva – o trabalhador da Auchan tem direito a um contrato colectivo de trabalho com vários direitos, específicos para o sector – portanto o trabalhador da Addeco só tem mesmo o que está garantido no Código do Trabalho.

Tivemos, há uns tempos, uma conversa muito interessante com um trabalhador do My Auchan em que ele dizia: «isto assim também é melhor, quando eu quiser vou-me logo embora, não tenho que estar a dar dias à casa». É uma falsa ideia de flexibilização: não corresponde à verdade. Tem de dar os dias como se fosse, na mesma, trabalhador da Auchan, ainda que o seu vínculo seja com outra empresa. É esta conversa que tentam impingir aos trabalhadores – o melhor mesmo é trabalhares através de empresas de trabalho temporário, porque depois é mais fácil, fartas-te e vais-te embora, ficas lá com o nome na empresa de trabalho temporário e a seguir podes ir para outro sítio. 

Esta ideia de que isto é que é fixe, seres jovem e andares a rodar de um lado para o outro sem nunca saberes qual é a tua vida nem qual é a tua condição de trabalho...

Aumentos salariais, valorização das carreiras e negociação dos contratos colectivos. São as três principais reivindicações determinadas pelos trabalhadores. Não te pergunto quais seriam os aumentos justos, os ideais, mas qual é concretamente o objectivo de aumento nesta acção de luta?

Tal como a CGTP-IN, temos a reivindicação, para este ano, de 2022, 90 euros de aumento. Aquilo que projectamos para 2023 são os 100 euros de aumento, ou um mínimo de 10% de aumento no salário. É esta a reivindicação que estamos a apresentar nos sectores, com um foco nas empresas de distribuição (com a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição estamos ainda a negociar a proposta reivindicativa deste ano).

Aquilo que se prevê para 2023, até tendo em conta aquilo que tem sido a especulação e o aumento brutal dos preços dos bens essenciais de que estas empresas da grande distribuição se têm vindo a aproveitar (os próprios trabalhadores conhecem estes aproveitamente, vivem esta condição dupla de serem, em simultâneo, trabalhador e clientes, conhecem muito bem os abusos da especulação) é a preponderância da questão do aumento dos salários.

É essa a questão central para garantirmos uma melhor condição de vida a estes trabalhadores. São trabalhadores (somos, porque eu sou trabalhadora do sector retalhista) de Salário Mínimo Nacional, ou pouco acima, que ao longo destes anos sofreram uma brutal desvalorização das suas carreiras e da antiguidade nas empresas.

Verificávamos, há uns anos, que os trabalhadores mais velhos tinham 70, ou até 100 euros de diferença salarial em relação a quem entrava nas empresas. Hoje em dia temos situações em que quem acaba de entrar recebe o mesmo, ou mesmo mais, do que quem já lá está a trabalhar, por exemplo, há 10, 12 anos. Isto é uma grande desvalorização das carreiras profissionais, dos anos que aquele trabalhador já deu de lucros às empresas, do que já deu da sua vida àquela empresa. 

Referiste, à pouco, a condição paradoxal destes trabalhadores. Ao mesmo tempo que sofrem uma brutal desvalorização do seu poder de compra e vivem com salários estagnados, assistem diariamente a aumentos ininterruptos dos preços, que alimentam lucros recordes...

Muitos deles estão nas caixas e sabem perfeitamente, ao final do dia de trabalho, quanto é que a empresa amealhou durante o seu turno, só naquela loja.

Como é que o CESP olha para os bónus que empresas com lucros milionários estão a oferecer a trabalhadores a quem pagam salários mínimos? Têm saído, com grande alarde, notícias de bónus de 500 euros em cartão da Sonae ou um prémio de 300 euros no Pingo Doce.

Uma coisa é certa. O CESP lançou o pré-aviso de greve e, passado uns tempos, começaram a aparecer estas cenourinhas. 

Nós dizemos cenourinhas, mas não as desvalorizamos. Não desvalorizamos o impacto que 300 euros têm no mês em que um trabalhador os recebe. Com um salário mínimo nacional, ou pouco acima disso... não é de desvalorizar... numa situação difícil, aquele dinheiro pode significar que, naquele mês, o trabalhador já não vai estar tão aflito, se calhar já não vai chegar a meio do mês sem saber o que fazer aos restantes 15 dias.

