Trabalha em Portugal desde 1988. Coimbra foi amor à primeira vista e ensinou várias gerações a falar russo. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, o seu carro foi atacado com ovos e a filha recebeu avisos por telefone. Foi o prólogo das várias acusações que saíram a público num artigo publicado por dois cidadãos ucranianos nos jornais. De um dia para o outro, Vladimir Pliassov viu o seu contrato a título gracioso cessado por decisão do reitor da Universidade de Coimbra sem qualquer inquérito. O professor defende-se dizendo que nunca fez propaganda nas suas aulas e que isto é mais um caso de russofobia.
A entrevista é do jornalista Bruno Amaral de Carvalho, em exclusivo para o AbrilAbril.
Como é que se dá o primeiro contacto com a língua portuguesa?
Começou na faculdade. Fui um dos primeiros alunos a aprender português. Depois, mandaram-me para África porque havia acordos com países em vias de desenvolvimento. Outros foram para a Europa mas, como eu não era membro do Partido Comunista, não tive essa escolha, eu nunca estive na primeira trincheira ideológica. Fui para Moçambique. Queria ir para Angola mas a minha esposa escolheu Moçambique. Entretanto, o contrato não foi renovado e voltei para Moscovo.
«Nunca os vi na vida. No jornal Público fizeram a pergunta sobre como é que diziam que eu fazia propaganda se nunca tinham assistido às minhas aulas. Responderam que não era preciso, que bastava passar perto do centro. Uma das acusações era haver, na parede, fotografias do Kremlin, que é património da UNESCO.»
Creio que foi em Março ou Abril de 1988 que participei num encontro das associações de amizade com a União Soviética, com a participação de Valentina Tereshkova [primeira mulher no espaço], onde estava António Avelãs Nunes, que assinou um acordo entre as duas partes. Valentina Tereshkova pediu-me para traduzir e depois disse-me que devia ir para Portugal. Eu queria ir para Angola ou Moçambique. Mas acabei em Portugal. A cosmonauta lançou-me para Portugal.
Quando cá cheguei, não queria ficar em Lisboa. Queria uma cidade mais pequena e quando cheguei a Coimbra foi amor à primeira vista. Comecei, então, a dar aulas na Associação de Amizade Portugal-URSS e, depois, o professor Avelãs Nunes recomendou-me à universidade para dar aulas de russo. No período conturbado da perestroika, eu pensei que vinha para trabalhar dois ou três anos e que regressaria à Rússia quando tudo acalmasse. Isto foi em 1988.
Estou aqui muito bem, eu escolhi Portugal para viver e não para ganhar dinheiro. Para ganhar dinheiro seria noutro país, não Portugal. Os meus amigos que trabalham na Áustria e na Suíça ganham cinco vezes mais do que eu e trabalham muito menos.
Em 2012, funda o primeiro centro dos estudos russos da península ibérica na Universidade de Coimbra com o apoio da fundação Russky Mir. Alguma vez esta fundação tutelou o seu trabalho do ponto de vista político ou alguma vez se sentiu pressionado para defender politicamente os governos russos nas suas aulas?
Claro que não. Em 2007, havia problemas económicos na faculdade e propuseram-me reduzir o contrato a 60% ou ir embora. Decidi continuar a trabalhar lá, recebendo menos, porque havia muitos alunos a quererem aprender russo. Depois, em 2009, fui a Moscovo e quis falar com alguém que pudesse ajudar. Ouvi falar na fundação Russky Mir. Expliquei-lhes todo o meu trabalho em Coimbra e como eles estavam a abrir centros em todo o mundo pensei que poderiam abrir também em Coimbra, até porque já havia todas as condições. Só precisava de financiamento.
Em 2011, um representante da fundação apareceu em Coimbra, na universidade, e foi assinado um acordo de colaboração. No ano seguinte, foram feitas todas as obras necessárias e recebemos os livros. Tudo o que estava no centro foi comprado com dinheiro da Russky Mir e a fundação passou a enviar uma verba à universidade. A minha situação económica melhorou porque passei a trabalhar a 100%. Eu quase não tinha dinheiro para pagar a renda da casa, nem tinha dinheiro para alguma eventualidade. Mas os programas letivos foram todos feitos aqui, por mim, e os relatórios do meu trabalho eram apresentados ao conselho científico do departamento das línguas e culturas.
É verdade que quando surgiu esta polémica já não havia o apoio da fundação Russky Mir?
Este apoio de financiamento existiu entre 2012 e 2021. No ano letivo, 2022 já não tivemos nada. Dois meses antes do início do conflito, já não havia qualquer ligação. Aliás, a fundação enviou mais dinheiro do que era necessário e a universidade queria devolver essa verba. Não sei se devolveram ou não. Nunca perguntei e não me interessa.
E alguma vez abordou a questão da guerra nas suas aulas?
A questão da guerra nunca foi tema das aulas. Nunca. Mas, naturalmente, às vezes era obrigado a responder a perguntas dos alunos.
Mas não houve alunos a acusá-lo de fazer propaganda pró-Putin?
Não, mas num jornal de Maio li que um ucraniano afirmou que um português lhe tinha dito que eu fazia propaganda. Perguntei aos meus alunos se sabiam de alguma coisa. Responderam que não sabiam de nada. Também houve quem dissesse que eu era um agente do KGB. Mas um agente não vive como eu.
Você conhecia estes dois cidadãos ucranianos que o acusam agora?
