O 25 de Abril «foi feito a olhar para o futuro»

«Foi então que Abril abriu as portas da claridade e a nossa gente invadiu a sua própria cidade»

A citação de Ary dos Santos[fn]José Carlos Ary dos Santos, As portas que Abril abriu, Ed. Comunicação, Lisboa, 1975.[/fn] ajuda a ilustrar a revolução que aconteceu depois daquela madrugada inicial, em que os militares, com o apoio popular, depuseram o tenebroso regime fascista. Muitos homens e mulheres muniram-se da vontade que lhes corria no sangue para empreender outro país, a partir da terra que conheciam melhor, aquela em que viviam e trabalhavam.

Por vilas, aldeias e cidades, os movimentos de mudança tinham o calo da resistência antifascista e democrática. Assim aconteceu no Barreiro, no distrito de Setúbal. Uma forte presença operária implantou consciência de classe e, depois do 25 de Abril de 1974, um grupo de democratas pôs mãos à obra para ali construir também os alicerces do Portugal democrático que estava a nascer. O AbrilAbril falou com Carlos Maurício, um dos 19 elementos da Comissão Administrativa que a 6 de Maio toma posse, sobre este processo revolucionário e de participação popular.   

Tomaram posse apenas 11 dias depois da Revolução dos Cravos. De que forma decorreu o processo até 6 de Maio? Que memórias guarda desses dias?

Eu estava em casa quando um amigo meu me telefona, eram umas 6h e picos da manhã, e me diz, «pá, liga o rádio porque o governo caiu, despacha-te». E eu despachei-me.

Quando nós depois nos reunimos, a Câmara estava fechada e houve logo a ideia de termos de encontrar uma forma de, ao fim e ao cabo, democratizar aquelas instituições que no Barreiro não existiam, não é? A GNR tinha carros blindados tipo tanques, tinha uma cavalaria que passava diariamente pelo centro do Barreiro para fazer exercícios militares. Sempre que existia aqui uma comemoração de uma data nacional ou internacional, fosse o 5 de Outubro ou o 1.º de Maio, havia sempre a passagem de carros blindados pelo centro da cidade a fazerem um barulho enorme, com a cavalaria também.

E no 1.º de Maio havia sempre aqui distúrbios. Havia um carro que de vez em quando aqui passava, que chamávamos Viúva, que às tantas da manhã batia às portas e vinha buscar pessoas, que umas voltavam e outras não voltavam tão cedo. Portanto, aqui era um clima operário e de grande resistência também. Havia algumas greves, movimentos estudantis, o movimento associativo era muito forte aqui no Barreiro, designadamente o CineClube e não só, colectividades de recreio.

E, portanto, foi-se criando aqui também o conhecimento de muitas pessoas, porque também havia aqui informadores da PIDE, não é? E nós, nessas colectividades ou nessas associações, íamos também percebendo com quem é que íamos falando e íamos criando aqui um certo movimento de intervenção. 

Portanto, quando se dá o 25 de Abril, de facto, este movimento... bom, e tinha havido eleições em 1969, em que, de facto, a CDE tinha tido a maioria em todas as juntas de freguesia do concelho para a Assembleia Nacional, mas perdeu, claro. Eles falsificaram os resultados. Então, desde o dia 26 de Abril, praticamente à tarde, até ao dia 6 de Maio foi o desenvolvimento de uma série de reuniões, também com a população, de contacto com algumas pessoas que já conhecíamos, cada um de nós conhecia outro que tinha tido algumas intervenções, quer no movimento associativo e que nós sabíamos quais eram enfim, as suas ideias democráticas, independentemente depois, como se vieram alguns a revelar, também, com as suas opções políticas e partidárias, mais tarde, depois das eleições. 

Como foi a escolha dos membros para a Comissão Administrativa? 

É interessante ter presente que ela foi constituída por 19 elementos; dois operários, seis empregados bancários e de escritório, um comerciante, um estudante de Engenharia, nove licenciados na área de Engenharia, Farmácia, História, Direito, Economia e Matemática, e entre eles uma mulher [ver caixa lateral].