A questão é que isto é fruto da intervenção e da luta... Eles sabem que têm que dar respostas às exigências dos trabalhadores, senão o descontentamento vai aumentando. Se isto resolve? Não resolve. Os próprios trabalhadores sabem que não resolve, naquele mês estão um bocadinho mais à vontade mas, logo no seguinte, vai ser de sufoco outra vez.

A resolução destes problemas tem de ser através do aumento dos salários. Comemos todos os dias, fazemos compras todos os meses, pagamos as contas todos os meses, não é só naquele mês em que vem o prémio que temos direito a viver melhor. Temos direito a viver bem o ano inteiro, não só quando as empresas decidem dar bónus.

Não é fora do comum este tipo de situações surgirem quando avançamos com avisos de greves, para tentar desmobilizar.

O Governo PS acaba por cumprir o mesmo papel...

Ainda agora, com pompa e circunstância, o Governo veio anunciar uma medida de apoio extraordinário de 240 euros para mais de um milhão de famílias que vivam em situação de carência. A grande questão é: por que raio mais de um milhão de famílias vivem nestas condições, a maior parte dele vive com salário mínimo nacional.  

Quais são as situações mais comuns para trabalhadores a passar por sérias dificuldades?

Aquilo de que nos vamos apercebendo é que trabalhadores destes sectores, comércio e distribuição, já começam a cortar na alimentação. É completamente vergonhoso ter trabalhadores que abdicam da alimentação, comecem a criar a insuficiências alimentares, simplesmente porque não tudo dinheiro para tudo. Não pode ser... num sector de muitos milhões, não podemos aceitar esta ideia de que as empresas também estão em dificuldades, os trabalhadores é que já estão a passar por muitas dificuldades.

Cartaz do CESP, sobre a greve no comércio de dia 24 de Dezembro de 2022 Créditos

O dia 24 precisa mesmo de ser uma afirmação, por parte dos trabalhadores, de que não aceitam apenas sobreviver. Lutamos, mesmo, pelo direito a viver com condições, com dignidade, seja em matéria de salários e de tempo.

A realidade é esta. Tu não consegues cortar na água, não consegues cortar na luz, com o aumento das prestações da casa não podes simplesmente dizer: «não aumentem porque não tem dinheiro para pagar...». No final, aquilo de que podes abdicar, onde não vais gastar tanto, é na alimentação, começar a cortar na cenoura, no peixe, na carne. É inadmissível, em pleno século XXI, ter trabalhadores para quem, infelizmente, isto é uma realidade.

Precisamos que esse sentimento de injustiça, de indignação, tenha expressão no dia 24. É a forma de garantir que na próxima negociação do contrato colectivo de trabalho, em que o sindicato vá à mesa de negociações, possamos dizer aos patrões: ou a atitude muda, ou a resposta às reivindicações muda, ou então isto só se vai intensificar, porque não dá para viver assim. Isto já não é viver e os trabalhadores têm direito a viver com dignidade.

Em que aspectos se podem valorizar as carreiras neste sector? Mencionavas a questão da antiguidade

Primeiro, é preciso haver diferenciação. Defendemos os 850 euros para Salário Mínimo Nacional mas, depois, dentro da empresa, tem de haver diferenciação salarial. Isso hoje não existe.

Muitas destas empresas têm (muito através da luta e da mobilização) aumentado os salários todos os anos, o problema é que são aumentos com base em critérios discriminatórios, meritocráticos, e que não são aplicados de igual forma a todos os trabalhadores. Há trabalhadores, com muitos anos de casa, a receber o salário Mínimo nacional, às vezes até a receber menos do alguém que acabou de entrar na empresa.

Isto, de facto, não valoriza nada as carreiras e as categorias profissionais, sendo que a forma de corrigir isso é criar algum distanciamento. Não é quem entra a receber mais que está errado! Não é, até entram a receber muito pouco (porque infelizmente os nossos salários não são suficientes para a habitação, para as contas, para todas as despesas que temos). Quem está mal não é quem entra já com um salário superior, o problema é que as empresas fazem isto de uma forma que não é inocente, fazem-no propositadamente, até para ir desgastando quem já está há mais tempo na empresa.

É algo que se vê muito nestes sectores? A tentativa de afastar as pessoas à medida que vão envelhecendo.

Na grande distribuição acontece, mas no retalhista... Então em grandes grupos como a Inditex [Zara, Pull&Bear, Massimo Dutti, Bershka]... À medida que vais ficando mais velha, ou se engordares, se já não estás na tua forma de jovem, como é o protótipo do que eles acham certo para a rapariga para vender, vais para o armazém... 

