O trágico incêndio na Mouraria que matou duas pessoas (uma delas, um jovem indiano de 14 anos que tinha, recentemente, começado a frequentar a escola em Lisboa), as agressões físicas a imigrantes do Nepal em Olhão e a memória ainda bem presente sobre as denúncias acerca das condições de trabalho e de vida nas estufas e campos agrícolas do Alentejo, reabriram o debate sobre a imigração.
Entre o muito que se tem escrito e dito sobre o assunto, tenho-me deparado com algumas críticas à forma de olhar para a questão migratória com «humanismo», afirmando-se, grosso modo, que abrir portas à entrada de mão-de-obra barata que se «encaixa» depois em divisões sobrelotadas ou contentores em condições de vida e de trabalho desumanas, não é humanismo. Pois não, fiquei a pensar, é capitalismo. E é mesmo sobre isso que devemos falar quando falamos de imigração.
A «imigração em Portugal» contém várias realidades em simultâneo. Por um lado, «vistos gold», uma aberração inventada para a compra de cidadania e colocar fortunas a salvo, com danos irreversíveis no que toca à especulação imobiliária, mesmo que o seu «fim» tenha sido agora anunciado, «nómadas digitais» incentivados a instalar-se por cá, reformados europeus a usufruir de benefícios fiscais. No lado oposto da «cadeia migratória», os trabalhadores imigrantes com trabalhos mal pagos, precários, fisicamente exigentes, sazonais, com cargas horárias elevadas, muitas vezes em condições de exploração e a trabalhar da construção à agricultura, do trabalho doméstico à prestação de cuidados, da indústria à restauração e hotelaria.
«Pois não, fiquei a pensar, é capitalismo. E é mesmo sobre isso que devemos falar quando falamos de imigração.»
Portugal tem-se destacado, em estudos que valem o que valem, como um dos países europeus onde há uma maior percepção de que a imigração é boa para a economia (inquérito social europeu de 2018). Aparece à frente da Irlanda, Suíça e Alemanha e nos antípodas daquilo que acontece na Hungria. Ou seja, «os portugueses» tendem a reconhecer a importância dos imigrantes, quer pelo envelhecimento da população, quer pela força de trabalho, quer pelo contributo para a Segurança Social, quer talvez porque sentem alguma solidariedade (qual é o português que não terá na sua família alguém que é ou foi migrante?).
No entanto, num momento de enormes dificuldades internas com o aumento absurdo do custo de vida, salários baixos, desemprego, desigualdades gritantes, problemas na habitação e instabilidade, que não se limita aos imigrantes e se estende aos nacionais, será que a opinião «dos portugueses» poderá ficar mais predisposta a aderir a medidas (aparentemente) restritivas da imigração, que, além de reflexos de xenofobia e racismo latentes, são também sentimentos (esses legítimos) de medo do futuro e revolta? Convém, talvez, falar sobre este desafio actual sem medo de fantasmas porque já bastam aqueles que a direita e a extrema-direita insistem em lançar.
Mais do que um assunto de «fronteiras», de «segurança», de «Nação», de «cultura e identidade nacional» (tudo abstracções e distracções) ou um discurso sobre «direitos humanos» (utilizado de forma vaga e inconsequente), o desafio que enfrentamos hoje é consequência de políticas injustas, que permitem a imparável acumulação de riqueza de alguns e empobrecem a maioria (mesmo quando os governantes se dizem «socialistas»). E isto acontece ao nível internacional e nacional. A forma como reagimos à imigração e aos imigrantes, vai continuar a definir-nos enquanto sociedade. Mas por que vêm, então, os imigrantes?
Desigualdades e capitalismo/ Agência e luta
Vêm porque querem. Vêm para cá porque não podem ficar lá. Vêm porque sabem que vão ter trabalho. Vêm, também, porque a Europa continua a contribuir para que milhões sejam forçados a deixar o seu país de origem. Queremos exemplos? Quando a União Europeia subsidia a produção de tomate e exporta este fruto para o Gana, inundando o mercado ganês, até aí produtor de tomate, e tornando inviável à agricultura nacional continuar a produzir, não será expectável que os trabalhadores ganeses, postos no desemprego, tentem sobreviver e migrem para trabalhar na apanha do tomate no Sul de Itália? Parece irónico, mas é isso que acontece.
Quando as alterações climáticas contribuem para as inundações de vastas áreas no Bangladesh, não será previsível que milhões de pessoas sejam forçadas a procurar alternativas de vida e algumas venham gerir pequenas mercearias de bairro em cidades ou nos campos agrícolas de Portugal? É isso que acontece. Quando empresas britânicas lucram obscenamente com guerras e conflitos e vendem armas no Sudão do Sul (denúncia da Amnistia Internacional), não será compreensível que jovens sudaneses iniciem peregrinações perigosas com passagem pela Líbia e Mediterrâneo na esperança de atravessar a nado pelo Canal da Mancha e tentar chegar ao Reino Unido para sobreviver? É isso que acontece.
«Quando a União Europeia subsidia a produção de tomate e exporta este fruto para o Gana, inundando o mercado ganês, até aí produtor de tomate, e tornando inviável à agricultura nacional continuar a produzir, não será expectável que os trabalhadores ganeses, postos no desemprego, tentem sobreviver e migrem para trabalhar na apanha do tomate no Sul de Itália?»
