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União Europeia ao lado de Trump contra a Venezuela

É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, anotar os governos que, na Venezuela, virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas.

Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018.
Encontro do Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, e do Secretário de Estado norte-americano Michael Pompeo, em Washington, Junho de 2018. Créditos / US Department of State

Uma semana de atraso é caricata para funcionar como disfarce para uma subserviência rasteira anunciada. A União Europeia, com o governo português bem na linha da frente, segue a estratégia intervencionista e potencialmente fascista de Donald Trump na Venezuela. É importante, para memória futura e inevitável exigência de responsabilidades políticas e humanitárias, começar a anotar, um por um, os governos que virão a ser responsáveis por uma chacina de vidas humanas que poderá ser o resultado de uma de duas vias: a guerra civil, na esteira da Síria; ou uma ditadura fascista, a exemplo de Pinochet e alguns outros.

No seguidismo em relação à estratégia de Trump, a União Europeia assume a sua conivência com o golpe na Venezuela de uma maneira que contraria a maioria dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, apesar de esta entidade ser habitualmente considerada uma simples correia de transmissão dos desejos e interesses de Washington.

Do alto dos seus púlpitos ou na telegrafia dos seus twitters, os dirigentes da União Europeia dirão que não, nada têm com a decisão de Trump, porque o presidente norte-americano reconheceu Juan Guaidó ao mesmo tempo que este se autoproclamou, enquanto eles têm a boa vontade de dar uma semana a Nicolás Maduro para convocar eleições presidenciais. Caso contrário… reconhecerão Guaidó. Uma posição muito diferente, como se percebe; sabendo desde logo que Maduro não aceitará um ultimato para abdicar de um mandato constitucionalmente legítimo, assente em eleições democráticas, livres, não contestadas institucionalmente e realizadas apenas há oito meses. Poderiam até ter sido mais recentes, mas foram antecipadas para Maio de 2018 por exigência da oposição.

É interessante ouvir o titular das Necessidades exigir eleições democráticas e livres a Maduro. Sobretudo por ser o mesmo ministro a quem não consegue ouvir-se qualquer reparo ao actual governo fascista da Ucrânia, nascido de eleições com abstenção idêntica às presidenciais da Venezuela. Não por ter havido um qualquer «boicote» de qualquer oposição; tão só porque a Ucrânia estava – como está – em situação de guerra e cerca de meio país vive acossado pelo poder de forças armadas e milícias fascistas, razão de peso para os cidadãos não irem às urnas.

Se o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev1, não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de diferença.

Nada de novo a rolar

A linguagem própria da comunicação mainstream recusa-se a usar a expressão «golpe de Estado» para identificar o que está a passar-se em Caracas como resultado das tramas urdidas em Washington. Trata-se apenas, como dizem Trump, Bolton e Pompeo, enormes vultos das liberdades e dos valores democráticos, de «restaurar a democracia» na Venezuela. Um passo absolutamente necessário porque o presidente democraticamente eleito é «um usurpador», enquanto um autoproclamado «presidente interino», invocando a Constituição do país para a violar, é um «legítimo» chefe de Estado – mesmo que nunca se tenha candidatado a presidente e use o cargo de presidente do Parlamento, em que também se autodesignou, para se apropriar de atribuições de outros órgãos institucionais. Uma verdadeira lição de separação de poderes.

«Se o senhor ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal e alguns dos seus parceiros, entre eles alguns com as mãos sujas de sangue na Síria, entendem que a liberdade e a democracia da Ucrânia são exemplares e a solução é repetir em Caracas o famoso golpe de Maidan, em Kiev, não precisam de fingir que entre eles e Trump ainda vai uma semana de diferença»

Nada é novo neste mecanismo tão democrático. Passando, deste feita, ao lado da Ucrânia e fixando-nos apenas no «quintal das traseiras» dos Estados Unidos – a doutrina Monroe está de boa saúde e recomenda-se – «restaurações democráticas» assim sucedem-se há mais de dez anos na região.

Honduras

Muitos ainda terão na memória o caso das Honduras, em 2009, onde o presidente democraticamente eleito foi deportado para a Costa Rica, deposto pelo presidente do Parlamento com assessoria de outro grande democrata, John Negroponte – uma vida ao serviço do intervencionismo de sucessivos presidentes norte-americanos. Alguém que, também nas Honduras, mas noutra fase da democracia recomendada pelo Departamento de Estado, tinha aconselhado a criação de esquadrões da morte, mostrando assim uma vasta amplitude de meios ao dispor para atingir os fins pretendidos.

