Os médicos e o guarda-chuva

«É preciso e urgente meter os médicos na ordem. Esta classe de privilegiados faz finca-pé na exigência de mais e mais regalias (…). Precisamos de um Governo que ponha travão a tanto ultimato classista, que se levanta por dá cá aquela palha, sem qualquer promessa de dar em troca deveres e obrigações (…).» (Público, 13 de Agosto de 2017).

A citação faz parte de um texto publicado há cerca de três anos na rubrica «Cartas ao Director». Ela exprime a posição de um leitor e, como tal, poderia não representar mais do que isso. O que lhe dá outro significado é ter sido seleccionado, entre centenas de comentários e temas, pela direcção do Público, numa época em que se assistia a uma agudização da luta dos médicos por melhores condições de trabalho e pela defesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Ainda há pouco, o número de agressões verbais e físicas a médicos, primeiros bodes expiatórios das políticas responsáveis pela degradação do SNS, estava num crescendo exponencial. Agora, mesmo para o Público, o tempo está mais para palmas e homenagens aos «heróis» que combatem a ameaça com risco da própria vida.

«Condicionados pela pandemia, programas de grande audiência, que cobriam manhãs e tardes da televisão repetindo desgraças, erros e negligências do SNS, causados por médicos prepotentes e desleixados, deram lugar a entrevistas e mesas redondas com os novos heróis que antes eram, tantas vezes, indiscriminadamente acusados»

Convém sublinhar que não são só os médicos que se arriscam na primeira linha, trabalhando até ao esgotamento se necessário. Há enfermeiros, técnicos, secretários, pessoal administrativo, assistentes operacionais, equipes de transporte e muitos outros. Alguns, sempre ignorados nas suas necessidades e direitos, com empregos precários, salários baixos e piores condições de defesa e de confinamento domiciliário.

Mais de dois mil trabalhadores da Saúde estão neste momento infectados, traduzindo o seu empenho, mas também falhas na sua defesa, por falta de material, de organização, de treino e de outras condições de segurança. Cerca de 11% do total de pessoas contaminadas. Quatrocentos são médicos.

Independentemente dos aspectos circunstanciais, o ataque do leitor do Público aos médicos erra completamente no alvo. Não são eles, na sua generalidade, os privilegiados do sistema, tendo visto a sua situação profissional cada vez mais desgastada e desvalorizada, por uma medicina empresarializada dirigida à «produção» e ao «lucro», que os trata como proletários sem direitos, avaliados à tarefa e mal pagos.

Os médicos não são donos ou accionistas dos grandes grupos financeiros que dominam o sector e lhe definem as regras. Nem são eles que estabelecem a política governamental, como faz a banca. A grande maioria vive do salário e/ou é paga à tarefa, dependendo de tabelas e imposições que os ultrapassam, com contratos mais ou menos precários e «uberizados», mesmo se, devido à diferenciação técnica e ao excesso de horas de trabalho, conseguem manter um razoável nível económico e social.

A pandemia do coronavírus e o perigo real que passou a representar para a Humanidade, criaram uma situação sanitária, social e económica inédita, que alterou profundamente o quotidiano e as preocupações dos cidadãos, suspendendo e modificando, momentaneamente, o discurso ideológico que os procura condicionar, de que o texto inicialmente citado, é uma amostra.

«No SNS, o embate da pandemia do COVID-19 fez com que a hierarquia de uma gestão «empresarial» centrada em objectivos burocrático-administrativos, entrasse frequentemente em confronto com médicos e profissionais que dão prioridade a uma estratégia centrada na qualidade da resposta clínica e assistencial»

Agora, as estrelas da TV deixaram de ser actrizes, jornalistas, jogadores de futebol ou videntes de tarot, substituídos por médicos de saúde pública (tão desprezada), epidemiologistas, pneumologistas, intensivistas, imunologistas, cientistas e investigadores até aqui desconhecidos do grande público, que passaram a ter uma presença contínua na televisão e nas redes sociais.

Condicionados pela pandemia, programas de grande audiência, que cobriam manhãs e tardes da televisão repetindo desgraças, erros e negligências do SNS, causados por médicos prepotentes e desleixados, deram lugar a entrevistas e mesas redondas com os novos heróis que antes eram, tantas vezes, indiscriminadamente acusados.

