As eleições legislativas de 18 de Maio de 2025 não representam, ao contrário do que possa parecer, um ponto de ruptura, mas antes o aprofundar de um percurso que vem sendo trilhado há anos – um caminho onde a governação do Partido Socialista, especialmente durante os seus últimos dois anos com maioria absoluta, contribuiu decisivamente para agravar as desigualdades entre quem tem muito e quem mal tem o suficiente, preparando o terreno fértil onde agora floresce a viragem à direita. A AD, o Chega e a Iniciativa Liberal registaram subidas significativas, mesmo quando são precisamente as políticas que estes partidos defendem – de austeridade disfarçada, desregulação laboral e fragilização do Estado Social – que estão na origem do descontentamento popular.
A subida da direita ocorre, paradoxalmente, num momento em que o país ainda sente na pele os efeitos do empobrecimento promovido por essas mesmas orientações políticas em ciclos anteriores. Pior ainda, o primeiro-ministro Luís Montenegro volta ao cargo envolto em suspeitas de conflito de interesses entre as funções públicas e os seus vínculos empresariais, sem que isso pareça incomodar grande parte do eleitorado que, ao mesmo tempo, clama contra a corrupção dos «políticos».
Como se explica esta contradição? Talvez pela força de uma ideia que a direita soube vender bem: a ilusão do sucesso individual, da meritocracia como justiça, do empreendedorismo como libertação. Uma ideia que promete ascensão social através do esforço pessoal, mesmo quando tudo à volta desmente essa promessa. Para muitas pessoas, porém, essa promessa soa mais concreta e esperançosa do que o discurso da solidariedade ou da justiça social.
Muito embora continuem a viver na precariedade, sem habitação digna, sem tempo para viver ou ver os filhos crescer, exploradas nos locais de trabalho, isoladas na solidão de um quotidiano atomizado, essa perspectiva de singrar individualmente continua a dominar. E é precisamente aí que devíamos parar, olhar para o que está à nossa volta, pensar que, por muito que nos repitam que o caminho é em frente, há alturas em que avançar sem ver é cair no mesmo buraco onde caímos ontem.
«A subida da direita ocorre, paradoxalmente, num momento em que o país ainda sente na pele os efeitos do empobrecimento promovido por essas mesmas orientações políticas em ciclos anteriores.»
A raiva cresce, sim, mas em vez de dar lugar a um grito colectivo, transforma-se em murmúrio desconfiado, apontado aos lados e nunca para cima. Vira-se para os imigrantes, para os pobres, para os mais frágeis. É uma raiva sem bússola, sem consciência de quem lucra com a divisão.
Do outro lado, a esquerda perdeu terreno. O PS perdeu 400 mil votos, o BE 150 mil, ficando reduzido a uma deputada. A CDU perdeu 20 mil votos, mas conseguiu contrariar, mais uma vez, as sentenças que ditavam o seu desaparecimento. O pequeno crescimento do Livre (50 mil votos) não chega para compensar esta hemorragia. E a abstenção, ainda que menor que em anos anteriores, continua alta: menos 200 mil pessoas votaram do que em 2024. A desmobilização é real. E não é apenas eleitoral — é social, cultural, comunitária. E a pergunta que se impõe, se quisermos ouvir mais do que o ruído de fundo dos telejornais que alimentam a desorientação geral, é simples: onde estamos nós quando não estamos em lado nenhum?
A resposta não está em fórmulas mágicas, mas em algo mais exigente: assumir militâncias a sério. Assumir que é necessário sacrificar o aparente conforto do individualismo para recuperar a força da vida em comunidade. Que talvez o sacrifício maior seja abdicar de ver o mundo como um espelho de desejos, para vê-lo como ele é: desigual, injusto, mas transformável.
É preciso voltar aos clubes recreativos, às associações desportivas, às comissões de festas dos bairros, às associações de estudantes, às actividades das juntas de freguesia, aos sindicatos. É preciso assumir responsabilidades nos partidos. Se não estamos envolvidos em nenhuma destas esferas, onde pensamos que podemos ir disputar o mundo? É urgente participar, construir, discutir, como nunca. Um primeiro passo é levar a sério as autárquicas que se aproximam e pensar o direito à cidade, à habitação, à mobilidade, à cultura, como campos de disputa e não como serviços que nos são – mal – entregues de cima para baixo.
Sabemos que é mais fácil não fazer nada, e que há dias em que até levantar a cabeça parece um esforço inútil. Mas talvez valha a pena recordar que o 25 de Abril, de que agora se celebram 51 anos, não foi feito por quem esperava sentado, nem por aqueles que diziam que só estava mal quem se metia em política. Pelo contrário. Foi feito por quem acreditou que o impossível era apenas aquilo que ainda não se tentara com força suficiente e organização eficaz. Ou, por outras palavras, para quem a constatação das injustiças era suficiente para não conseguir viver de outra maneira.
Temos de nos empenhar, sim, mesmo que isso nos custe tempo, espaço, sossego, até alguma paz doméstica que por vezes confundimos com felicidade, mesmo que nos estrague os planos de ficar no sofá a ver séries sobre revoluções que não fizemos. Temos de nos envolver, meter as mãos e as cabeças naquilo que se constrói com os outros, porque no fim – e não é preciso chegar muito longe para perceber isso – teremos mais a ganhar na partilha imperfeita do quotidiano do que na solidão arrumada do conforto individual. E se alguém nos perguntar se ainda vale a pena lutar, se ainda se justifica este esforço, esta teimosia de querer mudar o mundo quando tudo parece já decidido e perdido, talvez possamos devolver a pergunta, não como desafio, mas como convite simples e sem artifícios: e se começássemos por tentar? O mínimo que cada um pode dar tem que ser mais do que nada, e aí, com certeza, será suficiente.
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