Não questionando o carácter positivo de algumas das medidas constantes do acordo sobre formação profissional, a verdade é que, no essencial, o Governo evitou qualquer proposta que criasse o mínimo de polémica junto das confederações patronais, nunca lhes exigindo o mínimo de comprometimento com a resolução de alguns dos mais graves problemas que explicam a contínua desvalorização das competências profissionais pelo patronato nas empresas. Ao invés, o Governo exigiu aos sindicatos que fossem coniventes com importantes promessas ao patronato, visando o reforço da formação profissional como um negócio, à custa do estado e dos contribuintes.
Nenhuma das propostas, que obrigavam estado, patrões e sindicatos, foram aceites no texto. As medidas que dependeriam de um acordo entre todos os intervenientes, e que representariam um avanço na direcção certa e um compromisso político que fosse para além dos que já haviam sido assumidos pelo governo, nenhuma foi aceite. Esta dualidade de critérios do Governo, só por si, justifica a rejeição do acordo pela CGTP-IN.
«o Governo exigiu aos sindicatos que fossem coniventes com importantes promessas ao patronato, visando o reforço da formação profissional como um negócio, à custa do estado e dos contribuintes»
O conteúdo deste acordo nunca poderia servir para valorizar as competências, as qualificações e as profissões, nem para representar um ponto de viragem em relação a um passado de desaproveitamento de fundos e de conhecimento, que foi e continua a ser absorvido pelos países nossos concorrentes.
Em termos muito concretos, este acordo só logra atingir um objectivo: a boa vontade dos patrões em relação às políticas públicas de formação profissional, a troco de mais recursos para as associações patronais. Não se percebe bem o que é que justificou o quê, mas percebe-se que, para atingir o que de positivo contém, não seria necessário acordo algum.
Não tenhamos ilusões nem sejamos ingénuos! Não existe uma única medida positiva no acordo que não estivesse já sinalizada (nomeadamente pela CGTP-IN) ou que dependesse do mesmo para se materializar.
Em regra, as medidas consideradas positivas dizem respeito a dimensões como o funcionamento, coordenação e articulação do Sistema Nacional de Qualificações, da formação profissional e seu financiamento. Ora, a concretização de qualquer um destes vectores depende mais de vontade política – estando os problemas diagnosticados desde há muito – do que de qualquer acordo formal para a formação profissional. Para mais quando o designado acordo mais não é do que uma espécie de lista de recomendações e tarefas a cumprir exclusivamente pelo Governo, não se encontrando uma única medida que se destine a ser assegurada ou financiada pelas associações ou entidades patronais.
Acresce que a esmagadora maioria das recomendações constantes do texto já estão em curso e têm de ser aplicadas por força da legislação europeia, dos acordos do estado português com a OCDE, do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, do Plano Nacional de Reformas e do Plano de Recuperação e Resiliência, entre outros instrumentos, designadamente: activação do sistema ECVET – sistema de créditos formativos; EQAVET – sistema de qualidade na formação e ensino profissional; a orientação profissional e para qualificação; monitorização e avaliação das políticas activas de emprego; revisão e relançamento do Catálogo Nacional de Qualificações (já em curso há meses); dinamização dos Conselhos Sectoriais para a Qualificação da ANQEP; reforço da rede de ensino profissional como preconizam EU e OCDE; a modernização da rede de centros de formação e ensino profissional, como prevista no PRR.
«este acordo só logra atingir um objectivo: a boa vontade dos patrões em relação às políticas públicas de formação profissional, a troco de mais recursos para as associações patronais. Não se percebe bem o que é que justificou o quê, mas percebe-se que, para atingir o que de positivo contém, não seria necessário acordo algum»
É legitimo perguntar, para quê um acordo que apenas obriga o Governo e beneficia uma das partes? Bastaria um programa de promoção da formação profissional. Mas, claro, não ficaria tão bem na foto.
