|sociedade

Viver na bolha

Do prazer de entrar, à necessidade de aí se alimentar por completo uma vida transformada em solidão raivosa. É disso que se trata viver na bolha. 

Créditos / Microsoft

A entrada na bolha começa com uma sensação de conforto, um certo privilégio até, de estar finalmente a encontrar quem pensa como nós. Existe um certo regozijo em poder assistir ao decorrer no mundo nesse espaço de segurança. As tuas notícias, as tuas opiniões, expressas e confrontadas, num ambiente onde nada te fere, tudo te agrada. A entrada na bolha faz-se por prazer. Por sossego. Por acreditar que ali nada te obrigará a mover do lugar onde sentes querer estar instalado. 

No passo seguinte começas a cortar com outras fontes de informação. O que te chega fora da bolha já não fala para ti, até porque dentro dela tens quem te garanta responder a todas as tuas inquietações. Fechas os olhos e os ouvidos, deixas-te mergulhar. A realidade começa, lentamente, a revelar-se na tua mente. Aquilo em que os outros acreditam, afinal, não é verdadeiro. Aquilo de que te falam, fora da bolha, começa a deixar de fazer sentido. É dentro da bolha que te moves e é dentro da bolha que conquistas a confiança de distinguir um certo (ao qual aderes, cada vez mais, sem questões) de um errado (que rapidamente te ocuparás de atacar com todas as tuas forças). 

Finalmente, o que colhes da bolha torna-se mais do que aquilo que procuras, transforma-te no que pensas e encaras. A bolha deixa de ser prazer e passa a ser alimento. Comes o que te colocam na frente e tudo o que vai além disso te parece turvo, difícil de alinhar, impossível de compreender. Na raiva e na fome que te toma, nada te resta do que continuamente buscares na bolha as forças para atacares quem vive fora dela. Porque mentem, porque ferem, porque, naturalmente, só o podem fazer para comer noutros pratos, noutras mesas, noutras bolhas que imaginas tão ferozes quanto a tua. Estás preparado para ser apenas mais um soldado de uma verdade que não questionas. Estás pronto para massacrar quem nela não acreditar. 

As bolhas incomunicáveis que encontramos na sociedade aumentam a sensação de desespero e raiva que se vai construindo no indivíduo. A incapacidade para dialogar com outras visões, outras fontes, outras maneiras de estar, acirram as vontades, destroem pontes, quebram laços. Em breve, nem comunidade, nem família, o viver na bolha levará a um individualismo estéril na constante busca de uma nova conspiração que teremos pela frente. Sem mais pensar. Sem mais nada. Apenas o eterno vazio da bolha que não rebenta a não ser dentro de nós. 


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

Tópico

Contribui para uma boa ideia

Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.

O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.

Contribui aqui