Ninguém tem dúvidas de que vivemos, em Portugal e no mundo, um momento particularmente desafiante quanto à resposta às múltiplas emergências criadas pela pandemia da Covid-19. Desde logo e em primeiro lugar no domínio da saúde pública. Depois no ponto de vista da economia e dos seus impactos, em especial na ameaça à preservação do emprego. Finalmente quanto à defesa dos direitos, liberdades e garantias, questionados pelo entendimento assumido pelo Governo e pelo Presidente da República, no contexto das decisões restritivas adotadas e validadas pela maioria da Assembleia da República, para enfrentar a pandemia e controlar os seus efeitos.
A declaração do Estado de Emergência está prevista no ordenamento jurídico nacional desde 1986 (Lei 44/86, de 30 de setembro) e visa dar escopro jurídico à gestão de situações de particular gravidade, nomeadamente «nos casos de agressão efectiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou calamidade pública».
«Umas das grandes lições que a pandemia revela é que o Estado e os seus serviços essenciais estão fragilizados, tanto pela falta de recursos humanos alocados aos mesmos, como pelos modelos organizativos em que os mesmos se estruturam»
As três declarações de Estado de Emergência, ocorridas desde março até à data, foram sustentadas na verificação de uma situação de calamidade pública em todo o território nacional. O mesmo acontece agora com a nova declaração de Estado de Emergência proposta pelo Presidente da República e aprovada na passada sexta-feira pela Assembleia da República, para vigência entre os dias 9 e 23 de novembro.
Muitas das medidas que constaram nas anteriores declarações do Estado de Emergência, não careciam deste dispositivo legal, para sustentar o seu enquadramento constitucional. Outras e de forma bem expressiva, sem essa declaração representariam uma grosseira agressão aos direitos consagrados na Constituição da República. Assim a questão que coloco não é se tem justificação ou não a declaração do Estado de Emergência para enquadrar constitucionalmente as medidas nela constantes, mas sim questionar as mesmas.
Umas das grandes lições que a pandemia revela é que o Estado e os seus serviços essenciais estão fragilizados, tanto pela falta de recursos humanos alocados aos mesmos, como pelos modelos organizativos em que os mesmos se estruturam.
Durante anos muitos defenderam «menos Estado, melhor Estado», quando era necessário (a pandemia demonstra da forma mais dramática) mais Estado e melhor Estado.
«a declaração do Estado de Emergência é apenas uma forma ardilosa de esconder todas estas debilidades, por via da imposição de medidas restritivas que transferem para o cidadão a responsabilidade total pelo controle da pandemia e a interrupção das cadeias de contágio»
Faltam recursos humanos no Serviço Nacional de Saúde, nas forças de segurança, nas Forças Armadas, na proteção civil e noutros serviços públicos. Faltam equipamentos tecnologicamente adequados para a garantia da qualidade do serviço público prestado. Faltam lideranças qualificadas e tecnicamente preparadas para, em contexto de crise, tomarem decisões ajustadas à especificidade dos impactos da sociedade de risco em que vivemos. Faltam modelos estruturais de organização territorial desenhados com racionalidade e tendo apenas como foco a garantia de um melhor Estado, ao serviço da segurança e bem-estar dos cidadãos. Faltam medidas efetivas de regulação do funcionamento de equipamentos coletivos de acolhimento de idosos. Faltam estruturas de acolhimento de retaguarda, (entretanto criadas por diploma legal em vigor desde a passada sexta-feira), para libertar os hospitais de idosos acamados nos mesmos, por falta de alternativa de acolhimento familiar. Faltam mais transportes públicos, para evitar que as pessoas se amontoem em comboios e autocarros.
Por todas estas razões e muitas outras que aqui não de evocam, a declaração do Estado de Emergência é apenas uma forma ardilosa de esconder todas estas debilidades, por via da imposição de medidas restritivas que transferem para o cidadão a responsabilidade total pelo controle da pandemia e a interrupção das cadeias de contágio.
Por isso é de recusar que limitem os nossos direitos a favor de um direito maior, que demagogicamente se proclama.
A pandemia de Covid-19 é um problema grave com que estamos confrontados, em Portugal e no mundo. Mas ele não será resolvido confinando os direitos dos cidadãos, limitando os direitos dos trabalhadores, adiando as medidas para reforço da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde ou fazendo declarações musculadas de inspiração autoritária.
Por tudo o que aqui exponho manifesto a minha solidariedade com os deputados que, na Assembleia de República, votaram contra o decreto do Presidente da República para a nova declaração do Estado de Emergência.