A esta altura já todos os portugueses terão ouvido falar nos 117 comboios que a CP vai comprar. Entre outras razões, porque todos os ministros das Infraestruturas dos 4 últimos governos já anunciaram milhares de vezes essa compra. Que a bom rigor ainda não foi feita. Vale a pena acompanhar a saga, para se ver como o processo é conscientemente sabotado pelos membro do governo, os mesmos que nos pedem os votos depois por terem comprado os comboios e nos bombardeiam com conferências de imprensa, anúncios, inaugurações de concursos, cadernos de encargo, decisões, estudos, projectos... tudo menos comboios, que continua a não haver.
Para se ser rigoroso, esta estória remonta aos anos 90, quando começou a liberalização da ferrovia. Portugal tinha uma fábrica de comboios, a Sorefame, onde estes eram feitos de acordo com um planeado desenvolvimento da ferrovia (ou assim podia e devia ser feito). A fábrica é privatizada – para crescer, garantiam. O Estado português e as empresas públicas começam a ser obrigadas a abrir concurso internacional para comprar comboios. E começam a adjudicar no estrangeiro as poucas compras. A Sorefame encerra. E desde essa altura (2004) ainda não foi entregue um comboio novo (já se comprou ou alugou algum material em 2.ª mão) para as empresas ferroviárias de passageiros em Portugal. Dizem uns que é o mercado, dizemos nós que é o processo de concentração e centralização sempre gerado pela livre concorrência.
Face a este cenário, as necessidades de comboios foram crescendo. Em 2009, nas vésperas das eleições, um grande pacote de aquisições pela CP foi anunciado, 102 comboios, a «maior aquisição de sempre da CP». Passadas as eleições, o concurso foi cancelado. E os problemas continuaram a agravar-se.
Entretanto, em 2015, o país ensaia passos no sentido de inversão do caminho de abandono da ferrovia nacional e do transporte público. O alargamento do passe social intermodal e o PART trazem um grande e expectável crescimento na procura. O Ferrovia 2020 aponta à modernização de muita infraestrutura. É relançada a construção de infraestrutura para a Alta Velocidade. O governo finalmente reintegra a EMEF na CP. Mas continuam a faltar comboios. Continuam a não se comprar comboios. A CP e a EMEF fazem verdadeiros milagres mas, sem comboios, nenhum sistema ferroviário funciona.
«Jerónimo de Sousa revelou nessa altura dotes premonitórios quando comentou: «Este Governo está em funções há seis anos, este é para aí o 20.º anúncio da aquisição de comboios, mas por enquanto só chegou à CP algum material rebocado e em segunda mão». Passados 4 anos, estamos na mesma situação.»
Em Junho de 2018, a Assembleia da República aprova um projecto de resolução do PCP sobre um plano a 15 anos para o Material Circulante em Portugal, que aponta para o «lançamento imediato dos concursos mais urgentes, e preparando a inscrição no próximo Orçamento do Estado da previsão plurianual de investimentos a realizar», partindo de um «levantamento das necessidades de material circulante para a ferrovia nacional, no horizonte dos próximos 15 anos», que destacava a falta de material a curto prazo no serviço urbano, o plano que deveria ser realizado deveria ainda promover «no processo produtivo a máxima incorporação nacional». Em Setembro de 2018 o governo autoriza a compra de 22 comboio para o regional (que tão pouco ainda foram entregues, estando a ser construídos em Espanha por uma multinacional austríaca). Em 2020, o governo começa a colocar nos jornais notícias sobre uma próxima aquisição de muitos comboios, mas nada é decidido. Em Janeiro de 2021, o governo começa a falar sobre a compra de mais de cem comboios. Ainda sem qualquer decisão.
Há duas explicações para o facto do governo PS ter passado os primeiros 5 anos (2016/2020) sem lançar o concurso que se impunha para a ferrovia. A primeira é a obsessão com o défice e a busca de anunciar «excedentes»: uma conferência de imprensa custa uns 5 mil euros (as Agências de Comunicação não trabalham de borla), um comboio pode custar mais de 5 milhões, e cada comboio não comprado foi uma ajuda para o défice ou o excedente; a segunda é a sua perninha neoliberal, que sabe que uma CP com comboios novos e a operar bem não é «privatizável», mas uma CP a operar mal e à beira de receber comboios novos é altamente «privatizável».