Espanto dos espantos, as propostas foram introduzidas pelo governo, após o encerramento do grupo de trabalho que funcionava no âmbito da Comissão Permanente de Concertação Social, ao abrigo do qual tinham sido realizadas as supostas «negociações, e sem qualquer consulta prévia. Surgiram simplesmente no texto, entre a primeira versão – de Dezembro de 2020 – e a primeira proposta de Acordo, de finais de Março de 2021.
Trata-se de verdadeiras «ofertas» às confederações patronais, as quais, como sempre, legitimam, perpetuam e viabilizam a continuidade do negócio patronal da formação profissional, à imagem do que foi feito em outros 6 Quadros Comunitários de Apoio (do «antigo fundo» de 1986 ao PT2020)[fn]Sobre este aspecto consultar https://www.adcoesao.pt/content/1986-1988-qca-i-ii-iii-e-qren [/fn], com dois resultados diametralmente opostos: enriquecimento do patronato; manutenção das baixas qualificações e dos baixos salários, relativamente à média da UE.
Os mais ferozes críticos do «peso» do Estado na economia, são os que mais o usam como financiador das suas actividades empresariais
Para garantir o acordo das associações patronais, o Governo compromete-se:
1) A estudar a utilização da TSU (Taxa Social Única da Segurança Social) para financiar a formação profissional, mantendo o sistema de apoios a funcionar para além do fecho dos ciclos de financiamento do Fundo Social Europeu, que encerram a cada 7 anos, promovendo-se um hiato que pode chegar a, ou ultrapassar, dois anos de duração, entre o final de um e o início do seguinte.
O país realmente necessitaria de uma solução, a longo prazo, que resolvesse o problema do financiamento da formação profissional, num mundo em que a importância desta frente é crescente e perante um futuro em que a redução progressiva dos fundos comunitários disponíveis, para o nosso país, é inexorável. Mas este financiamento deve ser utilizado para garantir que o Estado prossiga o seu papel constitucional e não para legitimar o fluxo corrente do financiamento patronal, via formação profissional.
2) A estudar benefícios fiscais para as empresas que dão formação aos seus trabalhadores. Ou seja, premiar e pagar às empresas que cumprem os direitos dos trabalhadores, algo que a maioria já deveria fazer, porque está na lei e é um direito. Se premiar alguém pelo simples cumprimento da lei já é algo de questionável, ainda se alarga a novos campos a lógica de subsidiodependência por parte das empresas e das associações patronais. O ranking internacional da competitividade bem demonstra o erro das políticas prosseguidas.
Vale a pena referir alguns dos apoios recolhidos pelas confederações patronais, enquanto entidades intermédias do PT2020, para a formação-acção nas empresas (só acessível às confederações patronais), a saber: os apoios recebidos nas CIF (Candidaturas Integradas de Formação), apenas acessíveis às confederações com assento na Comissão Permanente de Concertação Social e que, neste momento, só as patronais executam; os apoios de formação profissional para associações patronais de âmbito sectorial e regional; os apoios à contratação de estagiários e trabalhadores à procura de primeiro emprego e desempregados de longa duração; ou os apoios para integração nas empresas de doutorados e pós-doutorados.
O rol de possibilidades é imenso e o montante de financiamento a que o patronato tem acesso nestas áreas atinge facilmente as centenas de milhões de euros, sem que, afinal, Portugal consiga sair dos últimos lugares da EU, em matéria de nível médio de qualificações dos seus trabalhadores. É caso para perguntar: é isto que se pretende perpetuar?
3) Facilitar o acesso aos financiamentos, flexibilizando a constituição dos grupos formativos, para que se incremente a capacidade de execução da formação financiada. Tal será conseguido permitindo a mistura de formandos de diversos níveis de qualificação e proveniências sectoriais, em prejuízo da coesão dos grupos e da qualidade da formação ministrada, mantendo o descrédito da formação financiada, mas porventura possibilitando a recolha de mais fundos pelas associações patronais.
