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Bruno Carvalho: «Nenhum jornalista é mais imparcial por esconder as suas convicções»

De regresso do Donbass, onde trabalhou nos últimos meses, Bruno Carvalho falou ao AbrilAbril sobre o papel do jornalista em situação de guerra, os perigos a que se sujeitou e a ausência de pluralidade na comunicação social.

Numa cena do documentário Salvador, Itália (2018), Nanni Moretti entrevista um torturador chileno, preso pelos crimes cometidos durante a ditadura de Pinochet. Sendo confrontado pelo torcionário pela forma tendenciosa como estaria a conduzir a conversa, Moretti, embora dê todo o espaço para o torturador afirmar tudo o que lhe interessa, esclarece rapidamente: Ele, o realizador, o homem, não é imparcial.

 Nanni Morreti não renunciou à parcialidade.

Foi o ponto de partida para a conversa com Bruno Amaral de Carvalho, jornalista que passou seis dos últimos nove meses na região do Donbass, a cobrir os efeitos devastadores da guerra na Ucrânia nestas populações, martirizadas por oito longos anos de guerra civil, bombardeamentos e milhares de vítimas. 

Das fornalhas de Azovstal, em Mariupol, aos massacrados bairros de Donetsk, das movimentações relâmpago das tropas ucranianas e russas na região de Luhansk aos referendos promovidos pelas autoridades pró-russas nas quatro províncias anexadas, Bruno Carvalho não foi apenas o único jornalista português a acompanhar, de perto, a guerra no Donbass. Foi um de poucos jornalistas europeus que se recusou a ceder ao unanimismo prevalente nas redacções.

Um jornalista tem de abdicar das suas convicções para cumprir correctamente as suas funções? O código deontológico exige um trabalho independente, mas nunca imparcial ou que atente contra a consciência do jornalista...

Todas as pessoas têm convicções, incluindo os jornalistas. Eu prefiro o Joe Strummer ao Sid Vicious, gosto mais de García Márquez do que de Vargas Llosa, sou mais Maradona do que Pelé, prefiro Gillo Pontecorvo a Steven Spielberg. Cada um de nós traz um mundo dentro de si.

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Resistência antifascista em Donbass

O novo governo, imposto sem eleições, permitiu que grupos paramilitares fascistas dessem rédeas ao ódio anti-russo e anti-comunista. Milhares de mulheres e homens deram corpo à resistência.

Igreja destruída junto ao aeroporto de Donetsk
Créditos / Bruno Carvalho

Quando se cumpriam quatro anos da rebelião antifascista que se espalhou como pólvora por todo o leste da Ucrânia, atravessei a fronteira através da Rússia num autocarro onde viajavam meia centena de antifascistas de vários países.

Respondendo ao apelo do grupo musical italiano Banda Bassotti, que tocou duas vezes em Portugal na Festa do «Avante!», percorreram durante uma semana os territórios em resistência visitando orfanatos, hospitais, fábricas, sindicatos e autarquias.

No primeiro dia, entre Rostov-sobre-o-Don, cidade russa no Norte do Cáucaso, e a fronteira com a auto-proclamada República Popular de Lugansk (RPL), atravessámos cerca de uma centena de quilómetros de estepe.

Enquanto viajávamos por terras de cossacos, Mitya Dezhnev explicava-me como teve de fugir da sua terra para a Rússia e de como não podíamos deixar esquecer os comunistas que todavia resistiam na Ucrânia controlada por Kiev. «Queres ouvir uma canção que era muito popular no tempo da União Soviética?», perguntou-me em inglês antes de começar num quase perfeito português a cantar o «Avante, camarada!». 

Foi em 2014, uma semana depois do massacre que vitimou cerca de meia centena de pessoas em Odessa, na Ucrânia, que as populações do leste do país se insurgiram contra o golpe de Estado patrocinado pela União Europeia e pelos Estados Unidos que depôs Viktor Yanukovich.

O novo governo, imposto sem eleições, permitiu que grupos paramilitares fascistas dessem rédeas ao ódio anti-russo e anti-comunista. Sem qualquer protecção e ante a ofensiva fascista, milhares de mulheres e homens concentraram-se nas principais praças das localidades insurrectas e deram corpo à resistência.

Primeiro, tomaram as instituições e desarmaram as forças de segurança e, depois, organizaram-se militarmente constituindo milícias antifascistas. Nessa semana, as principais regiões da industrial Bacia do rio Don, conhecida como Donbass, declararam a independência e constituíram-se em dois países: a República Popular de Donetsk (RPD) e a RPL. Depois de pesados bombardeamentos que vitimaram milhares de pessoas, o apoio militar russo foi decisivo para evitar a barbárie e a conquista destes territórios por Kiev.

O cessar-fogo que formalmente se mantém é desmentido na prática pelos sucessivos confrontos na linha da frente. As sucessivas provocações patrocinadas pela NATO continuam a causar vítimas entre os civis que moram em localidades ao alcance da artilharia ucraniana. Empurrados, primeiro pelas perseguições e depois pela guerra, dezenas de milhares de ucranianos continuam exilados na Rússia ou nas zonas sob controlo das forças democráticas.