As explicações científicas dos novos protagonistas, vieram também substituir o tempo diariamente dedicado às terapias Reiki, aos tratamentos homeopáticos, aos milagres da aromaterapia ou de outras inventoterapias cheias de meridianos e correntes energéticas, que há muito enchem os programas da TV.

E essa foi outra das perdas colaterais causadas pela COVID-19: o apagamento nos media das «medicinas alternativas» baseadas nas «outras cientificidades» referidas por um alto dirigente da Direcção Geral da Saúde como justificação de as «oficializar» (lei 45/2003), sem que nunca se tenha percebido o que essas «cientificidades» são e em que mundo existem.

Agravando esse apagamento, o governo chinês não publicitou qualquer recurso à «Medicina Tradicional Chinesa» para combater a COVID-19, embora até estivesse a jogar em casa. Pelo contrário, a China optou por mostrar invulgares capacidades de investigação e aplicação da Medicina «convencional», «científica» ou «ocidental» (resumindo, a Medicina, sem acrescentos nem aspas) para identificar, sequenciar, testar, organizar e conter com êxito a pandemia.

Agora, que a doença provou ser séria e poder atingir toda a gente, a esperança de uma solução eficaz é depositada nos avanços do conhecimento científico, à semelhança do conseguido noutras infecções víricas, como a Sida ou a Hepatite C.

Claro que as crenças de fé, não desapareceram da mente de muitos dos que, formados na aceitação do pensamento mágico, não reconhecem o alcance e rigor dos processos que proporcionaram os enormes avanços da medicina moderna e da ciência em geral.

«Outra baixa colateral da COVID-19 é o mito do papel estrutural dos grandes grupos privados da Saúde. Quando agora pensamos no combate à pandemia do coronavírus, pensamos no SNS. A grande [saúde] privada (CUF, Luz, Lusíadas Trofa, Sanfil) ficou atrás das trincheiras, com instalações vazias, baixando 80% do negócio. (…) É hoje difícil, à maior parte dos portugueses, imaginar o combate à pandemia sem haver o SNS, mesmo se debilitado devido a perversos cortes e enviesamentos»

Infelizmente, como prevê David Marçal no artigo «Novo coronavírus, uma vacina contra os movimentos antivacinas?» (Público, 8 de Março de 2020), passado o perigo e conseguidos medicamentos e vacinas eficazes, a crendice nas «alternativas» e nas «outras cientificidades» irá voltar com a ajuda dos media e do ambiente anticientífico que alimentam.

No SNS, o embate da pandemia do COVID-19 fez com que a hierarquia de uma gestão «empresarial» centrada em objectivos burocrático-administrativos, entrasse frequentemente em confronto com médicos e profissionais que dão prioridade a uma estratégia centrada na qualidade da resposta clínica e assistencial.

A forma quase caricatural como muitas administrações mantiveram a obrigação dos trabalhadores de porem o dedo nos aparelhos de registo biométrico, desprezando a possibilidade deles constituírem um ponto de contaminação, é disso exemplo.

Essa preocupação desnecessária continuou mesmo quando, por todo o lado, se louvava a disponibilidade mostrada por esses profissionais para cumprirem longos turnos de trabalho, muito para além dever e em condições difíceis e perigosas.

Outra baixa colateral da COVID-19 é o mito do papel estrutural dos grandes grupos privados da Saúde.

Quando agora pensamos no combate à pandemia do coronavírus, pensamos no SNS. A grande saúde privada (CUF, Luz, Lusíadas Trofa, Sanfil) ficou atrás das trincheiras, com instalações vazias, baixando 80% do negócio.

Também os médicos com consultório próprio e os que trabalham a recibo verde em unidades privadas, a quem pagam uma significativa percentagem do que ganham, assistem a uma drástica diminuição nos rendimentos e é o salário do SNS que lhes atenua as perdas (o que deve ser motivo de reflexão sobre vantagens e direitos, como baixas por doença, férias remuneradas e segurança na reforma).

O sistema privado hibernou logo no início do combate, reduzido a algumas encomendas públicas de testes e tratamentos de retaguarda. É hoje difícil, à maior parte dos portugueses, imaginar o combate à pandemia sem haver o SNS, mesmo se debilitado devido a perversos cortes e enviesamentos.