4) Como se esta desigualdade ainda não fosse suficiente, o Governo ainda introduziu um apoio no acesso a formação de nível superior, apenas destinado a quadros dirigentes, sócios e administradores das empresas. Ou seja, o apoio que se nega aos trabalhadores no acesso ao ensino superior público vem agora garantir-se apenas ao patronato através de uma medida que tem tanto de elitista como de socialmente injusta. Tudo isto com a conivência da sempre «bem-comportada» UGT.
«o acordo falha em garantir que todos os trabalhadores têm acesso à formação profissional, independentemente dos horários de trabalho praticados, situação que afecta os trabalhadores por turnos, nocturnos e com horários desregulados, ou ainda os trabalhadores com vínculo precário, desarredados de políticas empresariais de investimento nas suas competências»
Tão rico em ofertas, o acordo é totalmente omisso em questões fundamentais que resolvam os gravíssimos e perpétuos problemas de desigualdade no acesso à formação profissional e que, na prática, funcionam como um filtro social que distingue entre qualificados e menos qualificados, melhorando a situação dos primeiros e mantendo o drama dos segundos.
Desde logo, o acordo falha em garantir que todos os trabalhadores têm acesso à formação profissional, independentemente dos horários de trabalho praticados, situação que afecta os trabalhadores por turnos, nocturnos e com horários desregulados, ou ainda os trabalhadores com vínculo precário, desarredados de políticas empresariais de investimento nas suas competências. Falha também, em garantir que todos os trabalhadores tenham a possibilidade de utilizar o crédito de 40 horas anuais, pelo menos num ciclo de três anos (33% ao ano, ao contrário dos 10% actuais), antes que caduque.
O acordo é muito ténue na previsão de criação de uma ponte efectiva entre o Quadro Nacional de Qualificações e a Contratação Colectiva, o que obrigaria a dinamizá-la e a remover os obstáculos actuais existentes. Nenhum compromisso estatal ou patronal se conseguiu a este nível, que seria fundamental para que se gerassem condições que fizessem repercutir nos salários, nas carreiras e nas condições de trabalho, os ganhos de competências e qualificações obtidos. Ao que se constata, nada mudou, patrões e governo continuam a querer mais qualificações, mais produtividade, mas os mesmos salários. A não ser que pague o Estado, claro.
Outra das lacunas, tem a ver com a falta de reforço da garantia da obrigação patronal de conciliar os horários de trabalho com as soluções de formação que os trabalhadores tenham ao seu dispor. Para tal deveria prever-se a alteração e fortalecimento do estatuto do trabalhador estudante. Tudo isto porque pode haver muito dinheiro, mas se as condições nos locais de trabalho se mantiverem, uma importante faixa de trabalhadores, não apenas continuará sem qualquer incentivo, como continuarão á margem do acesso à formação e qualificação profissional.
Como se poderia aceitar que 90% dos trabalhadores, em cada ano, não tenham acesso à formação e que, entre estes estejam, precisamente, os que mais dela necessitam? Como aceitar que os trabalhadores por turnos e com trabalho nocturno não tenham acesso à formação, porque não lhes serem proporcionados horários para o efeito? Como aceitar que os trabalhadores com vínculo precário continuem repetidamente num ciclo de desqualificação e insegurança, perpetuado pela falta de acesso à formação? Como aceitar que a formação se transforme num negócio, perpetuando as baixas qualificações, consumindo recursos e mantendo a baixa competitividade das empresas, o qual é continuamente legitimado por um acordo deste tipo?
Em conclusão: o acordo apenas serviu para onerar o estado e os contribuintes, para que as associações patronais continuem a sorver recursos que deveriam servir para qualificar os trabalhadores.
Eis porque este acordo não serve os trabalhadores e foi rejeitado pela CGTP-IN.