Neli Zadiraka foi outra das pessoas que conheci nessa condição. É uma das deputadas da sede do poder legislativo da RPL, o Conselho Popular de Lugansk. Foi obrigada a abandonar a sua casa em Rubezhnoe, território da região ocupado pela Ucrânia.

Foi ela que, em 2014, leu a declaração de independência da RPL e, por essa razão, é considerada terrorista pelo governo ucraniano. Neli apontou para a estrela vermelha do brasão da jovem república e explicou-me que se inspira nos símbolos e valores da União Soviética.

Esse foi, aliás, um elemento presente em toda a viagem. Para além da preservação e do respeito pelos monumentos e símbolos, a presença da foice e do martelo é constante. Em conversa com vários habitantes de Lugansk e Donetsk, a chegada do fascismo ao poder na Ucrânia veio reforçar as convicções políticas dos cidadãos de ambas as repúblicas. Mas não é algo recente. Em 2012, nas últimas eleições antes do golpe fascista, o Partido Comunista da Ucrânia conquistou 13,2% dos votos em todo o país.

Em Kiev, obteve somente 7,23% e no ocidente houve regiões em que aquele partido não superou os 2%. Mas no oriente, sobretudo, nas regiões de Donbass, os valores oscilaram entre os 18% de Odessa e os 29,46% de Sebastopol, na Crimeia. Em Donetsk, os comunistas chegaram aos 18,85% e, em Lugansk, atingiram os 25,14% dos votos.

Em Makeeva, cidade vizinha de Donetsk, a organização local do Partido Comunista da RPD organizou uma iniciativa cultural que envolveu centenas de pessoas para receber gente de tantos países, numa cerimónia em que se entregaram os cartões a dois combatentes especiais. Um miliciano vindo do Texas e outro da Colômbia que escolheram atravessar o mundo para abraçar a causa antifascista ao lado dos soldados desta região.

O colombiano decidiu baptizar-se com o nome de guerra Alfonso Cano em homenagem ao comandante histórico das FARC e contou-me que decidiu voluntarizar-se para combater o fascismo em Donbass como parte das suas convicções políticas. São muitos os combatentes internacionalistas que participam nos exércitos das duas repúblicas.

Na companhia de Boris Litvinov, Primeiro Secretário do Partido Comunista da RPD, que foi, aliás, o primeiro a encabeçar o Soviete Supremo da RPD, o novo órgão legislativo daquele país, conhecemos um dos corações industriais da Europa.

Antes de chegarmos a uma das mais importantes minas de carvão da Europa, erguia-se um muro escrito recentemente com spray: «Somos cidadãos da União Soviética». Em 2013, antes do golpe, a Ucrânia produzia 84,8 milhões de toneladas. Três anos depois, esses números baixaram para menos de metade: 41,8.

O objectivo do imperialismo, quando interveio na Ucrânia, não foi apenas levar mais longe as fronteiras da NATO, violando uma vez mais os compromissos assumidos com os últimos dirigentes soviéticos. Foi também controlar um país com importantes recursos, sobretudo na região que agora resiste ao avanço das forças apoiadas pelos Estados Unidos e União Europeia.

Nas últimas semanas, a guerra intensificou-se e muitas das pessoas com que conversei admitem que o governo de Kiev pode estar a preparar uma provocação a larga escala durante o Campeonato Mundial de Futebol. 

Petro Poroshenko, presidente da Ucrânia, acaba de ser recebido em Espanha por Pedro Sánchez, novo chefe do governo, e falava abertamente ao diário El País do falso assassinato do jornalista Arkadi Babchenko como uma técnica necessária para proteger os dissidentes.

Sem qualquer vergonha, acrescentou que há uma campanha russa de notícias falsas para destabilizar o mundo. É este o carácter de um governante que anunciava meses depois do golpe que faria tudo para que as crianças da Ucrânia pudessem ir à escola e para que as de Donbass ficassem fechadas em caves.

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Nenhum jornalista é mais independente ou imparcial por esconder as suas convicções. Por isso é que há um conjunto de ferramentas jornalísticas para contornarmos o mais possível a influência das nossas escolhas no nosso trabalho. Até porque há outros factores no jornalismo que também têm influência nas nossas abordagens aos acontecimentos. Por exemplo, a linha editorial, que depende muito das convicções e dos interesses de quem financia os meios de informação.

Eu nunca escondi as minhas convicções porque sou um cidadão consciente dos seus direitos e disposto a exercê-los também como forma de os defender. Os jornalistas não têm menos direitos do que o resto da população.

Felizmente, tive um grande jornalista como professor que dizia aos seus alunos que o primeiro objectivo de quem trabalha na imprensa deve ser a ambição de mudar o mundo. Nesse sentido, o Oscar Mascarenhas valorizava os alunos que tinham uma vida cívica activa, fosse em teatros, associações desportivas, humanitárias ou políticas. Vivemos num mundo que nos quer impôr a não política. Ou seja, a ideia de que a política deve ser exclusiva dos que exercem cargos políticos e a democracia quer-se fechada nas instituições, com cidadãos cada vez menos activos e incómodos.