É importante ter isto presente, porque a preocupação foi conseguir ter uma representatividade das diferentes áreas do concelho, o que acabou por vir a constituir-se através da Comissão Administrativa e da criação, depois, de um conjunto de grupos de trabalho. Depois de esses nomes terem sido acordados entre todos foi contactada a Junta de Salvação Nacional e houve um plenário que, na nossa opinião, era a legitimação do resultado das eleições de 1969 em que tínhamos ganho, e portanto nós dizíamos que esse grande plenário legitimou de alguma forma a constituição daquela que seria a Comissão Administrativa. A legalização seria feita através do Movimento das Forças Armadas (MFA), o que acabou depois por ser feito. 

Mas o código administrativo não permitia eleger tantos representantes… 

Esse é um aspecto interessante. Após a tomada de posse tivemos uma informação do governador civil a dizer que as comissões administrativas das câmaras não podiam ter um número de elementos superior ao que tinha sido destituído, que eram sete, e portanto pedia para informar, até ao dia 11 de Maio, quais eram os nomes que iam ser cortados. É preciso ter presente que ainda não havia governo, o primeiro Governo Provisório foi em 16 de Maio. Então a posição foi esta: não se tira ninguém, vamos falar com o tenente coronel André Infante e vamos dizer-lhe que já informámos a população, que demos conhecimento a todas as empresas da constituição da Comissão Administrativa, bem como à imprensa e também ao pessoal, e que por todas estas razões não íamos voltar atrás. E o que é certo é que não voltámos atrás e ficaram os 19. E ele dizia sete, porquê? Porque era isso que dizia o Código Administrativo.

Pensavam que iam ficar por quanto tempo? Entretanto, nenhum de vocês tinha experiência autárquica. 

Todos nós tínhamos o nosso trabalho e portanto, a ideia é que isto seria rápido. Não dizíamos qual era o tempo, mas pensávamos que fosse rápido. O que é certo é que acabou em 12 de Dezembro de 1976, com as primeiras eleições em liberdade. Nenhum de nós tinha a experiência de uma autarquia, por isso houve um grande trabalho de aproximação aos trabalhadores para perceber como é que eles funcionavam, tentar que os serviços não parassem, que não existissem também boicotes, mas sem qualquer espécie de pressão. Houve sempre um grande clima de diálogo, percebendo como é que funcionavam, como é que funcionava a Câmara. Recordo-me de nas primeiras reuniões dizermos: «Meus amigos, vocês é que sabem como é que a Câmara trabalha. E a Câmara tem de continuar a trabalhar, com vocês. Nós vamos trabalhar e falar convosco. Vamos ouvir as vossas opiniões para melhorar também.» E eu falo da Câmara, mas o mesmo aconteceu com as juntas de freguesia, onde também se criaram comissões administrativas. Portanto, isto foi uma revolução de facto. Uma revolução a nível do aparelho de Estado, neste caso do aparelho local.

Qual foi a primeira decisão que tomaram?

Na primeira reunião que fizemos, ainda antes da tomada de posse, houve logo ali a ideia de que uma das primeiras decisões a tomar seria a alteração do nome do Parque Oliveira Salazar, que é o parque central da cidade. Foi uma ideia de todos, de que devia ser substituído pelo nome de uma mulher e revolucionária, que acabou por ser a Catarina Eufémia, e que depois veio a ser aprovado. A outra coisa de que também se falou foi [acabar com] os atestados de bom comportamento moral e civil, que eram passados através da GNR, e também aí se acordou que era uma medida a tomar de imediato.

E quais eram as vossas prioridades? 

As prioridades foram definidas logo na primeira reunião e estavam muito ligadas ao que eram as aspirações do povo do Barreiro – democratizar a vida local e o que nós aqui entendíamos era a participação activa e directa, mas organizada, das populações. Fazermos plenários, e fizemos bastantes, e atendermos os munícipes, não só nas sessões de Câmara, mas também em dias próprios. Também a criação de comissões de moradores, que foi espontânea, e comissões de bairro, que nasceram como cogumelos. Em relação aos trabalhadores da Câmara, foi realizar reuniões e perceber quais eram os seus problemas, promover a eleição dos seus representantes para contactarem connosco, e um aspecto interessante foi a reclassificação de alguns trabalhadores pelas suas funções, porque, como muitos não tinham a quarta classe, era tudo servente. Depois a nível das instituições, também a questão da democratização e, portanto, a saída da GNR do concelho e a sua substituição pela PSP. A Guarda Nacional Republicana aqui era o elemento visível e palpável da repressão. Eram as capicuas, andavam sempre aos pares com a espingarda às costas, com o cacetete e a pistola. É interessante porque, quando a GNR sai, houve um período em que não havia aqui autoridade, não havia forças de segurança. Mas não houve problemas, as próprias comissões de moradores e de bairro estavam atentas a alguma coisa que havia. 