A forma como empresas multinacionais criam riqueza ao violar direitos humanos gera desigualdades e injustiças que levam as pessoas a deixarem as suas próprias casas e países. E estas pessoas não são «pobres», são, isso sim, empobrecidas pelas políticas de uns e pela ganância de outros e, na maior parte das vezes, estes «uns» e estes «outros» são os mesmos.
Mais do que nos focarmos em querer reduzir, aumentar ou controlar os fluxos de migração, será mais útil defender uma maior igualdade entre países do globo e que uns não atormentem e explorem os outros para lucrar insanamente e provocar fugas em massa de pessoas. E, ao mesmo tempo, defender os direitos dos imigrantes. Ao nível nacional.
Direitos dos imigrantes são direitos dos trabalhadores
A migração é aproveitada, desde sempre, para aquecer os motores do nacionalismo exacerbado e para promover divisões na sociedade. Num contexto como o nosso, onde o mercado de trabalho está cada vez mais desregulado e precarizado, os empregadores que acumulam riqueza à conta da exploração laboral olham para os imigrantes, quer em situação regular, quer irregular (e a maioria não entra ilegal em Portugal mas pode acabar por ficar irregular, até por incapacidade dos serviços públicos de dar respostas céleres), e esfregam as mãos com a possibilidade de pagar salários abaixo do mínimo, recusar direitos, coagir a trabalhar mais horas. E, ao mesmo tempo, que conseguem concretizar esses intentos descartam os trabalhadores nacionais, provocando instabilidade e revolta.
«Mais do que nos focarmos em querer reduzir, aumentar ou controlar os fluxos de migração, será mais útil defender uma maior igualdade entre países do globo e que uns não atormentem e explorem os outros para lucrar insanamente e provocar fugas em massa de pessoas.»
É comum dizer-se que as actividades a que se dedica a maioria dos trabalhadores imigrantes em Portugal são evitadas pelos nacionais, mas tenho cada vez mais dúvidas se será uma verdade absoluta que os portugueses «não as queiram fazer» (ainda por cima no contexto de empobrecimento e desemprego actuais). Talvez seja preciso assumir isto, mas, ao mesmo tempo, responsabilizar o verdadeiro explorador e nunca ceder ao facilitismo e à injustiça de tentar encontrar culpados naqueles que lutam pela sua sobrevivência, até porque «direitos dos imigrantes são direitos dos trabalhadores».
Entre os discursos da direita e as agressões em Olhão
É neste contexto que as declarações de vários protagonistas da direita portuguesa, com pedidos de triagem de imigrantes nas fronteiras portuguesas, mostram as águas turbulentas em que navegamos. Ver a imigração como devendo ser a resposta a uma «necessidade» do mercado e com «contingentes» das pessoas «que precisamos» (disse Carlos Moedas) apaga a migração como projecto de vida, que também é. E, no fundo, defende a existência de um exército de mão-de-obra internacional que pode ser ora contratado, ora descartado.
Em sentido idêntico, escolher imigrantes «que possam interagir melhor connosco, que se possam integrar melhor na nossa cultura, na nossa identidade» (Luís Montenegro) é querer proceder à triagem fronteiriça de seres humanos, fazendo o discurso de categorização hierárquica racial e cultural das populações, os bons e os maus, os que desejamos e os que desprezamos. Associar a imigração ao fantasma da perda de «cultura e identidade nacional» faz parte do discurso racista e xenófobo que utiliza as fronteiras para reforçar a ideia divisória do «nós» e dos «outros» e legitima e dá gás a agressões inqualificáveis como as de Olhão. Não será por acaso que a palavra «negreiros» reentrou no vocabulário no Alentejo. Se há alguns séculos identificava os traficantes de pessoas escravizadas, hoje, no Portugal do século XXI, é utilizada para nomear os intermediários no recrutamento de mão-de-obra agrícola.
O assunto não são as fronteiras
A migração não deve ser debatida com as lentes da caridade, da tolerância, dos «direitos humanos» em sentido vago e inconsequente, mas com um olhar de solidariedade internacional, de humanismo (sim!) e como consequência e condição do capitalismo.
Os movimentos migratórios são inevitáveis, porque sempre aconteceram – e vão continuar a acontecer – na história da humanidade, e são desejáveis, trazem dinamismo e transformação às sociedades. A migração é também uma forma de luta. Grande parte dos imigrantes em todo o mundo são protagonistas de um caminho de resistência contra a exploração, as desigualdades, o fatalismo de se ter o «destino» marcado apenas pelo lugar onde se nasceu. Grande parte dos imigrantes em Portugal, e no mundo, lutam apenas pela vida justa e digna a que todo o ser humano tem direito.
Estas questões apresentam desafios urgentes para os quais a esquerda e os sindicatos deveriam contribuir para encontrar respostas de uma forma mais inequívoca como estão a fazer, de resto, alguns movimentos sociais.
Será disso exemplo o colectivo «Vida Justa», que está a convocar uma manifestação para o dia 25 de Fevereiro, em Lisboa, e agrega portugueses, portugueses descendentes de imigrantes e imigrantes, que vivem e trabalham nos bairros da Área Metropolitana da Grande Lisboa, numa luta conjunta por melhores salários e travão ao aumento dos preços, conscientes que a deterioração das condições de trabalho e de vida de grande parte das pessoas a viver em Portugal, independentemente da sua origem ou contexto, é inaceitável quase 50 anos depois do 25 de Abril. Continuemos por aí.
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