Faz-me confusão que haja quem ache que os jornalistas devem abdicar dessa intervenção enquanto cidadãos na vida colectiva. Sobretudo quando houve vários jornalistas que o fizeram. Recordo o caso do Mário Mesquita, do Alfredo Maia, da Carla Castelo e de tantos outros. A Comissão da Carteira estabelece algumas incompatibilidades, não apenas no exercício da actividade política, e apenas cargos a tempo inteiro são incompatíveis com o jornalismo.

Acabaste por te tornar mais notório do que muitas das tuas reportagens. Não é uma posição desconfortável para um jornalista, que supostamente não devia ser notícia?

Isso aconteceu, sobretudo, quando diferentes figuras me atacaram, como a ex-candidata presidencial Ana Gomes, a jornalista Fernanda Câncio, o secretário de Estado João Galamba, a escritora Inês Pedrosa, entre outros. O Correio da Manhã fez eco dessas acusações, assim como a revista Visão. Admito também que, para alguns jornalistas, o facto de eu ser um outsider os tenha deixado desconfortáveis. De repente, alguém que nunca esteve nos principais meios portugueses publicava reportagens no Público e na CNN.

Devido a esses ataques, o Público, com o qual tinha um compromisso verbal, apenas me comprou uma reportagem. Essas pessoas tentaram desacreditar-me e eu não podia ficar calado. Houve acusações, colando-me à ideia de eu que era putinista ou pró-russo, que num contexto de guerra são perigosas. Imagina que eu era capturado pelas forças ucranianas e que esses soldados compravam essas acusações contra mim.

Ainda assim, recebi muitas mensagens de solidariedade de muita gente, incluindo jornalistas, mas o Sindicato dos Jornalistas evitou defender-me. Houve vários jornalistas com muitos anos de experiência que me disseram que nunca viram nada assim.

Naturalmente, tive de assumir publicamente a minha própria defesa, assumindo um destaque que nunca me foi confortável, quando a única coisa que queria era dedicar-me, de forma plena, ao meu trabalho no Donbass.

Porque é que achas que, num estado de direito democrático, com uma imprensa livre e plural, as redacções tenham tomado a opção consciente de rejeitar qualquer investigação a um dos lados de uma guerra na zona do Donbass?

Repara, ao longo de todos estes meses foram vários os jornalistas portugueses e estrangeiros que me contactaram para os ajudar a entrar no Donbass. Eles queriam. Em vários desses casos, as direcções de informação não os deixaram ir. Portanto, há, desde logo, uma intencionalidade em cobrir apenas um lado da guerra, o que deixa a descoberto a excepcionalidade da CNN. Até agora, nas últimas décadas, estes meios sempre tiveram repórteres no lado do invasor. O problema é que agora o invasor não se chama Estados Unidos da América.

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FMJD lança campanha de solidariedade com presos políticos na Ucrânia

No dia 11 de Novembro, assinalar-se-ão 250 dias desde a detenção dos irmãos Kononovich, membros da Juventude Comunista sequestrados pelas forças ucranianas e expostos «a abusos e à tortura». #FreeKononovich já está nas ruas.

Acção da União das Juventudes Comunistas de Espanha, no âmbito da campanha #FreeKononovich 
Créditos

Mikhail Kononovich, primeiro-secretário da União da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, e o seu irmão, Aleksander, foram detidos pelos Serviços de Segurança da Ucrânia no início do mês de Março. A perseguição destes jovens dirigentes comunistas foi apenas um primeiro passo na supressão dos direitos políticos na Ucrânia, por decisão do governo de Volodymyr Zelensky.

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Sequestrados dois dirigentes da Juventude Comunista da Ucrânia

Ainda não se conhece a situação de Mikhail Kononovich, primeiro-secretário da União da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, e do seu irmão, Aleksander, detidos pelos Serviços de Segurança da Ucrânia.

 Aleksander e Mikhail Kononovich, da União da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia 
Créditos / peoplesdispatch

A denúncia partiu da Federação Mundial da Juventude Democrática (FMJD), uma organização, fundada em 1945, que agrega dezenas de movimentos e organizações antifascistas, contra a guerra nuclear e pela defesa da paz, da qual faz parte a União da Juventude Comunista Leninista da Ucrânia, ilegalizada em 2015.

Mikhail e Aleksander Kononovich foram sequestrados pelos Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU), não sendo possível, lamenta o comunicado da FMJD, descartar a hipótese de que tenham já sido assassinados. Foram acusados, sem que nenhuma prova tenha sido divulgada, de serem simultaneamente espiões russos e bielorussos.

Mikhail esteve envolvido nas fortes mobilizações para impedir a privatização de terrenos agrícolas públicos por parte do governo de Volodymyr Zelensky, que permitiria a sua alienação a grupos económicos estrangeiros.

