Como seria a cidade e o país se toda a gente se juntasse para pensar como fazer? Se pensássemos o que queremos e o que não queremos, em conjunto? Isto não acontece, porque não vivemos realmente numa democracia, onde a maioria decide de acordo com os seus interesses. O que chamam de democracia é, no fundo, um jogo de sombras onde se vota de tempos a tempos mas quem decide todos os dias é quem manda de verdade, e quem manda de verdade não é sequer quem se elege, é quem paga para que se eleja: é quem controla o banco, a fábrica, a televisão e os imaginários. E nós cá em baixo, votamos, mas sempre dentro dos limites do que o capital deixa ser.
Queremos a democracia verdadeira, onde a maioria discute, decide e governa, onde a riqueza serve a vida e não a morte, onde o trabalho tem dignidade e não se mede em salários mínimos que não chegam para pagar a casa. Queremos uma sociedade nova, sem explorados nem exploradores, sem donos, sem o medo de ficar para trás porque a regra do jogo é correr mais do que o outro ou morrer esmagado na margem. Queremos pôr fim à guerra entre os povos, fabricada para encher os cofres dos patrões da indústria da morte e manter intocáveis os que planeiam tudo no conforto dos seus gabinetes. Queremos acabar com o individualismo feroz que transforma vizinhos em concorrentes e amigos em obstáculos. Não queremos uma liberdade de fachada, que diz que se pode ir aonde se quiser, comprar o que se quiser, desde que se possa pagar. Liberdade é não ser comprado nem vendido, é não viver com um preço colado à testa, é poder escolher os caminhos sem recurso ao privilégio.
«Queremos a democracia verdadeira, onde a maioria discute, decide e governa, onde a riqueza serve a vida e não a morte, onde o trabalho tem dignidade e não se mede em salários mínimos que não chegam para pagar a casa.»
O mundo que queremos não é feito apenas de boas intenções. É feito de organização concreta, de tempo bem distribuído, das cabeças postas ao serviço da tarefa comum 1. Uma sociedade onde todos trabalham porque todos fazem parte, ninguém é descartado, ninguém vive à custa do trabalho dos outros. Onde se valoriza profundamente quem dedica os seus dias a estudar soluções novas para problemas que são de todos e onde a ciência é a ferramenta da libertação. Onde há lugar cativo para quem produz a cultura, não como ornamento da vida, nem produto pronto a consumir para nos abstrairmos dela, mas como motor do pensamento, da imaginação que nos torna pessoas e da transformação de que precisamos com urgência. Onde vivemos com saúde porque prevenimos a doença, porque comemos o que produzimos, e o que produzimos é saudável porque cuidamos da terra, da água, do ar, do nosso planeta. Onde a liberdade não é o contrário da organização e do planeamento, mas um fruto maduro, porque ao organizar as necessidades criamos espaço para a escolha e há lugar para todas as funções. Onde a mobilidade é colectiva e o espaço público não é um intervalo entre propriedades privadas, mas o centro da vida partilhada. Onde se constrói a cidade começando pelas crianças, porque aquilo que serve aos mais pequenos serve a todos: segurança, beleza, proximidade e tempo para viver e para brincar. Onde a escola não é um corredor para o mercado, mas um espaço de pensamento crítico, um laboratório do futuro, onde se aprende a querer outro mundo. E nesse mundo, há comunidade, há amigos, há conversas que não acabam à pressa, há tempo para o lazer que não é feito de consumíveis. Nesse mundo, a sexualidade não é mercadoria, é expressão livre do afecto, do desejo, da cumplicidade, da ternura, da diversidade humana, sem medo nem vergonha. As identidades florescem como querem, todas diferentes, todas legítimas, sem vermos os nossos corpos como algo que precisa de ser remendado, porque os sonhos, esses, são iguais: viver com dignidade, ser quem se é, amar sem pedir licença. Tudo isto é possível porque decidimos que o centro da sociedade não é o lucro, é a vida.
«Onde a escola não é um corredor para o mercado, mas um espaço de pensamento crítico, um laboratório do futuro, onde se aprende a querer outro mundo.»
E com quem queremos isto? Com todos os que compreendem que, no capitalismo, o mundo está a rebentar pelas costuras e que não tem emenda. Queremos conversar com todos os que sabem que é possível outro mundo, que não é apenas desejável, mas construível, não amanhã, mas agora, porque o presente não é o «tempo que resta», mas o princípio de tudo, nas lutas que se travam, nos bairros, nas cidades, nos sindicatos, nas escolas, nas colectividades. A linha está traçada. Há os que querem mudar tudo e os que querem salvar isto, os que dizem que é preciso outro sistema e os que acham que basta dar um retoque, fazer uma maquilhagem, porque o capitalismo está com mau ar. Esses, mesmo quando se dizem de esquerda, mesmo quando vestem camisolas vermelhas e cantam uma internacional desafinada, o que querem, no fundo, é um capitalismo mais simpático, mais educado, que sorria enquanto explora, que diga por favor antes de despedir.
Com esses não dá. Não dá porque a unidade com quem quer manter o sistema, ainda que com uma almofada mais fofinha, é a morte lenta do sonho que carregamos. Com esses, a revolução torna-se reforma, a justiça vira concessão, e o povo continua à margem.
O que queremos, em resumo, é tudo o que produzimos. O que não queremos, está claro, é continuar a viver com tão pouco, e ainda ter que estar agradecidos.
- 1. Ao encontro do encontro, Manuel Gusmão, A Foz em Delta, Editorial Avante, Lisboa, 2018, p.32.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui