Seguindo a tendência da generalidade da Europa, também em Portugal as últimas semanas têm sido marcadas por um aumento significativo do número de infectados com COVID-19.
Este facto encerra em si três discretas mas decisivas dimensões, uma que acabo de explicitar e outras duas implícitas mas que todos os leitores já sabem (mesmo que não se lembrem). A primeira é que o aumento de casos em Portugal não é uma originalidade lusitana, algo que anula por completo as teses de que este ou aquele povo são mais ou menos «responsáveis», e que isso se repercute na hora da propagação do famigerado vírus. A segunda é que já em Abril se previa que no Outono haveria uma nova vaga de casos – longe de ser um exercício de adivinhação bem sucedido, previa-se porque é assim que as pandemias funcionam, por vagas. Terceiro e não menos importante, tal como dizem a Organização Mundial de Saúde e o Ministério da Saúde português, hoje está a testar-se exponencialmente mais do que na primeira vaga, pelo que, perante um vírus de tão fácil propagação, dificilmente não se encontrariam mais casos do que quando a testagem era muitíssimo inferior.
Ora, foi justamente neste contexto que, fazendo tábua rasa da evidência e sem fundamentação científica clara, António Costa e o seu Governo acharam que era preciso dar um «abanão» na sociedade portuguesa para «alterar comportamentos», propondo ao Parlamento a aprovação de uma lei que prevê a obrigatoriedade da utilização da aplicação de alegado rastreamento de contágios StayAway COVID, e do uso da máscara na rua sempre que não possa haver distanciamento social.
«Ao projectar de forma quase exclusiva a responsabilidade no comportamento individual de cada pessoa o Governo do PS, os partidos à sua direita e outras entidades do Estado fogem a uma discussão muito mais decisiva que, em boa verdade, se resume numa pergunta: o que fez o Estado para garantir melhores condições sanitárias a quem vive em Portugal?»
A este propósito vale a pena tirar o chapéu ao Governo português. Se a obrigatoriedade de usar máscara na rua não tem particular originalidade – há meses que existe, por exemplo, na Catalunha, sem que isso tenha impedido os números de contágios de crescer exponencialmente –, a obrigatoriedade de utilização de uma aplicação de rastreamento é algo que não existe em qualquer país europeu, mas que comprova os receios que aqui exprimi há alguns meses atrás. No entanto, desengane-se quem achar que a inspiração na vizinha (!) do primeiro-ministro foi o tiro de partida do Governo para a adopção destas medidas, pois a realidade é que já dias antes o Presidente da República tinha acenado com o espantalho do regresso ao Estado de Emergência e/ou a instauração de um recolher obrigatório nocturno.
A estas medidas somaram-se, nos últimos dias, a proibição da circulação entre concelhos no último fim-de-semana de Outubro, o confinamento de Lousada, Paços de Ferreira e Felgueiras, e o anúncio pela Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa de um sistema de sanções a quem infrinja as normas sanitárias que roça o orwelliano. Veremos o que trazem as próximas semanas, mas mais do que futurologia, o que importa mesmo reter é o que estas medidas – e quase todas as anteriores – têm de denominador comum: a responsabilização individual.
Naturalmente, há uma dimensão individual nos cuidados a ter, não vale a pena negá-lo, mas o verdadeiro alcance destas medidas tem uma dimensão que exige reflexão, porque é aí que reside a sua gravidade. Ao projectar de forma quase exclusiva a responsabilidade no comportamento individual de cada pessoa o Governo do PS, os partidos à sua direita e outras entidades do Estado fogem a uma discussão muito mais decisiva que, em boa verdade, se resume numa pergunta: o que fez o Estado para garantir melhores condições sanitárias a quem vive em Portugal?
«aquilo a que assistimos pode representar um importante salto em frente no processo que alguns autores vêm apelidando do «deslize» democrático para o autoritarismo, não apenas pelas medidas tomadas em si, mas essencialmente porque a sua justificação assenta no desmembramento da solidariedade e acção colectiva que são pilares fundamentais para a preservação do tecido democrático»
Sim, já sabemos que fez contratos milionários com operadores privados de saúde. Mas quantos equipamentos públicos foram dotados de condições dignas e seguras para que as esperas pelo atendimento não fossem feitas na rua e ao critério de cada um? Quantos trabalhadores da administração pública foram contratados para fazer os serviços mais expeditos, evitando concentrações de espera à porta? Quantos professores e funcionários foram contratados para permitir o desdobramento de turmas em escolas dos vários graus de ensino? Quantos comboios, metros e autocarros a mais foram colocados a mais em circulação durante as horas de ponta para evitar aglomerações? Quantos inspectores de trabalho foram contratados para permitir à Autoridade para as Condições do Trabalho garantir que as normas de segurança são cumpridas nos locais de trabalho de maior risco? A lista é mais extensa, mas fiquemos por aqui.
A segunda dimensão em que o ênfase ad nauseam na responsabilidade individual é perigoso está no próprio sistema democrático. Confirmando o alerta feito por várias pessoas – incluindo aqui no AbrilAbril – a insuspeita Freedom House alerta para como isso está já acontecer. Mas permitam-me que vá mais longe: como vimos constatando na investigação que subjaz à produção de um livro sobre este tema – para lançamento em breve, e de que, com Manuel Loff e Filipe Guerra, sou co-autor – aquilo a que assistimos pode representar um importante salto em frente no processo que alguns autores vêm apelidando do «deslize» democrático para o autoritarismo, não apenas pelas medidas tomadas em si, mas essencialmente porque a sua justificação assenta no desmembramento da solidariedade e acção colectiva que são pilares fundamentais para a preservação do tecido democrático.
Aí teremos chegado à banalização do excepcional e os nossos pés estarão já atolados no pântano.
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