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8 de Março: marcha de mulheres enfrenta neo-nazis em Kiev

Uma manifestação de mulheres e LGBT celebrando o Dia Internacional da Mulher foi atacada por contra-manifestantes neo-nazis no centro da cidade. A manifestação prosseguiu, após intervenção policial.

Aspecto da Marcha das Mulheres em Kiev, Ucrânia, a 8 de Março, por ocasião do Dia Internacional da Mulher. No cartaz pode ler-se «a minha cadela aprendeu a palavra não. E tu?»
Créditos / Informator.ua

O Dia Internacional da Mulher foi celebrado em Kiev com manifestações convocadas por diferentes organizadores mas que convergiram num único desfile que, segundo a agência ucraniana Uniam, levou cerca de um milhar de manifestantes à praça Mykhayliv, no centro da capital ucraniana.

Uma maioria de mulheres mas também alguns homens desfilaram entoando slogans feministas e em defesa da igualdade de género, erguendo a voz «contra a violência doméstica, sexual e psicológica» e exibindo cartazes, em muitos casos artesanais, com palavras de ordem como, por exemplo, «não à violência, assédio, prostituição, violação» e «meu corpo, meu assunto», entre tantas outras. Bandeiras arco-íris do movimento LGBT foram desfraldadas, confirmando a anunciada adesão deste à manifestação.

Na sua página no Facebook, a Marcha das Mulheres afirmou que a iniciativa foi preparada para confrontar «a violência da extrema-direita, a violência doméstica, sexual, económica e psicológica», bem como a pressão e a violência da estrutura patriarcal». Diversos manifestantes expressaram à Uniam o seu apoio à Convenção de Istambul1, em particular à protecção das mulheres da violencia que sobre elas se exerce, da luta pela igualdade de oportunidades epela abolição de estereótipos de género.

Manifestantes atacados, polícia interveio

A manifestação decorreu de forma animada e pacífica mas, à chegada à praça Mykhayliv, a Marcha das Mulheres teve de enfrentar uma contra-manifestação de algumas dezenas de oponentes. Homens e mulheres empunhavam cartazes com palavras de ordem como «Deus! Pátria! Patriarcado!», «o feminismo destrói a família ucraniana», e «o feminismo moderno desfigura a imagem divina da Mulher», e bandeiras das organizações neo-nazis Movimento Tradição e Ordem e Frente Nacionalista Cristã.

Apesar de separados por um impressionante cordão policial, as altercações sucederam-se entre os dois grupos de manifestantes. Algumas tentativas de agressão foram prontamente reprimidas pela polícia e vários extremistas foram presos, com a a agência Tass a informar da sua libertação, pouco depois dos incidentes.

Os participantes na Marcha das Mulheres não desmobilizaram com os confrontos e a manifestação continuou combativa até ao seu final.

Uma boa cobertura fotográfica e em vídeo da marcha do evento pode ser encontrada em notícia publicada pelo sítio Informator (legendas apenas em russo e ucraniano).

Um impressionante dispositivo policial

Depois de, em 2017 e em 2018, as celebrações do Dia Internacional da Mulher terem sido atacadas e interrompidas em diversas localidades da Ucrânia, o governo de Piotr Pososhenko recebeu alertas de governos e ONGs para garantir a impossibilidade de se repetirem os acontecimentos.

Na véspera, 7 de Março, a Amnistia Internacional (AI) chamou as autoridades ucranianas a garantirem que os participantes nos eventos assinalando o Dia Internacional da Mulher seriam protegidos de actos violentos, publicou a Rádio Europa Livre (Radio Free Europe, RFL), um insuspeito meio de comunicação social do governo norte-americano para o Leste Europeu. Na mesma notícia referia-se que Oksana Pokalchuk, a directora do escritório ucraniano da AI, afirmara que as autoridades ucranianas «falharam a adequada protecção» nesses eventos nos últimos dois anos e que tal conduzira a «ferimentos em pacíficos manifestantes».

Não foi a primeira vez que a AI criticou as autoridades ucranianas por falhas no impedimento ou na investigação de «numerosas» violações de direitos humanos cometidos contra activistas, segundo a RFL, em particular sobre os defensores dos direitos da mulher, membros da comunidade LGBT, opositores políticos e minorias étnicas.

Em mês de eleições, Poroshenko não quis arriscar as críticas ocidentais e mobilizou para enquadrar os manifestantes um impressionante dispositivo policial, compreendendo centenas de membros da temida polícia de choque ucraniana.

A elite e os neo-nazis contra os direitos da mulher

A prevenção da AI tinha toda a razão de ser. Apesar de a estação americana não o referir, as semanas que precederam o dia 8 de Março foram férteis em ameaças aos manifestantes, feitas não só pelos neo-nazis mas também por deputados e jornalistas que integram a elite no poder em Kiev. Andrey Manchuk, em artigo publicado no sítio ukraina.ru (em russo), descreveu várias dessas situações.

Segundo Manchuk, «nacionalistas ucranianos» colocaram recentemente online um «vídeo escandaloso», «apelando directamente» a represálias contra os participantes nas celebrações do Dia Internacional da Mulher, em Kiev e outras cidades ucranianas.