Isto acontece, infelizmente. Acontece muito. Parece surreal, em pleno século XXI.

Uma greve na véspera de natal não pode chocar algumas pessoas?

Nós já fizemos greve na altura do Natal. Não temos qualquer tipo de problema se alguém, ou alguéns (permitam-me a expressão), possa vir a achar que há algum aproveitamento. Porque, de facto, estes trabalhadores têm que aproveitar! Estas lojas estão abertas praticamente todo o ano, com horários completamente desregulados, violam tudo o que é lei ou o que está definido em contratação colectiva em relação à organização dos tempos de trabalho... Então a pandemia veio trazer um aproveitamento nas lojas... uma coisa brutal. 

Os trabalhadores recebem mensagens no WhatsApp, a trocar o horário de trabalho do dia seguinte. É impossível para um trabalhador organizar a sua vida... um administrativo que trabalhe de segunda a sexta-feira consegue chegar a Janeiro e planificar a sua vida em termos de férias: ‘vou aproveitar estes feriados’, ‘vou tirar férias aqui’... Mas os trabalhadores deste sector não sabem o seu horário para a semana, às vezes não sabem sequer o horário do dia seguinte. Isto é vergonhoso e viola todos os direitos que estão consagrados em matéria de contratação, até de Código do Trabalho! 

A estes trabalhadores quase lhes é retirado o direito a ter uma vida. A ter tempo para si, vida pessoal, amigos, família. Se alguém pode achar que é um aproveitamento... pois os trabalhadores que aproveitem mesmo o facto de haver greve no dia 24 para estar com a família, porque as empresas, ao longo do ano, lhes roubam esse tempo. Quando falamos em família não é só questão dos filhos, é ter direito a ter amigos, ir ao cinema, fazer aquilo que lhes dá na gana, sem estar no tempo do patrão. Aquilo que é da minha vida.

As empresas insistem em estar abertas o máximo de tempo possível?

Na pandemia veio a verificar-se muito isto: a tentativa constante dos patrões desregularem mais os horários, seja através da tentativa de implementar os bancos de horas, de retirar o valor do trabalho suplementar, de tentar sempre desorganizar mais e retirar o tempo que os trabalhadores têm para si.

Porque é que estas empresas que têm de estar abertas neste dia [véspera de Natal]... estão abertas praticamente todo o ano, em centros comerciais o Continente está aberto até a meia-noite, que é uma coisa de loucos! Quem vai fazer compras às 23h de dia 24? A pandemia mostrou isso, o horário mais reduzido não levou ninguém a passar fome, as pessoas adaptam-se aos horários. 

Portanto, é um dia em que estas empresas não têm que estar abertas. É só mesmo a ganância do lucro, de fazer mais dinheiro, não é mais nada para além da ganância do lucro! Neste dia os trabalhadores têm direito a ficar em casa com a família. Se não vão ver os parentes que estão na terra há muito tempo, porque não conseguem, nem sabem, os horários que têm nos dias seguintes, pois que o façam. Durante todo o ano estarão a trabalhar sob ritmos de trabalho intensos, de uma exploração que é uma coisa incrível, pois que o aproveitem.

Não estamos a falar de pessoas que trabalham em hospitais, esses trabalham para um sector essencial para a nossa vida. Ninguém morre se o supermercado estiver fechado umas horas, ou um dia.

Quais são as expectativas? O agravar das condições de vida dos trabalhadores perspectiva uma maior adesão?

Aquilo que vem do nosso trabalho, que estamos a realizar nas várias regiões, do contacto que estamos a fazer com os trabalhadores, é que haverá uma boa perspectiva de adesão à greve.

A malta está descontente, e é normal que assim esteja: seja pela questão dos salários, dos horários. A perspectiva para 2023 não é boa, sabendo tudo o que vai aumentar com os salários estagnados...

O mais surreal disto tudo é o sindicato ainda ter de ouvir coisas como também há «dificuldades dos patrões» de grupos como a Inditex, detido por um dos homens mais ricos do planeta, parece que estão a gozar com a nossa cara. Nós dizemos sempre: «de facto há dificuldades, os trabalhadores passam muitas dificuldades»... 

A greve é, também, uma oportunidade para afirmar, junto dos patrões e do Governo, que as coisas têm que mudar! Nós já vendemos a nossa força de trabalho, e ela é muito mal paga, tem que haver um aumento dos salários e as coisas têm que mudar.

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