De resto, são do SNS quase todas as caras que aparecem nos programas da TV, médicos e investigadores nele formados ou nos grandes centros de investigação pública, explicando os complexos mecanismos dos vírus, das vacinas, ou as formas de sequenciação do genoma. Se alguns também trabalham na saúde privada (e podem-no fazer honestamente) não foi aí que ganharam o prestígio e a credibilidade que os distinguem.

O sistema de «ausência de sistema» dos EUA, um modelo privado assente em seguros individuais e no «cada um trata de si», mostra-nos o que pode acontecer numa situação de crise de pandémica, deixando sem assistência e sem emprego, muitos milhões de cidadãos.

Embora a distribuição nos diversos estados seja muito irregular, em Nova Iorque, centro maior da pandemia, a mortalidade é de 136 por 100 mil habitantes, cerca de duas vezes superior à da Bélgica (56) e três vezes à de Espanha (47) e de Itália (43).

Para além da falta de material – num país que é a maior economia do mundo – os médicos da linha da frente viram, no momento em são mais necessários, a sua remuneração diminuir.

«O corte nas retribuições integra uma tendência nacional de hospitais e grupos de saúde, com diminuição das remunerações mesmo dos médicos que estão na linha da frente». (Lev Facher, «Amid coronavirus, private equity-backed company slashes benefits for emergency room doctors» em STAT, 1 de Abril de 2020).

«A velha propaganda sobre as vantagens da gestão privada e da empresarialização, deixou de pegar. Está à mostra a necessidade da existência de um grande serviço público universal, estruturado e gratuito. Tornou-se clara a sua importância e imprescindibilidade para garantir os cuidados de saúde à população numa situação de aperto. Há que garantir a sua qualidade, sustentabilidade e extensão no futuro»

Em Portugal, a grande saúde privada continua a necessitar de estar ligada ao ventilador dos cofres públicos para continuar a respirar. Sem o dinheiro do Estado (que diz não existir para o SNS), o negócio definha e entra em coma. Principalmente numa grande crise de saúde pública.

A velha propaganda sobre as vantagens da gestão privada e da empresarialização, deixou de pegar. Está à mostra a necessidade da existência de um grande serviço público universal, estruturado e gratuito. Tornou-se clara a sua importância e imprescindibilidade para garantir os cuidados de saúde à população numa situação de aperto. Há que garantir a sua qualidade, sustentabilidade e extensão no futuro.

Sem o SNS, o tratamento dos doentes afectados pela COVID-19 seria, para muitos deles, e para todos nós, uma ruína e um desastre, muito para além do que já hoje é. Não haveria, nesta situação, seguradoras ou accionistas simpáticos que valessem aos portugueses.

A lengalenga de «menos Estado, melhor Estado», não serve, nem para os que tanto a apregoam. Também para eles, é o Estado (ainda mais do que antes) a única hipótese de salvação do negócio.

Para além de pedidos de indemnização ou exigências de prolongamento de contratos nas PPP, já se começaram a delinear estratégias como as de deixar os hospitais públicos para os «Covid», encaminhando para os privados as listas de espera dos «não-Covid», ou tratar todos os «Covid» que apareçam desde que seja o Estado a pagar.

Tal como quanto ao apagamento das «medicinas alternativas», passado o perigo, também o reforço e crescimento do SNS estará longe de ser garantido se todos os que agora o valorizam não lutarem firmemente para que isso aconteça.

Apesar do que se tornou evidente com a pandemia (e do definido na nova Lei de Bases da Saúde), governos PS e/ou PSD com ou sem outros apoios à direita, podem não investir no SNS e aumentarem o apoio à grande saúde privada, compensando-a das perdas da crise.

Avançando nesse caminho, uma gestora do grupo Luz Saúde (ex-Espírito Santo Saúde) anunciou, na TV, que qualquer pessoa com COVID-19 que procurasse o seu hospital seria aí tratado, tendo a sua conta paga pelo Estado (o que foi posteriormente desmentido pela Ministra da Saúde). À pergunta se, caso tivesse um seguro, isso não levaria a uma total desresponsabilização da seguradora, a gestora teve uma resposta pronta: «Temos de perceber que se trata de uma emergência nacional!..».

Assim se copia, com os grandes grupos privados da Saúde, a conhecida definição de Robert Frost relativa aos bancos:

«São estabelecimentos que nos emprestam um guarda-chuva num dia de sol e nos pedem de volta quando começa a chover.»