Entre as prioridades esteve também a criação de seis grupos de trabalho na comissão administrativa que abrangiam toda a actividade da Câmara e um grupo coordenador de quatro elementos. Nos primeiros meses, para além destas comissões, criaram-se comissões de apoio a estes grupos de trabalho, como a comissão de apoio à toponímia, à associação social, à fiscalização do meio ambiente, a oficinas, transportes, biblioteca, ensino, arte e arqueologia. Isto envolveu dezenas de pessoas, para além dos elementos da comissão administrativa. 

Esses grupos de trabalho eram uma espécie de pelouros?

Exacto. Estas comissões de apoio reuniam e é importante ter presente que nós reuníamos à noite. A comissão administrativa reunia às 21h, às terças-feiras, e normalmente acabávamos às 2h ou 3h da manhã e alguns iam trabalhar depois no outro dia, até que, a partir de certa altura, conseguimos ter algumas dispensas dos empregos onde estávamos. 

Na ditadura, os municípios eram meras extensões do aparelho fascista e viviam isolados, mas com as comissões administrativas isso acabou. 

Foi uma das grandes conquistas, exactamente. Surgiam problemas no município que seriam idênticos aos problemas de outro município, como é que nós podíamos saber que as decisões que estávamos a tomar eram as decisões mais correctas? Só com um trabalho colectivo. Então foi criada a Reunião Inter-Câmaras (RIC), que reunia no edifício da Câmara Municipal de Setúbal (capital do distrito) com um elemento de cada comissão administrativa, que fazia parte dessa RIC, e aí levavam-se os problemas de cada comissão administrativa. Aí discutia-se colectivamente qual era a orientação, qual era a opinião e era isso que seguia para os municípios. Se essas questões não fossem tanto de carácter regional ou local eram levadas ao MFA ou era feito um contacto a nível ministerial. Portanto, a RIC tem este grande papel de evitar que existisse um vazio legal porque o código administrativo estava em causa, era o código administrativo do Marcello Caetano, mas era por ele que se regiam os municípios. 

No Barreiro residia o maior pólo industrial de então no nosso país, mas este era também um território com muitos problemas e carências.

Desde logo na Câmara. Os serviços técnicos tinham um engenheiro civil, um engenheiro técnico civil e um estudante de arquitetura. Eram os únicos técnicos que havia aqui. Os consultores eram consultores externos e trabalhavam à tarefa. Dois arquitectos e um engenheiro, a quem pagavam e que não viviam cá.

O Barreiro foi uma terra retalhada pelo caos urbanístico. Tudo o que era hortas ou quintas era transformado em cimento. As ruas não ficavam acabadas. Os chamados urbanizadores eram urbanizadores que faziam as obras, mas não as acabavam, essencialmente passeios e pavimentação. Aqui havia cerca de 30 bairros ilegais, na chamada parte rural. Eram construídas casas sem planos nenhuns, sem esgotos, sem arruamentos, sem electricidade.

«Nós saíamos do Barreiro de barco sem ver o sol e quando passávamos ao Seixal é que víamos Lisboa cheia de sol. Havia um dito que aqui corria, que era "bombas sobre Hanói e gases sobre o Barreiro".»

 

Quanto à poluição, isto era terrível. Eu estudei em Lisboa, fui estudar para o liceu aos dez anos. O meu pai era torneiro mecânico na CUF. Eu morava perto do complexo [da CUF] e, com dez anos, muitas vezes saía de casa com um lenço na boca, porque havia metalurgias do cobre, enxofre e ácido sulfúrico que deitavam gases em que, por vezes, era nevoeiro autêntico e nós não podíamos respirar. Ficávamos com um sabor adocicado na boca, não conseguíamos respirar, era difícil. Muitos trabalhadores iam para aquilo que se chamava o hospital, que era na Misericórdia, com problemas respiratórios.

Nós saíamos do Barreiro de barco sem ver o sol e quando passávamos ao Seixal é que víamos Lisboa cheia de sol. Havia um dito que aqui corria, que era «bombas sobre Hanói e gases sobre o Barreiro». Ao mesmo tempo, a Siderurgia Nacional, que era no Seixal, tinha um alto forno, que deitava uns fumos quase vermelhos e que, com o vento noroeste, vinham para o Barreiro, ou seja, além dos gases da CUF, numa certa zona do Barreiro ainda apanhávamos com os gases da Siderurgia.