A partir de então, as Honduras vivem uma história de eleições falsificadas, mas todas elas aceites em Washington, Bruxelas, Paris, Berlim ou Lisboa como perfeitamente válidas, segundo os cânones da democracia. Viveu-se recentemente mais um episódio da saga, em que a manipulação foi tão grosseira que Washington e a Organização dos Estados Americanos demoraram um mês a validar os resultados. Mas validaram-nos – e nisso não verá o ministro Santos Silva qualquer ofensa à democracia, a legítima, a que proporciona os resultados que os democratas sem mácula consideram apropriados ao país.

Paraguai

Depois, em 2011, chegou a vez do Paraguai, onde um ex-bispo católico, à frente de uma vasta coligação progressista, teve a inusitada coragem de enfrentar séculos de poder dos terratenientes, os latifundiários.

O que foi ele fazer!?... Sob a batuta da embaixadora norte-americana, logo no Parlamento houve quem encontrasse maneira de transformar maiorias em minorias, legitimidade em impeachment presidencial; o ex-bispo retirou-se, substituído pelo seu vice-presidente, e o fascismo banqueiro e latifundiário reinstalou-se, um pouco mais benévolo que o do carniceiro Stroessner, mas fascismo social, militar, sob capa política «democrática». Nada que ofenda as sensibilidades do homem das Necessidades e dos seus parceiros de Lisboa a Budapeste, de Bruxelas a Varsóvia.

Equador, Brasil

A embaixadora norte-americana transitou de Assunción para Brasília e em terras brasileiras o Congresso, sintonizado com uma justiça muito justiceira, declarou o impeachment da presidenta e o vice-presidente subiu de posto.

Os acontecimentos daí resultantes, iniciados em fins de 2015, ainda estão em curso com novas e profícuas benfeitorias para a democracia, moldada esta em forma de Bolsonaro com o mesmo barro de que foi feito Trump. E para isso foi mesmo preciso prender Lula da Silva para não ganhar as eleições, uma vez que não tinha rival por próximo.

Em paralelo, o presidente progressista do Equador foi posto de lado e a contas com a justiça enquanto o seu vice-presidente assumia funções e foi agora um dos primeiros a dar a mão a Guaidó contra Maduro, o «usurpador».

Verdadeiramente independentes e soberanos, sobraram, na América Latina, a Bolívia – sempre sob várias ameaças – Nicarágua, Cuba e a Venezuela. A «troika da tirania», como tão apropriadamente a baptizou, recentemente, o conselheiro para a Segurança Nacional da administração de Donald Trump, John Bolton.

É contra esses países, e também contra o México, que agora se desviou perigosamente do guião, que está em curso a operação «restaurar a democracia». E o Brasil, o Paraguai, as Honduras e o Equador são bons exemplos de «democracias restauradas».

Petróleo e democracia

É um dogma: petróleo e democracia andam sempre de mãos dadas. E a relação é directamente proporcional, portanto quanto mais petróleo, mais democracia.

Sabemos bem que assim é. Na Arábia Saudita, por exemplo, onde existem as segundas maiores reservas petrolíferas; e no Koweit e Emirados Árabes Unidos, sétimo e oitavo no ranking dos mais dotados, como pode apurar-se na página 12 da publicação BP Statistical.

Conhecemos igualmente os casos de países onde não havia democracia e agora ela jorra abundantemente, para não haver infracções ao dogma que rege as coisas do mundo. Por exemplo, no Iraque e na Líbia, quintas e nonas maiores reservas mundiais, onde apropriadas guerras «restauraram a democracia» para franquear o acesso livre às riquezas do subsolo.

Mas houve e há casos onde abunda o petróleo e faltava, ou ainda falta, a inerente democracia que determina a sua partilha segundo o modelo transnacional.

Era assim no Brasil e no Equador, mas o problema está em vias de resolução. Sobretudo no Brasil, onde nos tempos de Lula da Silva foram detectadas reservas de petróleo que catapultaram o país para um surpreendente e apetitoso terceiro lugar do ranking – 200 mil milhões de barris, menos 66 mil milhões que a Arábia Saudita. Uma riqueza fabulosa que corria o risco de ficar ao serviço dos interesses egoístas do povo do Brasil, e não da grande irmandade mundial.

Como todos acabamos de perceber, agora que a Petrobrás vai a caminho do grande leilão mundial, a democracia e o petróleo deram as mãos também no Brasil. Tal como no Equador, pouco falado mas ainda assim o 19º país em reservas petrolíferas, do mesmo nível das que estão detectadas no México – onde a empresa pública petroleira, a Pemex, continua sob pressão para deixar de o ser.

