|João Rodrigues

Razão comunista e iluminismo radical

Já estou a ver uma réplica potencial do leitor a tudo isto: se os comunistas portugueses estão cada vez mais fracos eleitoralmente, o que é que esse seu iluminismo radical interessa? Interessa muito. Pode perder-se força e ainda assim ter muita razão, muitas razões.

CréditosTiago Petinga / Agência Lusa

Sei que vou parecer suspeito ao leitor, dado que fui candidato independente pela CDU nas últimas eleições legislativas, sentindo-me, ao mesmo tempo, muito dependente de um coletivo que me ajuda a não terminar em mim mesmo. Não sou neutro, mas procuro ser objetivo na avaliação da razão e das razões comunistas. 

Desde o início do que designam por contrarrevolução que os comunistas portugueses alertam para os efeitos redistributivos regressivos da diminuição dos direitos laborais e do correlativo aumento dos direitos patronais. Desde a adesão ao euro que os salários são a variável de ajustamento, padrão possibilitado pelo empoderamento patronal numa economia assim cada vez mais medíocre. 

Desde a adesão à CEE que os comunistas portugueses alertam para os efeitos desindustrializadores da integração de feição neoliberal desta periferia com economias estruturalmente mais capazes, ainda para mais num quadro de europeização com mecanismos de compensação manifestamente insuficientes. O chamado comércio livre nunca passou do protecionismo dos mais fortes, sabemo-lo bem desde o século XIX, graças à melhor teoria económica prática de que os comunistas nunca prescindiram.

«Desde o início do que designam por contrarrevolução que os comunistas portugueses alertam para os efeitos redistributivos regressivos da diminuição dos direitos laborais e do correlativo aumento dos direitos patronais.»

 

Desde os anos 1980 que os comunistas portugueses alertam para os projetos descaracterizadores da nossa mais radicalmente democrática Constituição, a de 1976, com particular incidência para a revisão de 1989. De facto, Álvaro Cunhal nunca cessou de insistir: «a Constituição da República aprovada em 2 de abril de 1976 é um fiel retrato da revolução portuguesa». É o ódio à revolução democrática e nacional que tem alimentado a política revisionista da direita, com a colaboração do PS. 

Desde aí que os comunistas portugueses alertam para os efeitos negativos no desenvolvimento soberano, no controlo democrático da economia e, portanto, no resto da vida social, da reconstituição de grupo económicos privados em setores estruturalmente geradores de poder e de superlucros, provando-se, de resto, que aí só a propriedade pública é propriedade nacional. O país tem sido sangrado pela transferência de recursos para o exterior, sob a forma de juros, lucros e rendas, dado o controlo externo crescente de setores nacionais absolutamente estratégicos, geridos em função de negócios cada vez mais estrangeiros.  

Desde os anos 1990 que os comunistas portugueses alertam, em livros e panfletos luminosos, para os efeitos desdemocratizadores do Tratado de Maastricht e suas cada vez mais graves sequelas, incluindo o crucial euro, tendo sido os primeiros a chamar a atenção para as suas tendências estagnacionistas. De facto, os comunistas estiveram, nos anos 1990, na vanguarda da defesa de um referendo a esta mudança no regime de política económica, com consequências deletérias em todas as esferas da vida social nacional.  

Desde sempre que alertam, e fizeram-no com particular veemência durante a troika, para os efeitos recessivos das políticas de austeridade orçamental, laboral e monetária, para usar o desdobramento luminoso de Clara Mattei, historiadora da economia política, no seu livro A ordem do capital – Como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho ao fascismo (Temas e Debates, 2024). De facto, ainda há pouco os comunistas chamavam a atenção para os efeitos perversos da subida das taxas de juro pelo Banco Central Europeu ou para a permanente compressão do investimento público, que faz com que Portugal seja um de três países da União Europeia com os mais baixos níveis, em percentagem do PIB. O investimento público é uma variável com efeitos multiplicadores no investimento privado e logo no rendimento nacional.

Desde há alguns anos que os comunistas portugueses alertam para os efeitos perversos do desmantelamento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e contra a ideia de que se pode agir em matéria migratória ao serviço do capital mais explorador, como se o país tivesse capacidades de acolhimento ilimitadas. Exige-se, creio, uma regulação dos fluxos migratórios por uma dupla razão: para defender quem cá está e quem quer vir para cá trabalhar, de modo que ninguém fique vulnerável perante o patronato. A dignidade do trabalho é para todos e ninguém deve estar vulnerável perante os traficantes de seres humanos.