Nunca os vi na vida. No jornal Público fizeram a pergunta sobre como é que diziam que eu fazia propaganda se nunca tinham assistido às minhas aulas. Responderam que não era preciso, que bastava passar perto do centro. Uma das acusações era haver, na parede, fotografias do Kremlin, que é património da UNESCO. É curioso porque até 2015 havia imagens de Moscovo na parede feitas pelo então diretor da Faculdade de Letras, Carlos André, numa viagem à capital russa.
E o que tem a dizer sobre as acusações?
Quais? São tantas…
Acusaram-no de expor fotografias de Eduard Limonov, de Zakhar Prilepin, também de oferecer fitas com as cores de São Jorge…
Para nós, as fitas de São Jorge são símbolos da memória, de respeito, de reconhecimento daqueles anos da Segunda Guerra Mundial, da libertação do fascismo. Nós usamos essas fitas só no dia 9 de Maio e eu, na Faculdade de Letras, distribuí essas fitas entre 2010 e 2016 porque, depois, deixei de recebê-las. Só em 2017 é que essas fitas foram proibidas na Ucrânia.
Em relação a haver nomes com Transcarpatia e [República Popular de] Donetsk foram os meus alunos que escolheram como forma de identificação em alguns trabalhos. Um deles era da Transcarpatia e preferiu meter Transcarpatia e não Ucrânia. Outra era da Ucrânia mas identificou-se como sendo da República Popular de Donetsk. Um aluno meu da América Latina identificou-se enquanto italiano. Perguntei-lhe se era italiano e explicou que os pais são italianos assim como os avós. Nunca escolhi nem sugeri nada disto.
E o cartaz com 66 escritores?
Estes escritores foram escolhidos para serem conhecidos, para dar conhecimento, mas alguns deles não têm sequer obras traduzidas em português. No caso dos retratos dos primeiros 20 anos do século XXI, falei, entre outros, de Limonov e Prilepin cerca de um minuto ou dois. Estes dois autores fazem parte do panorama literário russo do século XXI.
Trabalha a título gracioso enquanto professor reformado. Porque é que o faz?
Havia estudantes interessados mas nem todos tinham a possibilidade de pagar. Tenho um contrato gracioso assinado como outros professores. Não sou caso único.
Como soube da cessação do contrato?
«Também foi atacado o antigo diretor do Conservatório de Coimbra, Manuel Pires da Rocha, por ter participado num evento da Associação Iuri Gagarine [no Dia da Vitória]. Acusam-no de ser pró-Putin. É uma situação triste.»
Recebi uma mensagem dos serviços centrais onde me informaram do efeito imediato. Eu não percebi. Imprimi e fui ao gabinete do diretor da faculdade. Perguntei-lhe o que era aquilo e ele respondeu-me que também não sabia. Depois, esteve com o reitor e veio ter comigo. «Vladimir, entregue-me as chaves. Não pode entrar mais no centro», disse-me. Podia entrar na faculdade mas não no centro dos estudos russos. Cortaram-me o acesso à plataforma digital interna, também ao correio eletrónico. E eu não compreendo porque há muitos professores aposentados que continuam a usar o endereço eletrónico da faculdade.
Portanto, não houve qualquer inquérito, ninguém o tentou ouvir, ninguém dos serviços o contactou para ouvir a sua versão dos factos?
Não, por isso é que estou surpreendido, como é possível? Tem de se ouvir as duas partes. Até os nazis tiveram direito a serem ouvidos [no tribunal de Nuremberga].
Chegou a falar com o reitor?
Eu queria falar mas o diretor da faculdade disse-me que não valia a pena, que ele não ia mudar de opinião.
Vai recorrer aos tribunais?
Por agora, não. Há uma petição pública, há também na faculdade [uma petição de professores], vamos ver o resultado. De qualquer forma, não quero nada com este reitor. Não quero voltar. Se me tratam assim…
Disse que há abaixo-assinados a decorrer. Também há artigos em diferentes jornais condenando a forma como foi cessado o seu contrato. Tem recebido muitas mensagens de solidariedade?
Mensagens e chamadas. Falo muitas horas ao telefone por dia. Eu nunca antes li a imprensa portuguesa como agora. Eu acho que esta ação contra mim foi muito bem planificada porque aconteceu no dia 9 de Maio [Dia da Vitória soviética sobre o nazismo]. Saiu aquele artigo, depois as declarações de Milhazes. Ele e aqueles cidadãos ucranianos fazem isto porque sabem que agora é o tempo em que podem dizer o que lhes apetecer que ninguém os vai condenar. Também foi atacado o antigo diretor do Conservatório de Coimbra, Manuel Pires da Rocha, por ter participado num evento da Associação Iuri Gagarine [no Dia da Vitória]. Acusam-no de ser pró-Putin. É uma situação triste.
Têm sido noticiados vários casos de ameaças. A comunidade russa sente medo?
Medo não temos, mas temos preocupação com as nossas vidas, os nossos filhos. Por exemplo, na primeira escola eslava, em Lisboa, onde estudam ucranianos, russos, uzbeques, etc, começaram a haver problemas, com professores ameaçados; depois um carro de um russo foi pintado com a bandeira ucraniana em Coimbra. O meu carro, também, foi atacado com ovos . Ligaram à minha filha a pedir-lhe para falar comigo para eu tirar as imagens do centro de estudos russos. E a minha filha disse-me que tinha medo do que esta gente me pudesse fazer.