No vídeo, os nacionalistas, de cara descoberta por «conscientes da sua impunidade», como sublinha o articulista, afirmam que «as feministas defendem o ódio aos homens e desrespeitam a nossa Pátria e as tradições culturais e religiosas da Ucrânia». Vão mais longe: «uma feminista não é uma mulher, é uma doença».

Na opinião de Manchuk, este verdadeiro «terror anti-feminista» apenas é possível por o establishment político ucraniano ser «extremamente hostil à celebração do 8 de Março», que vê como uma celebração «comunista» e «pró-soviética», hostilidade que estendem à actual Federação Russa, que manteve este feriado, um dos mais importantes no tempo da URSS.

«Quanto ao 8 de Março, penso que cada vez mais ucranianos compreendem que não podemos viver no mesmo ritmo do país agressor. Esta sincronicidade na celebração de algumas datas com um país que está a tentar destruir o nosso Estado enfraquece-nos […], lutamos pela sua abolição», cita Menchuk como tendo afirmado Vladimir Vyatrovich, director do Instituto para a Memória Nacional da Ucrânia. Terá ainda muito a fazer para convencer os ucranianos: segundo Manchuk, uma recente sondagem do Canal 24 terá dado 55% dos ucranianos como desejando que o feriado continuasse a realizar-se «como nas décadas anteriores».

A elite ucraniana é diferente da maioria da população. Iryna Gerashchenko, presidente da Verkhovna Rada (parlamento), escreveu na sua página que «beberia um copo» no dia 8 de Março para «não o festejar». Manchuk considera esta declaração «particularmente chocante»: o Dia Internacional da Mulher é «universalmente considerado um dos mais importantes» eventos celebratórios, «simbolizando o triunfo do progresso social», esta atitude sendo possível apenas «por o país se encontrar num rumo retrógrado» relativamente ao progresso social.

Gerashchenko é membro da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa (Parliamentary Assembly of the Council of Europe, PACE) mas esta democrática instituição europeia, que na sua página inicial apela, por ocasião do 8 de Março, para a necessidade de luta contra a violência sobre as mulheres, deve desconhecer não só as afirmações do seu membro como a verdadeira situação na Ucrânia: uma delegação da PACE, que esteve recentemente no país a convite de Gerashchenko, concluiu que «o ambiente geral da Ucrânia deverá permitir a realização de eleições democráticas».

A agência Uniam junta-se ao coro contando a «verdadeira» história do Dia Internacional da Mulher. Em artigo citado por Manchuk, a agência noticiosa oficial apresenta-o como o «feriado das prostitutas em protesto», que terá sido dirigido por comunistas os quais, mais tarde, «apresentaram as prostitutas às mulheres trabalhadoras». Este «verdadeiro relato» tem sido amplamente reproduzido nas redes sociais, segundo Manchuk.,

Para Elena Suslova, da organização patriótica Centro de Consulta e Informação da Mulher, apenas «cerca de 20 países têm este dia como feriado» e, na sua maioria, são «países que votam nas nações Unidas com a Rússia contra a Ucrânia».

Todo este ambiente, segundo Manchuk, prepara uma «descomunização» do Dia Internacional da Mulher, «privando-o do seu significado original» de luta e «substituindo-o por uma versão festiva tipo “Dia da Mãe”». Processo que se interrompe neste eleitoral mês de Março por os candidatos não quererem alienar os votos de milhões de mulheres e homens que ainda vêm o 8 de Março como um feriado a manter.

Mas a inconveniência da celebração do Dia Internacional da Mulher, para as autoridades ucranianas, vai mais longe do que um simples «complexo anti-soviético». Afinal, conclui Manchuk, cada sua celebração «chama a atenção para a situação das mulheres ucranianas, que mais do que ninguém sofrem com a crise sócio-económica, discriminação e violência» que afectam a sociedade ucraniana enquanto o presidente Poroshenko reúne em Kiev o Fórum Familiar da Ucrânia.

«Elas não podem brindar como Gerashchenko, porque perderam os seus empregos, ou têm de trabalhar por tostões e são forçadas a emigrar», sublinha Manchuk, trabalhando em condições penosas como as «da mulher que, no ano passado, deu à luz numa fábrica polaca e tentou matar o filho na casa de banho». Das que «vivem na zona de conflito no Donbass e caem nas redes de escravatura sexual», das que não «têm possibilidade de dar à luz» e são forçadas a abortar «porque pura e simplesmente não têm meios de manter os filhos». Ou das reformadas «forçadas a viver no limiar da sobrevivência».

A tragédia de todas estas mulheres, conclui Manchuk, mostra a «crescente urgência» de celebrar o 8 de Março na Ucrânia.


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O número de assassinatos com motivos políticos tem vindo a crescer na Ucrânia desde o início da guerra. São exemplo, nos últimos dias, os casos de Maxim Ryndovskiy, um atleta de MMA (artes marciais mistas), torturado e assassinado por um grupo neo-nazi em Kiev, e Denis Kireev, que havia participado, em nome da Ucrânia, nas negociações com a Federação Russa, assassinado sumariamente pelos SBU.

«A FMJD convoca as suas organizações membros, toda a juventude e pessoas de todo o mundo a expor esta situação», exigindo, junto das representações diplomáticas da Ucrânia, por todo o mundo, acção no sentido de travar um possível assassinato, sem julgamento nem possibilidade de defesa, violando os princípios da declaração universal dos direitos humanos.

«​​Liberdade para Mikhail e Aleksander Kononovich!»

Em Portugal, a Juventude Comunista Portuguesa (JCP), filiada na FMJD, denunciou, em comunicado, o «hediondo acto» cometido pelos SBU, exigindo o assegurar da «integridade física dos dois dirigentes juvenis» e o fim «desta criminosa detenção». 

«O caminho da paz, que a juventude e os povos do mundo reclamam, não se faz com o corte de direitos fundamentais nem com mais armas, violência e destruição»​​​​​, argumentam os jovens comunistas, «a solidariedade e ajuda aos povos que sofrem as dramáticas consequências da guerra não pode ser confundida com a legitimação da xenofobia, da violência, da censura e discriminação».

«​​A juventude, e em particular os jovens comunistas ucranianos, que viram o Partido Comunista da Ucrânia ser alvo de um processo de ilegalização em 2015, podem contar com a profunda solidariedade da JCP e dos jovens comunistas portugueses», reafirmando, uma vez mais, a necessidade de pôr termo à guerra.

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Agora, «após meses de abuso, tortura e violação dos seus direitos cívicos num centro de detenção em Kiev, a pretexto de uma falsa acusação com um claro viés ideológico, a única solução é a sua libertação incondicional e o fim da repressão e perseguição política da oposição», defende a Federação Mundial da Juventude Democrática (FMJD).

A campanha de solidariedade, convocada para a próxima semana, tem como objectivo aumentar a pressão social, «à escala global», pela libertação dos irmãos Kononovich, que pertencem a uma organização que integra a FMJD: a ilegalizada Juventude Comunista Leninista da Ucrânia.

«Apelamos a todos os jovens anti-imperialistas e antifascistas que redobrem os seus esforços e a sua solidariedade» nesta campanha. O apelo, dirigido à juventude, sugere a dinamização de acções nas ruas, pressionando «as instituições e embaixadas ucranianas nos nossos países».

Ainda antes da invasão russa, Mikhail esteve directamente envolvido nas fortes mobilizações populares para impedir a privatização de terrenos agrícolas públicos por parte do governo de Volodymyr Zelensky, que permitiria a sua alienação a grandes grupos económicos estrangeiros.

A Federação Mundial da Juventude Democrática foi fundada em 1945, agregando dezenas de movimentos e organizações antifascistas contra a guerra nuclear e na defesa da paz. A Juventude Comunista Portuguesa (JCP) integra a FMJD, em Portugal.

As acções e declarações de apoio no âmbito desta campanha já estão a ser divulgadas nas redes sociais através do hashtag #FreeKononovich.

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Agora, nunca me verão dizer que não deve haver jornalistas no lado controlado pela Ucrânia. Essa é a grande diferença. 

Hoje, jornalistas como Kapucinsky, Hemingway ou Robert Fisk são vistos como exemplos. O primeiro escreveu um grande livro sobre o trabalho que fez quando acompanhava a guerra civil em Angola, no lado controlado pelo MPLA, o segundo esteve no lado republicano da guerra civil espanhola e o terceiro fez uma entrevista ao Bin Laden. Entrámos num nível tal de controlo editorial e político, onde encaixo a proibição de canais russos na Europa, que são vários os meios que rasgaram de forma aberta e pública as antigas declarações de amor à objectividade e imparcialidade.

Sob a acusação de ser um espião russo, prenderam um jornalista basco na Polónia [Pablo González, colaborador frequente do Público espanhol e ao serviço do La Sexta TV, está preso há mais de 9 meses, sem julgamento] quando cobria a crise dos refugiados e ninguém parece demasiado preocupado com isso. Voltámos à guerra fria e ao maccarthismo.

Como analisas a cobertura da guerra feita pelos orgãos noticiosos portugueses? Notas algum contraste em relação a outros meios mainstream europeus?

Não. Em geral, seguem a mesma linha. Há excepções, contudo. Por exemplo, três canais italianos, incluindo a RAI, tiveram repórteres no lado controlado pelos russos. A Grécia também. De resto, há uma informação muito uniforme, o que não deixa de ser curioso.

Durante muitos anos justificava-se essa uniformidade porque a maioria dos meios não queria gastar dinheiro a enviar jornalistas para determinados cenários de guerra. Então, todos compravam as mesmas reportagens das principais agências. Agora, houve uma aposta muito grande em enviar repórteres mas a abordagem é praticamente igual em todo o lado. Algo que falta muito e, parece-me intencional, é a ausência de contexto.

O objectivo é claro: que não haja uma leitura histórica do conflito.

As populações de Donetsk, Mariupol, estranhavam a tua presença? Em certo momento eras dos únicos jornalistas a trabalhar na região. Com tão pouca presença mediática europeia, não estranhavam um português? Estavam satisfeitas por alguém as ouvir? 

Houve um momento em que era o único repórter a trabalhar para meios ocidentais em todo o lado controlado pelos russos. Não olho para isso como um feito mas como uma tragédia. É a morte do jornalismo.

Naturalmente, havia muita surpresa e também desconfiança. Afinal de contas, eu venho de um país cujos impostos são usados também para financiar as armas que matam civis em Donetsk. No Hospital de Traumatologia da cidade, houve vários pacientes que se recusaram a falar comigo por isso mesmo, por ser um jornalista de um país da NATO. Numa reportagem num mercado, houve uma idosa que gritou comigo e outro repórter acusando-nos de sermos responsáveis pelo que lhes estava a acontecer. Mas aconteceu em muitas ocasiões o contrário, entendendo o nosso trabalho, agradecendo e até encorajando.

Em Mariupol, a situação era tão desesperante que nos pediam ajuda para comunicarmos com familiares a viver no estrangeiro. Ali, até de enfermeiros fizemos para salvar a vida a uma idosa que apanhou com os fragmentos de uma mina anti-pessoal. Evitar quase sempre trabalhar em excursões organizadas pelas forças russas tornava o trabalho mais livre mas também mais perigoso. Foi um trabalho que exigiu muito tacto e sensibilidade com os civis, também com os militares, mas creio que a avaliação geral é positiva.

Já trabalhaste noutros cenários de guerra e conflito. Todos os conflitos são diferentes, mas há alguma características no Donbass que destaques?

Estive, em 2017, num acampamento das FARC, na Colômbia, num momento prévio à entrega de armas mas já durante o processo de paz. Havia uma tensão natural e prosseguiam os assassinatos de líderes sociais. Contudo, era um contexto totalmente diferente. No ano seguinte, visitei o Donbass e foi o meu primeiro contacto com a guerra civil que havia começado em 2014. Aí já ouvi alguns bombardeamentos, mas esporádicos. Apesar da violação constante dos Acordos de Minsk, havia já um conflito de baixa intensidade.

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Gustavo Petro quer escrever uma «história nova» para a Colômbia

A candidatura do Pacto Histórico, coligação de forças progressistas e de esquerda, venceu as eleições presidenciais na Colômbia. Petro definiu o triunfo como «histórico» e defendeu a aposta na paz.

Gustavo Petro e Francia Márquez, do Pacto Histórico, celebrando o triunfo nas eleições presidenciais na Colômbia 
Créditos / @petrogustavo

Com a totalidade dos votos escrutinados, a candidatura do Pacto Histórico, integrada por Gustavo Petro e Francia Márquez, obteve 11 281 013 votos (50,44%) na segunda volta das eleições presidenciais, celebradas este domingo.

Já a candidatura apoiada pelas forças de direita, composta por Rodolfo Hernández e Marelen Castillo, alcançou 10 580 412 votos (47,31% dos votos válidos), informaram as autoridades eleitorais colombianas.

Conhecidos os resultados, Petro e Francia Márquez dirigiram-se para o coliseu Movistar Arena, em Bogotá, onde se juntaram a milhares de apoiantes que ali festejavam o triunfo do Pacto Histórico, num país onde os governos, por norma, são conservadores de direita e extrema-direita.

«É história aquilo que estamos a escrever neste momento, uma história nova para a Colômbia, para a América Latina, para o mundo», disse o novo presidente eleito, sublinhando que aquilo que aí vem é «uma mudança real» e que não irá trair o eleitorado que «gritou ao país, à história, que a partir de hoje a Colômbia muda».

Num discurso conciliador, Gustavo Petro afirmou que não se trata de uma «mudança para nos vingarmos, uma mudança para construir mais ódios, uma mudança para aprofundar o sectarismo na sociedade colombiana».

O chefe do novo governo, que tomará posse a 7 de Agosto, destacou ainda que a força expressa pelo povo nas urnas vem de longe, de gerações que já não estão, porque as forças que contribuíram para o triunfo do Pacto são um acumulado de cinco séculos de resistência e rebeldia contra a injustiça, a discriminação e a desigualdade.

A paz como aposta central

Num coliseu em festa, Gustavo Petro sublinhou que o objectivo primordial do seu mandato é a paz. «Significa que não vamos, a partir deste governo, utilizar o poder em função de destruir o oponente. Significa que nos perdoamos. Significa que a oposição que teremos […] será sempre bem-vinda ao Palácio de Nariño para dialogar sobre os problemas da Colômbia», afirmou, citado pela Prensa Latina.

Falando para milhares de pessoas, Petro disse que «não pode continuar o clima político que acompanha os colombianos neste século de ódios, de confrontos, literalmente de morte, de perseguições, de isolamento».

Com o governo que irá liderar, acaba-se a perseguição política, a perseguição jurídica, «haverá apenas respeito e diálogo», disse, insistindo na criação de um grande pacto, que deve abranger toda a sociedade.