Mas há um país onde existe uma situação intolerável, um caso em que o governo teima em manter nas mãos da população o usufruto das riquezas petrolíferas. E que riquezas!

Nada mais, nada menos, que a maior potência do mundo em reservas petrolíferas, com 300 mil milhões de barris, mais 37 mil milhões que a famosíssima Arábia Saudita, mais cem mil milhões que o Brasil.

A Venezuela!

Tanta riqueza não pode estar apenas na mão do povo de um país. É reparti-la, entregá-la às transnacionais que verdadeiramente conhecem o sector e o fazem verter para o mundo inteiro, tão democraticamente como ordenam o mercado e a inquestionável ordem neoliberal.

E o mercado é oprimido na Venezuela. Torna-se necessário «restaurar a democracia» para que ele se sinta livre e o petróleo jorre para todos. É simplesmente o que está a acontecer pelas mãos do eleito Guaidó, embora ninguém o tenha elegido para o cargo que ocupa e do qual se permite fazer ultimatos aos «usurpadores».

Lei eleitoral à medida

Juan Guaidó demonstrou, nas últimas horas, estar compenetrado do seu papel. E também ele dá ordens ao governo legítimo, tal como os senhores do mundo e da democracia, mas a genuína: ele exige eleições, mas que não sejam realizadas segundo o sistema legal em vigor mas com outro – que ele e os mentores externos ditarão, tal como mandam que se realizem eleições para que o golpe seja perfeito, isto é, não pareça um golpe.

Pelo que tem vindo a perceber-se, os interesses que fizeram avançar Guaidó já demonstraram que a sua democracia se constrói à base de ultimatos, arbitrariedades e jogos fraudulentos entre os conceitos de legitimidade e ilegitimidade.

Deduz-se, por isso, que não excluirão quaisquer meios para atingir os objectivos que já estabeleceram entre si.

Um deles é o recurso à agressão militar. Não tardará que Guaidó, fazendo uso dos poderes que lhe foram conferidos por interesses externos, chame países «amigos» como o Brasil, a Colômbia – que é parceiro da NATO – ou o Paraguai, para que reponham a «ordem democrática».

«Não será difícil vaticinar que tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.
Mais difícil será prever como tudo irá acabar. Para todos os efeitos, já são conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa»

Talvez, por este caminho, as pretendidas eleições decorram manu militari, como na Ucrânia, onde os resultados foram tão bons.

Ou talvez não.

Pode acontecer que as instâncias legítimas da Venezuela e o povo resistam às agressões, sejam elas políticas ou militares. E que não entreguem sem lutar o que tanto custou a conquistar.

Se os poderes externos insistirem, no horizonte está o pior dos pesadelos de um país, a guerra civil. Daí à carnificina não será preciso dar mais qualquer passo. Temos ainda diante de nós o caso da Síria, que se iniciou na sequência de ultimatos impostos a um governo legítimo e soberano, na sequência de manifestações orquestradas do exterior – como está abundantemente provado.

Ou, em alternativa, no horizonte está também a imposição de um regime fascista de onde nascerá, radiosa, a democracia.

Pode ainda acontecer, no limite, que o presidente legitimamente em funções na Venezuela, fazendo uso dos poderes que a Constituição lhe confere, peça socorro a países amigos, que os tem.

Não será difícil vaticinar que tempos dolorosos se avizinham da Venezuela e dos povos da América Latina.

Mais difícil será prever como tudo irá acabar. E que nunca mais nenhum governo da União Europeia tenha o desplante e a ousadia de queixar-se dos crimes de Donald Trump.

Para todos os efeitos, já são conhecidos alguns responsáveis pelo que vier a acontecer. E o governo português não estará isento da sua quota-parte. A comunidade portuguesa na Venezuela bem poderá queixar-se da armadilha que lhe foi montada pelos que mandam em Lisboa.

  • 1. Em 2017 passou desapercebida uma notícia transmitida pela Reuters sobre a realização na Venezuela, nos meios ligados à oposição de direita, de sessões de cinema onde se passava um documentário favorável ao golpe de Maidan, com o objectivo de ensinar aos jovens direitistas venezuelanos as técnicas de armamento e a táctica de luta de rua utilizada pelos grupos pró-Maidan. A notícia não informa a mão generosa que propiciou tal peça formativa, mas não é difícil adivinhar.

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