O trecho abaixo encontra-se na parte final e conclusiva do livro, Anatomia do Fascismo (2004), do historiador estadunidense, Robert Paxton. Um dos mais profícuos estudiosos do fascismo da segunda metade do século XX, um intelectual declaradamente do campo liberal (social-liberal), portanto, insuspeito de simpatias as ideias marxistas ou do projeto societário comunista. Introduzo essa contextualização para que os mais aguerridos liberais/conservadores, anticomunistas e antimarxistas, não disparem a pensarem ou dizerem impropérios. Nesse sentido, leiamos este alerta de Paxton com a atenção, a fim de refletirmos acerca da conjuntura que estamos a passar:
«Os fascistas se aproximam do poder quando os conservadores começam a tomar emprestado suas técnicas, apelar a "paixões mobilizadoras" e a tentar cooptar suas hostes. [...] na forma de aliança madura entre fascistas e conservadores.» (Robert O. Paxton)
A constatação histórica do autor nos aponta para uma questão central na atualidade, que temos identificado nos estudos dos movimentos e partidos reacionários, (neo)fascistas ou de extrema-direita, o processo de normalização e integração dessas forças políticas nas contradições da sociedade capitalista. Esta “naturalização” política é transversal a diversos segmentos sociais, mais especialmente aos partidos políticos da direita-moderada (liberal e conservadora) e também por parte da comunicação social (a grosso modo). Nesse sentido, é preciso salientar que grande parte dos líderes políticos e quadros militantes da extrema-direita surgiram do interior dos partidos da dita «direita tradicional». Eles não «caíram» do céu!
Quando analisamos a realidade nacional, observamos que o «não, é não» do atual primeiro-ministro em funções, Luís Montenegro, ao Chega e André Ventura, não passa de um jogo de cenas no que toca à esfera da governação. Visto que, se tratando das políticas, o governo da Aliança Democrática tem caminhado firme num processo de cheganização, consequentemente, de normalização e legitimação do Chega e das suas ideias reacionárias e com ares neofascistas – tanto discursiva como práticas política-governativa.
Vamos a exemplos. O governo da AD-cheganizado abraçou a retórica falsa da insegurança generalizada, ou ainda, de reforçar a mentira de que existiria uma relação entre criminalidade e imigração, com objetivo de alimentar e propagar o afeto político do medo (contrariando os diversos estudos e dados). Tal situação não se restringe ao campo discursivo, ganha práticas securitária em diversos aparelhos do Estado. Diante de uma multiplicidade de crises de alta intensidade, fundamentalmente a económica, o bode expiatório, o «causador» dos problemas, o suposto perigo a «civilização ocidental» é o Outro (os imigrantes). Essa retórica chauvinista e racista tem sido presentemente transversal na Europa e nos Estados Unidos da América.
«O governo da Aliança Democrática tem caminhado firme num processo de cheganização, consequentemente, de normalização e legitimação do Chega e das suas ideias reacionárias e com ares neofascistas – tanto discursiva como práticas política-governativa.»
Esse «inimigo» imaginário que o Chega e sucedâneos propagam por todos os dias, que o PSD e CDS têm também fomentando, não são os imigrantes em abstrato, não são os brancos e endinheirados do norte da Europa ou EUA. Mas são aqueles/as imigrantes trabalhadores/as em condições de vida e laborais de elevada precarização e pauperismo, marcados socialmente como os sub-humanos, ou seja, os racializados (negros e não-brancos). Em que pese todos os limites e problemas do «Inquérito às condições de vida, origens e trajetórias da população residente» do INE, temos nesse documento algumas pistas para compreender a realidade socioeconómica em Portugal, especialmente as condições de vida desse novo sujeito político que emerge no espaço público e no universo laboral português.
A imigração nunca esteve desregulada e não é um problema para a sociedade lusitana. A força de trabalho imigrante tem sido decisiva e fundamental para muitos setores da economia portuguesa (produtivos e dos serviços). Se seguirmos a metodologia do último relatório da imigração (2023, p. 150) e, tendo vista os recentes dados informados pela AIMA que apontam para mais de 1,5 milhões de imigrantes em Portugal, a taxa de atividade ou força de trabalho disponível para o mercado de trabalho pode chegar a aproximadamente 20% de imigrantes – trabalhadores formais, autónomo, informais e afins. O que essa tendência significa? Estamos a viver e observar uma transformação social e económica significativa no país, portanto, a imigração tem se tornado uma questão e a direita quer transformá-la num problema para capitalizar politicamente.
Saliento uma contradição gritante. Para efeito de comparação de longa duração, na história moderna e contemporânea, Portugal contribui como uma das maiores participações em termos relativos dos movimentos migratórios da Europa (colonização e exílio político, etc.). Entre o início da Guerra Colonial e o fim da ditadura fascista, de 1960 e 1974, emigraram 1,5 milhões de portugueses, o mesmo número de pessoa imigrantes no país hoje. Não nos faltam relatos dos emigrantes portugueses que são discriminados noutras «regiões mais brancas» (contem ironia!).
«Estamos a viver e observar uma transformação social e económica significativa no país, portanto, a imigração tem se tornado uma questão e a direita quer transformá-la num problema para capitalizar politicamente.»
Voltemos a cheganização da sociedade em Portugal, é o que categorizado na historiografia como processo fascistização. O ministro da Presidência, Leitão Amaro, é a figura pública-governativa que mais tem vocalizado a cheganização do governo da AD, bem como faltado com a verdade de várias formas – mentiras e desinformação. Uma das “falas” mais significativas tem sido a afirmação que imigração estava/está descontrolada, a fim de justificar os imensos problemas que o SEF passou para AIMA, em termos de documentação da população imigrante. Outra mentira, que Portugal teria maior percentagem de imigrantes da Europa – reforçando a retórica neofascista da «grande substituição». Uma das mais graves, do ponto de vista da legitimação do discurso reacionário e chauvinista do Chega e do trumpismo, foi a peça de propaganda eleitoral do sábado, 3 de maio, quando anunciou que 4500 imigrantes que estão ilegais receberam a notificação para deixar Portugal ou serão expulsos/deportados, sendo só os primeiros dos 18 mil. Qual é a necessidade desse tipo de anúncio?
Ao repetirem que a imigração estaria desregulada e que precisa controlo para «humanizá-la» (não passa de cinismo), os conservadores/liberais estão a recorrer a uma falácia como arma de luta política, em que os originais propagadores e mobilizadores são os neofascistas ou a extrema-direita (como gostam de dominar os cientistas políticos). A mais perigosa das alianças não é a governamental, mas aquela que visa construir uma hegemonia social sustentada no racismo, reacionarismo, chauvinismo e com cores fascistas. O século XX europeu está repleto de exemplos para não repetirmos.
Retomei um pensador liberal (de raríssima estirpe), para além do consistente trabalho de sistematização das práticas fascistas e as suas cinco fases, o mesmo aponta para um ponto central que os estudos marxistas têm salientando, desde o fascismo histórico até as possibilidades do neofascismo, que o regime liberal-capitalista é a face das classes dominantes quando elas não estão com medo e que o fascismo seria quando elas estão amedrontadas, diante de crise económico-social e política de alta intensidade. Portanto, a fascistização (cheganização) de setores da direita conservadora-liberal tem lastro histórico, não algo «anormal».
Dizer que enfrenta o fascismo, mas não luta contra o capitalismo, é o mesmo que enxugar gelo, pois chegará o momento em que serão absorvidos ou fundidos com o projeto político fascista e sucedâneos.
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