Aí se foi criando a consciência política e de revolta da população, que ajuda a compreender o porquê de o Barreiro ter sido uma das primeiras localidades do País a criar uma comissão administrativa.  

Quando eu digo que, em 1969, o Barreiro ganhou as eleições em todas as juntas, naquela freguesia, para a Assembleia Nacional fascista, já se vê qual era a consciência de classe, a consciência política. E isso, os pais também passam aos filhos, de alguma forma. Aliás, eu sentia os problemas que o meu pai também tinha, porque ele dizia como é que era aquilo na CUF, qual era o ambiente, quais eram as relações de trabalho.

E, portanto, isto criou esta vontade de mudar. E quando surge o 25 de Abril, isto foi uma explosão autêntica. Havia uma identificação de objectivos, que era mudar isto, isto estava mal e tinha de se mudar. E, portanto, havia essa unidade relativamente a alguns objectivos de liberdade, de expressão e de vida diferente.

As comissões de moradores são um exemplo de como a população estava empenhada no processo democrático. De que forma ajudaram a alavancar essa mudança?

Claro, claro. Nós tivemos comissões de bairro em todas as freguesias. Eram comissões de bairro ou de moradores, havia umas que se identificavam como comissões de bairro e outras de moradores.

As câmaras não tinham finanças próprias, no caso daqueles investimentos básicos, principalmente parques infantis, a Câmara forneceu materiais e as comissões de moradores e de bairro fizeram vários parques infantis. Nalguns casos foram eles próprios que construíram, com o material que arranjaram, os próprios brinquedos para as crianças. As comissões de bairro também, em relação à higiene urbana, estavam atentas e fizemos algumas campanhas de limpeza do concelho. 

Muitas vezes fica-se com a ideia de que as comissões administrativas serviram para resolver necessidades imediatas, mas não foi bem assim...

Nós fomos tentando resolver problemas imediatos e urgentes, a olhar para o futuro. E isto não foi só no Barreiro. Em relação, por exemplo, ao ambiente, nós acabámos por fazer a ligação da Comissão de Protecção do Ambiente com as juntas de freguesia, porque era importante que as juntas, que estão mais próximas das populações, e que sentem os problemas de uma forma mais premente e mais directa, nos fizessem chegar esses elementos. Em 17 de Junho de 1975 foi criado um grupo de planeamento com arquitectos e um jurista, que  permanece e evolui até aos dias de hoje.

Sobre um serviço nacional de saúde, já falado assim nessa altura, a RIC teve uma intervenção no debate daquilo que foi a criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e teve também uma intervenção com uma proposta para um anteprojecto de reordenamento do território e reorganização da Administração Local. Esta proposta saiu da RIC para o governo, em Dezembro de 1974. Nesse mesmo mês, numa reunião com o secretário de Estado, a Câmara [do Barreiro] sugeriu a ampliação do hospital e a criação de um centro de saúde que veio a ser criado num posto da previdência, e também foi feito, com uma comissão de bairro, um infantário no Bairro 25 de Abril. No ano seguinte, na acção que a Câmara tinha, já conhecedora do funcionamento do Barreiro, e relativamente à parte cultural e de arte, criou-se um grupo de animação desportiva e cultural que envolvia todas as colectividades do concelho. Ou seja, a acção não era só a nível do buraco, do esgoto, era a nível de uma estrutura que se ia criando a pensar no futuro.  

Propusemos, através do grupo de planeamento, uma localização diferente para o hospital distrital, que foi aceite e que é a actual. A via rápida tinha um traçado completamente despropositado, caríssimo, também por esse grupo de planeamento foi feita uma alteração que foi aprovada e que é a actual, que está a funcionar. Em Dezembro de 1976 é feito um diagnóstico ao tratamento dos esgotos, é feito também um contrato para um projecto da ETAR, que é feita 30 anos depois. Também nesse ano, a lixeira de Coina [onde outrora se depositaram os lixos dos concelhos de Almada, Barreiro, Moita, Sesimbra e  Seixal] acaba e é comprado um terreno na Moita, para depósito do Barreiro e da Moita, para a criação de um aterro sanitário, que vem a ser criado em 1993. 

O 25 de Abril, com aquilo tudo que se criou, foi feito olhar para o futuro, desde as comissões administrativas até à Constituição.