A privatização da CP Carga1 consumada a duas mãos pela política de direita de liberalização dos setores estratégicos imposta pela UE, foi decidida em 2015 pelo governo PSD e concretizada em janeiro de 2016 pelo governo PS.
Como se sabe, o que deixa de ser público deixa de ser nacional, principalmente nos setores estratégicos.
Assim, por valor não mais que simbólico a CP Carga – e o que representa na política de transportes do País em decisões soberanas no apoio a inúmeras atividades produtivas, as existentes e as objeto de imprescindível reindustrialização – foi oferecida a um dos seus clientes, a multinacional suíça MSC, que a passou a gerir segundo os seus próprios interesses.
A acrescer nas perdas da alienação deste relevante bem público, de recordar que «A CP encerrou o exercício de 2015 com um Resultado Líquido negativo... um agravamento face ao previsto de 73,4 milhões de euros. Para este desvio, contribuíram fundamentalmente a venda da CP Carga, com um impacto líquido nas contas da empresa em 2015 de -85,3 milhões de euros...». Apesar de assim assumido pela própria CP no Relatório e Contas, há a convicção de que as perdas reais foram muito maiores como então alertado.2
Na fase de concretização deste crime económico era anunciado que «a estratégia da MSC não se ficaria por transformar a CP Carga no maior e melhor operador ferroviário de transporte de mercadorias ibérico…»
Mas, passados oito anos da privatização e passado também o tempo da pandemia, verifica-se que face ao período que a antecedeu, todos os indicadores do transporte de mercadorias nacionais e internacionais revelam estagnação e redução de atividade.
Mesmo que os valores de tais indicadores resultem de uma conjugação de fatores alguns dos quais exógenos, tal não deixa de expor a inutilidade prática da privatização da CP Carga, se fosse possível vê-la assim sem o enquadramento político e económico do atentado à soberania que de facto representa.
Vejamos então o que nos diz a informação de transportes de mercadorias do INE.
Desde o último ano da CP Carga pública as mercadorias transportadas no País reduziram-se 2,8 milhões de toneladas, enquanto em volume (tonelada-Km, tKm) a redução foi de 500 milhões de tKm.
E no conjunto das mercadorias transportadas no País e além fronteiras, essencialmente com Espanha, a redução em peso foi de 2,7 milhões de toneladas. Em volume houve estagnação nas 2,7 mil milhões de tKm, note-se na sequência do crescimento de 400 milhões de tKm nos últimos três da CP Carga pública.
No transporte nacional de mercadorias, a linha e tendência do modo rodoviário é da manutenção dos valores de carga, enquanto o modo ferroviário, representando menos de um décimo daquele, tem a redução já atrás referida de 2,8 milhões de toneladas.
Se no transporte nacional o modo ferroviário não captou – e de facto até muito decresceu – qualquer transporte ao modo rodoviário que se manteve, já no transporte internacional, apesar da redução verificada no modo rodoviário, o transporte ferroviário continuou estagnado.
Relativamente às mercadorias entradas e saídas do País por modo ferroviário confirma-se a tendência de estagnação após o período de crescimento da carga transportada nos últimos anos da CP Carga pública. Veja-se que em 2022 as mercadorias saídas do País estão ao nível de 2007. E não mais houve transporte além Pirenéus.
A partir de 2013 os operadores privados de transporte de mercadorias passaram a realizar «tráfego terceiro», ou seja, «mercadorias movimentadas totalmente fora de território nacional, mas sob a responsabilidade de transportadores nacionais»3 e a realizar «trânsito» de mercadorias por Portugal.
São duas atividades que, não tendo que ver com a produção nacional, mobilizam, principalmente no caso do Tráfego Terceiro, pela sua expressão, os recursos da CP Carga privatizada, como se pode ver na sua evolução logo a partir de 2016, tudo indica em resposta às necessidades da multinacional MSC.
De facto, o Tráfego Terceiro é o único indicador de transporte em crescimento e também o único que nada tem que ver com o desenvolvimento da economia nacional.
É mais uma venda de serviços a acrescer a outras, como a monocultura do turismo neste país terceirizado pela UE e pela política de direita de PS, PSD e afins. No caso desta venda de serviços, que utiliza material circulante nacional, destaca-se a agravante dos resultados irem diretos para a Suíça, e na prática nada fica no País.
Mas até 2007, e de 2011 a 2014, houve transporte ferroviário para além de Espanha. De 2001 a 2004 constam nos dados do INE transportes ferroviários de e para França, Alemanha, Áustria, Bélgica, Polónia, Itália, Luxemburgo e Suíça. Em 2005 e 2006, as entradas e saídas centraram-se em França e Alemanha, e, de 2011 a 2014, o transporte teve apenas como origem e destino a Alemanha, relacionado com a atividade da AutoEuropa.
Aqui chegados4, veja-se que após enorme aumento desde 2009 até a privatização da CP Carga, o transporte internacional de mercadorias, de entrada e saída com Espanha, passou à estagnação na ordem das 1750 mil de toneladas.
Mas, em simultâneo com aquela estagnação, o Tráfego Terceiro tem tido tal subida que em 2022 com 938 mil toneladas representa já mais de 50% do transporte internacional de mercadorias do País.
Sendo o Tráfego Terceiro alheio ao desenvolvimento e aos interesses do País, é esse o único grande «sucesso» da alienação da CP Carga, mas apenas para a multinacional.
Já em dezembro de 2015 a multinacional tinha «avisado» que «a estratégia da MSC não se ficaria por transformar a CP Carga no maior e melhor operador ferroviário de transporte de mercadorias ibérico... mas ia além do espaço ibérico, para apoiar o transporte de mercadorias descarregadas pela MSC em outros portos da Europa».
E onde fica a CP Carga e os interesses do País nesta prosa de banha de cobra?
Em linha com o «aviso» efectuado é anunciado, em setembro de 2023, que a multinacional e «a Renfe criam empresa ferroviária para partir à conquista de França. Negócio passa pela criação de uma empresa comum ou pela entrada da Renfe Mercancias no capital da Medway, naquele que será o maior grupo ferroviário de mercadorias da Península Ibérica.»
E também já em linha com um pretenso uso de posição dominante a multinacional trata de pressionar para a redução do valor da taxa de uso da infraestrutura ferroviária, a tal ponto de constar já no programa do governo da AD, para colocar o País a contribuir ainda mais para os seus lucros.
Para quem tivesse dúvidas, evidenciam-se e avolumam-se razões para o País renacionalizar a CP Carga e assim recuperar esta importante parcela de soberania, uma vez que o transporte ferroviário de mercadorias desempenha um papel estratégico na nossa economia, na redução dos custos de produção, na salvaguarda da infraestrutura rodoviária e na redução dos custos ambientais e energéticos.
Recorde-se que a opacidade do processo de privatização da CP Carga foi tal que o governo nunca informou a Assembleia da República dos verdadeiros contornos do negócio, nem permitiu que as Administrações da CP e da CP Carga informassem as respetivas Comissões de Trabalhadores como manda a Lei e a Constituição.
- 1. Com a privatização a CP Carga passou a designar-se por Medway.
- 2. Cartas n.ºs 1, 2 e 3, em 2015 e 2016, das Organizações Representativas dos Trabalhadores da CP e da CP Carga ao Tribunal de Contas.
- 3. Estatísticas dos Transportes e Comunicações INE.
- 4. Todos os gráficos – Dados das Estatísticas de Transportes e Comunicações do INE.
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