«Alcançámos um governo do povo»

Francia Márquez, vice-presidente eleita da Colômbia, saudou todos os sectores que tornaram possível o triunfo do Pacto Histórico, tendo afirmado que, ao cabo de 214 anos, se deu um passo muito importante: «alcançámos um governo do povo.»

«Vamos reconciliar este país, pela paz, sem medo, pela vida, pelas mulheres, pelos direitos da comunidade diversa LGTBQI+, pelos direitos da Mãe Terra, para erradicar o racismo estrutural», afirmou.

Lembrando todos aqueles que sofrem a violência e desigualdade no país, teve ainda palavras de reconhecimento para quem perdeu a vida nas lutas da Colômbia.

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O que acontece hoje é de uma dimensão totalmente diferente. Caem cerca de cem projécteis todos os dias em Donetsk. Em média, há mais de um morto por dia na cidade. Mais de 2 100 feridos desde Fevereiro. E estamos a falar de uma cidade que não está em disputa, não tem combates terrestres, não tem homens a combater no seu interior. Mariupol, sim, estava em disputa e foi, de facto, um inferno. Havia mortos por todas as partes. 

Parece-me que é um erro dizer que esta guerra é apenas entre a Rússia e a Ucrânia. Há milhares de combatentes estrangeiros do lado ucraniano, armas ocidentais, estrategas militares ocidentais a assessorar operações, quando não a comandar, Kiev tem o apoio da inteligência dos satélites ocidentais, etc... Do outro lado, há combatentes das diversas realidades nacionais da Federação Russa, há os soldados do Donbass a combater desde 2014, assim como os cidadãos mobilizados desse mesmo território, há o grupo Wagner... Ou seja, há uma complexa teia diversa de afinidades e contradições.

Do ponto de vista mais geral, esta guerra representa um momento histórico de grande significado porque põe frente a frente duas realidades geopolíticas que se vinham confrontando de forma económica, política e também militar, mesmo que de forma indirecta, sobretudo no Médio Oriente, em que o Ocidente vê o seu poder questionado. É ingénuo acreditar que a guerra vai acabar sem que Washington ou Moscovo tenham uma palavra a dizer. A implicação do Ocidente é, hoje, tão óbvia que isso tem um preço nas nossas economias. 

Como vês a situação actual do Donbass? Depois da realização de referendos sem particular credibilidade, com enormes migrações internas, milhões de pessoas a abandonar a região, é expectável uma estabilização da situação?

A credibilidade dos processos eleitorais há muito que é algo secundário no contexto internacional. Há uma avaliação subjectiva em função dos interesses de cada país. O Kosovo tornou-se independente sem referendo, Juan Guaidó foi reconhecido presidente por muitos países sem qualquer eleição. Isso parece-me particularmente grave. À luz do que vi, de facto, não foram referendos que cumprissem aquilo que consideramos serem processos democráticos, embora não me pareça haver grandes dúvidas sobre a vontade daquela gente.

Basta ver o histórico eleitoral desde 1991 até 2014. Há um padrão praticamente inalterado de vitórias de forças pró-russas e comunistas. Toda a gente que entrevistei me disse que pouco lhe importava o não reconhecimento dos referendos por parte do Ocidente, uma vez que o Ocidente pouco se importou com a situação destas pessoas nos últimos oito anos. Parece-me que teria sido um passo para a paz se a Ucrânia e a Rússia aceitassem a realização de referendos com todas as garantias dando a palavra às populações com observadores dos dois lados. Não me parece que haja espaço para isso quando Kiev não cumpriu sequer os Acordos de Minsk em que estava previsto dar autonomia a estes territórios.

A Ucrânia não vai aceitar nunca a anexação do Donbass e das restantes regiões, incluindo a Crimeia, e, nesse sentido, a única perspectiva de estabilização virá com o fim da guerra que dependerá mais de Washington do que de Kiev. Sozinha, a Ucrânia não tem condições de manter esta dinâmica militar.

As populações do Donbass fazem ideia da dimensão do apoio à figura de Zelensky na União Europeia? Nos meios de comunicação, institucionais, nas redes sociais...

Sim, há essa noção. Para eles, o inimigo não é apenas Zelensky. São também os Estados Unidos e a União Europeia. E até a ONU é uma instituição questionada, sobretudo Guterres, acusando-o de declarações parciais. Há uma visão da Europa, não isenta de preconceitos, em que somos vistos como individualistas, demasiado apegados ao dinheiro e ao consumo, pouco dados aos valores da família e da comunidade, pouco solidários e, naturalmente, somos considerados fantoches dos norte-americanos. Mas também sabem que há gente que protesta, que não está de acordo com determinadas políticas e que se mobiliza contra a guerra.

O que me parece grave é que os líderes europeus fazem tudo para meter gasolina na fogueira como foi o caso de Josep Borrell, dizendo que a Europa era um jardim e o resto do mundo uma selva. Isto significa reforçar, no resto do mundo, o antagonismo ao eurocentrismo e a esta ideia de que a Europa é um oásis civilizacional no meio dos selvagens. 

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