Desde há muito que os comunistas defendem que o neoliberalismo alimenta o neofascismo, sendo este uma das expressões políticas das frações mais reacionárias do capital. Agora, basta seguir o dinheiro dos financiamentos, do Chega à IL. Os liberais até dizer chega da IL, tão ou mais perigosos ideologicamente do que o Chega, têm um Instituto +Liberdade (para explorar). Só em três anos, recebeu cerca de 500 mil euros do nono homem mais rico do país, Carlos Moreira da Silva. A credulidade económico-política, de recorte anti-iluminista, é hoje maciçamente financiada.

«Desde há alguns anos que os comunistas portugueses alertam para os efeitos perversos do desmantelamento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e contra a ideia de que se pode agir em matéria migratória ao serviço do capital mais explorador, como se o país tivesse capacidades de acolhimento ilimitadas.»

 

Desde há anos que os comunistas portugueses vêm alertando, brutalmente isolados no início, que a cultura imperialista da guerra só alimenta o desperdício armamentista, à custa dos Estados sociais e da vida, fazendo do anticolonialismo, do anti-imperialismo e logo do antirracismo modo de atuação, identidade. Hoje, essa luta é mais atual do que nunca: basta pensar nos compromissos que a direita, com apoio mais ou menos assumido do PS ou do Livre, tem vindo a assumir, no quadro da NATO, nesta área. O interesse nacional, o da maioria social, não passa por esta pulsão de morte.

E poderia continuar. Mas o leitor já percebeu aonde quero chegar: não há em Portugal quem tenha alertado tanto e acertado tanto, seja na academia, seja nos movimentos sociais ou em outras expressões de inteligência coletiva, para já não falar dos outros partidos. Desafio-o a comparar. 

Neste contexto, importa renovar a crença na promessa emancipatória aberta pelo melhor iluminismo. O curto e incisivo ensaio da filósofa catalã Marina Garcés – Novo Iluminismo Radical (Orfeu Negro, 2023) – é útil neste contexto Não sendo comunista, esta filósofa combina sagazmente pessimismo da inteligência e otimismo da vontade, resgatando a promessa iluminista enquanto combate à atual «credulidade sobreinformada» e cínica. 

Indo para lá da condição pós-moderna, de um suposto presente eterno, Garcés denuncia o que apoda de «condição póstuma» gerada pela pulsão de morte de um capitalismo sem alternativa – «um novo relato, único e linear: o da destruição irreversível das nossas condições de vida», fazendo do presente «o tempo que resta». 

Garcés reabilita a promessa emancipatória contida no melhor iluminismo: «a pergunta que norteia o iluminismo não é o "até quando?" da condição póstuma, mas o "até onde?" da crítica». Num certo sentido, os alertas comunistas passam sempre por aqui: até onde vai a perda de soberania democrática ou de direitos laborais, por exemplo?

Garcés termina com um diagnóstico pertinente sobre a crise da cultura e das humanidades ditas críticas, tantas vezes perdidas numa desvalorizada denúncia das «relações entre saber e poder», demasiado despreocupadas em relação à esperança fundada na emancipação: «a sua crise está diretamente relacionada com a distância que se abriu entre o que sabemos acerca de nós e do mundo e a capacidade de o transformar». 

«Mas o leitor já percebeu aonde quero chegar: não há em Portugal quem tenha alertado tanto e acertado tanto, seja na academia, seja nos movimentos sociais ou em outras expressões de inteligência coletiva, para já não falar dos outros partidos. Desafio-o a comparar.»

 

 

Eliminar essa distância, «elaborar o sentido e as condições do vivível», é tarefa coletiva, requerendo ação coletiva, ou seja, organização luminosa, como os comunistas portugueses nunca se cansaram de insistir e de praticar com coragem ímpar. De facto, e sem relativismos, «já não se trata de o verbo se ter feito carne, mas de a carne produzir verbos e de os verbos terem consequências na forma como vamos viver na nossa carne».

Já estou a ver uma réplica potencial do leitor a tudo isto: se os comunistas portugueses estão cada vez mais fracos eleitoralmente, o que é que esse seu iluminismo radical interessa? Interessa muito. Pode perder-se força e ainda assim ter muita razão, muitas razões. É sempre necessário distinguir validade e poder. As derrotas políticas não são por si só refutações. A política que interessa é a razão feita movimento, organização. Quem desistir da análise séria, tão objetiva quanto possível, está perdido. Quem desistir de ir de forma luminosa à raiz dos problemas está perdido. E não nos podemos perder, se queremos voltar a vencer.

O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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