|Sofia Lisboa

A educação e ciência a retalho

Anuncia-se a reforma sem dialogar com as comunidades em causa, em pleno Verão, quando a Assembleia da República está a banhos e as escolas fechadas, dando logo a ideia de que é uma coisa para fazer às escondidas.

Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação do Governo PSD/CDS-PP, foi cabeça de lista da AD no distrito de Santarém, nas Legislativas de 2025. 
Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação do Governo PSD/CDS-PP, foi cabeça de lista da AD no distrito de Santarém, nas Legislativas de 2025. CréditosMiguel A. Lopes / Agência Lusa

Existem muitos problemas na escola pública e no sistema de ensino em Portugal. Outros tantos na ciência e no sistema científico e tecnológico. Se isso é uma verdade indesmentível, resta saber quais são exactamente esses problemas e em que sentido se caminha quando se apresenta uma grande reforma, como aquela que foi anunciada no passado dia 31 de Julho. O que é facto é que não se diz ao certo o que se quer reformar, nem porquê, nem para quê, nem com quem. Anuncia-se a reforma sem dialogar com as comunidades em causa, em pleno Verão, quando a Assembleia da República está a banhos e as escolas fechadas, dando logo a ideia de que é uma coisa para fazer às escondidas, como se se temesse o debate democrático.

Assim, aquilo que se anuncia como reorganização parece-se mais com a velha ambição, já ensaiada por outros governos, aqueles do tempo da troika – a da “implosão” do Ministério da Educação, um eufemismo para o desmantelamento sistemático do serviço público de ensino. Como noutros direitos consagrados na Constituição e garantidos por serviços públicos, a ideia é sempre a mesma: reduzir, concentrar, extinguir. Em suma, apagar o traço democrático que ainda resta numa das funções sociais do Estado que mais nos deveriam orgulhar, a educação de qualidade, de todos e para todos.

«Nem se fala do que realmente importa: a revisão do RJIES, a revogação do regime fundacional, o resgate da gestão democrática, tudo isso fica para depois, enquanto se reorganizam agências, se trocam os nomes, se diluem competências e se promete atrair estudantes estrangeiros como se isso fosse resolver o subfinanciamento crónico.»

A proposta pretende passar das 18 entidades que hoje compõem o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) para sete, uma amputação em que se corta a eito para fingir que se resolvem os problemas e se pisca o olho aos apoiantes da eliminação das “gorduras” do Estado. Quando está em causa a estrutura que assegura o direito universal à educação, e por muito que se insista na palavra regulação, o que se anuncia é, na verdade, a desresponsabilização. O ministério, ao transferir competências para as CCDR e os municípios, vai-se retirando de cena, deixando atrás apenas um eco regulador. Infelizmente, não é possível regular sem participar, gerir sem agir, nem governar sem políticas.

Ainda por cima, tudo isto acontece quando se aproxima o início de um novo ano lectivo, quando professores, alunos e pais se preparam para regressar ao que resta das escolas. Nesse momento, em vez de reforçar o que precisa de reforço, nomeadamente o financiamento para recursos humanos e infraestruturas, o que se faz é anunciar uma “optimização” que retira ainda mais condições para que as escolas cumpram a sua missão. Planeia-se também a substituição do financiamento público por uma panóplia instável dos fundos europeus, deixando a educação à mercê das candidaturas e dos concursos.

E nem é só no ensino não superior que a coisa é grave. No ensino superior, nada melhora: aprofunda-se a lógica da mercantilização e da empresarialização, onde as universidades são cada vez mais empresas, os estudantes cada vez mais clientes, e os investigadores cada vez mais precários. E nem se fala do que realmente importa: a revisão do RJIES, a revogação do regime fundacional, o resgate da gestão democrática, tudo isso fica para depois, enquanto se reorganizam agências, se trocam os nomes, se diluem competências e se promete atrair estudantes estrangeiros como se isso fosse resolver o subfinanciamento crónico, a instabilidade institucional, os concursos adiados e a precariedade generalizada. Em suma, fica de lado tudo o que poderia advir realmente do diálogo com um sector que identifica os problemas há décadas.

«O que se propõe, pois, é não apenas uma reorganização administrativa, mas um golpe estruturado contra o sistema público de educação, ciência e ensino superior, mais um passo no caminho da sua privatização, da sua submissão a lógicas de mercado, da sua transformação em produto para poucos, em vez de direito para todos.»

O ataque estende-se também à ciência, onde, longe de se reforçar o Sistema Científico e Tecnológico Nacional, se regressa ao velho sonho neoliberal de cortar, fundir, concentrar, extinguir, como se as instituições científicas fossem empresas falidas a precisar de ser postas na ordem, como se o dinheiro público investido na ciência fosse uma hemorragia desnecessária, como se a investigação devesse ser um produto de mercado. E nesta dança de cortes e fusões, o que se perde é a continuidade, o financiamento, os recursos humanos, e a dignidade de um sector que já vive fustigado pela precariedade, pela incerteza, pelo calendário sempre adiado da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) que impõe prazos sem nunca os cumprir. Tudo no mesmo bolo, será mais fácil dirigir os dinheiros públicos para investigar apenas aquilo que depois se pode pôr a render. A ciência fundamental, aquela onde se procura aquilo que não se sabe ainda quando se vai encontrar, essa irá desaparecendo das preocupações estratégicas do sistema científico. Não se conhece o que vai ser feito da avaliação e acreditação das instituições, nem da articulação entre a tal nova agência, a AI2, e o Instituto do Ensino Superior.

O que se propõe, pois, é não apenas uma reorganização administrativa, mas um golpe estruturado contra o sistema público de educação, ciência e ensino superior, mais um passo no caminho da sua privatização, da sua submissão a lógicas de mercado, da sua transformação em produto para poucos, em vez de direito para todos. Este rumo, que não começou agora mas vem sendo trilhado por sucessivos governos, não é de reforma, nem reorganização. É desmantelamento e venda a retalho.

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