Chegamos assim a 2021, momento em que o Governo decide formalmente a compra de 117 comboios pela CP (15 Julho 2021), novamente a «maior aquisição de sempre da CP». Jerónimo de Sousa revelou nessa altura dotes premonitórios quando comentou: «Este Governo está em funções há seis anos, este é para aí o 20.º anúncio da aquisição de comboios, mas por enquanto só chegou à CP algum material rebocado e em segunda mão». Passados 4 anos, estamos na mesma situação.
Em Dezembro de 2021, é lançado pela CP o Concurso internacional, em conferência de imprensa da CP com direito a ministro. Em Fevereiro de 2022, a CP anuncia ter recebido 6 propostas. Durante o próximo ano, diferentes ministros vão anunciando a iminente e sempre adiada decisão do processo. Mais de um ano depois, em Novembro de 2023, a CP anuncia como vencedor do concurso a Alsthom.
«Claro que não mudam a lei porque o seu plano é tornar clara a «impossibilidade» das empresas públicas fazerem/comprarem/construirem seja o que for. Justificando assim o que pretendem: o Estado paga, e as empresas privadas fazem/compram/constroem porque não têm as mesmas amarras burocráticas que as empresas públicas.»
De imediato, os concorrentes derrotados colocaram as inevitáveis acções em Tribunal de contestação dessa decisão. O governo (de então, e os que se lhe seguiram) recusou-se a decretar o interesse público e mandar avançar a adjudicação, deixando que a lentidão da justiça fizesse arrastar o processo. A decisão de contratação fica assim suspensa, apesar das empresas derrotadas no concurso terem perdidos todas as acções (e recursos) apresentados sobre o efeito suspensivo da acção intentada contra o concurso. Agora, em Julho de 2025, o Supremo Tribunal Administrativo colocou um ponto final na discussão jurídica sobre o não efeito suspensivo do processo colocado por estas multinacionais. Terá considerado que o risco (real) de se perderem fundos comunitários alocados ao processo era suficiente para não haver efeito suspensivo (ou seja, para que a contratação possa prosseguir apesar de haver uma acção judicial que pede a anulação do concurso, e que ainda nem foi decidida nem mereceu ainda decisão sobre os diversos recursos que serão colocados a essa decisão).
É impressionante que para o Governo, para os Tribunais e para a lei que estes aplicam, a urgência na satisfação das necessidades de mobilidade dos portugueses não seja razão para travar uma litigância obstructiva que ocorre sempre que existe um concurso público, mas o não desperdiçar de fundos comunitários já seja. E que o Governo e a Assembleia da República não sintam necessidade de rever uma lei que está claramente a obstaculizar o funcionamento do Estado.
Claro que não mudam a lei porque o seu plano é tornar clara a «impossibilidade» das empresas públicas fazerem/comprarem/construirem seja o que for. Justificando assim o que pretendem: o Estado paga, e as empresas privadas fazem/compram/constroem porque não têm as mesmas amarras burocráticas que as empresas públicas. Que é exactamente o que está a acontecer com a Linha de Alta Velocidade Lisboa-Porto, onde o Estado comparticipa ou financia toda a obra e o privado usa esse dinheiro sem nada seu investir.
Concluindo
Depois da saga atrás exposta, desapareceu finalmente a desculpa usada nos últimos 22 meses para não avançar com a compra dos 117 comboios sem os quais a CP não pode funcionar. Irá o governo (finalmente!) dar luz verde para a CP avançar com a compra dos 117 comboios e a produção destes ser finalmente iniciada? E claro, fazer mais umas conferências de imprensa para se gabar (não esperamos que algum dia reconheçam e muito menos peçam desculpas pela sua acção sabotadora). Ou vamos ver mais desculpas para não se fazer o que têm que ser feito?
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui