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«Quintal das traseiras» a ferro e fogo

A velha doutrina de Washington parece caminhar sobre rodas, mas uma agressão dos Estados Unidos e colónias contra a Venezuela soberana pode não ser uma simples e vingativa degola de inocentes.

Marinheiros norte-americanos e fuzileiros colombianos preparam missão, durante exercício conjunto em Mantuntungo, Colômbia, em 2012. Foto de arquivo.
CréditosJuancarlos Paz, Spc / U.S. Army

A guerra conduzida pelos Estados Unidos contra a Venezuela está em marcha. Independentemente dos contornos militares que vier a assumir, o pretexto político já foi definido – a suposta «ilegitimidade» do novo mandato de Nicolás Maduro –, os encontros conspirativos regionais sucedem-se e as provocações belicistas também, enquanto as pressões diplomáticas se intensificam. Porém, nem tudo poderá correr de feição para os promotores da agressão: a juntar à disponibilidade da Venezuela para resistir ganha forma a possibilidade de a Rússia vir a estabelecer uma base aeronaval permanente em zona insular do território venezuelano.

A velha doutrina de Washington sobre o domínio «do quintal das traseiras» – as Américas Central e do Sul – reactivada a partir de 2008 com uma série de golpes políticos e diplomáticos, sob fundo militar, parece caminhar sobre rodas. Uns atrás dos outros, os governos latino-americanos que opuseram a soberania à subserviência desaparecem do mapa e os seus sucessores representam agora postos avançados contra os que falta abater: a «troika da tirania», definição estabelecida em Washington para englobar Venezuela, Nicarágua e Cuba; e a Bolívia, que aguarda novo assalto.

A partir do momento em que se completou no Brasil o processo golpista iniciado em 2016 e os novos dirigentes do país mostraram, em curtos dias, absoluta disponibilidade para se assumirem como servos coloniais, a guerra contra os países renitentes vai sendo afinada, tendo como próximo objectivo a Venezuela.

A escolha nada tem de surpreendente, trata-se do país que tem referenciadas as principais reservas de hidrocarbonetos do mundo, superiores às da própria Arábia Saudita, circunstância que, em Washington e arredores, é absolutamente incompatível com uma política de soberania nacional.

Conspiração em Brasília e Bogotá

Viajando pelo «quintal» para abençoar a posse de Jair Bolsonaro, o secretário de Estado norte-americano e ex-patrão da CIA, Michael Pompeo, concentrou-se em activas reuniões de bastidores.

Com o novo presidente brasileiro estabeleceu os próximos passos do que será a «luta contra os regimes autoritários de Venezuela e Cuba». Antes ainda de serem empossados, os novos dirigentes brasileiros tinham multiplicado sinais dando conta da sua vontade de desempenharem um papel principal numa intervenção contra a Venezuela. O vice-presidente e general Hamilton Mourão1 terá exagerado até no entusiasmo, pelo menos em termos de timing, oferecendo-se para enviar «uma força de paz» com destino a Caracas.

A seguir, Pompeo viajou para Bogotá, Colômbia, ao encontro de outro chefe fascista, Iván Duque, com quem delineou o «isolamento diplomático» da Venezuela.

Kerch reproduzido na Guiana

Por essa altura, primeiros dias de Janeiro, estava em desenvolvimento uma provocação no terreno, aliás a fazer lembrar metodologicamente a que foi tentada pelo fascismo ucraniano contra a Rússia, em 25 de Novembro, no Estreito de Kerch.

Em 22 de Dezembro de 2018, a Marinha venezuelana vira-se forçada a expulsar das suas águas territoriais dois navios ao serviço da Exxon Mobil, o principal fornecedor de combustíveis do Pentágono, que ali faziam prospecção de hidrocarbonetos sem terem sido convidados.

Essa atitude de Caracas em defesa da soberania venezuelana foi qualificada, em 4 de Janeiro, como «uma provocação da Venezuela que põe em causa a segurança colectiva», no artigo 9º da declaração resultante da reunião do chamado Grupo de Lima, a etapa seguinte do périplo de Pompeo.

Os membros do Grupo de Lima, uma entidade informal constituída por fiéis seguidores regionais das estratégias delineadas por Washington, assumiram esta posição partindo do princípio de que os intrometidos navios estariam em actividade em águas territoriais disputadas entre a Guiana (ex-Guiana Britânica) e a Venezuela.

Existe, na verdade, uma indefinição de estatuto relativa a um território florestal não habitado de 160 mil quilómetros quadrados2 e que resultou do facto de os colonizadores britânicos e espanhóis não terem estabelecido esse sector de fronteira entre as Guianas Britânica e Espanhola, hoje território venezuelano.

O contencioso esteve praticamente congelado entre o século XIX e 2015 – houve um acordo que deixou o assunto entre parêntesis em Genebra, em 1966 – até que surgiram indícios fortes da existência de hidrocarbonetos nas águas territoriais correspondentes a essa zona por definir.

Porém, em 9 de Janeiro, a Vice-presidente da Venezuela, Delcy Rodríguez3, provou, durante uma conferência de imprensa de âmbito internacional, que os navios da Exxon Mobil não estavam em águas disputadas, mas sim em águas venezuelanas na foz do rio Orenoco. Delcy Rodríguez apresentou várias provas: a posição exacta em que se encontravam os navios, reveladas por um dos capitães durante conversações com a Marinha venezuelana; o qual admitiu ainda possuir apenas uma autorização escrita do governo da Guiana, que aliás fora derrubado na véspera através de um estranho episódio: o deputado governamental que assegurava a maioria votou contra o executivo numa moção de censura e a seguir fugiu do país, refugiando-se no Canadá.

O Governo venezuelano exigiu então, na sequência da apresentação destas provas, que o Grupo de Lima retirasse o artigo 9º do seu comunicado, o que acabou por acontecer, embora com votos contrários do governo fascista paraguaio e, significativamente, do Canadá.

Doutrina hipócrita

Apesar desse recuo, o Grupo de Lima, regido por Pompeo, deixou estabelecida a sua doutrina agressiva contra a Venezuela ao postular a «ilegitimidade» do novo mandato de Maduro, porque resultante de eleições que não devem ser consideradas por terem tido 54% de abstenções, alegadamente devido a um boicote por sectores da oposição fascista dirigida de Washington.

54%

Abstenção comum nas eleições presidenciais norte-americanas e recentemente ocorrida no Chile e nas Honduras torna-se motivo de «ilegitimidade» quando ocorrida na Venezuela.

Ora as abstenções de 54% são comuns nas eleições presidenciais norte-americanas, mesmo sem que haja, como houve na Venezuela, ameaças contra votantes, sabotagem de meios de transporte e outras situações anómalas.

E 54% foi a abstenção ocorrida, semanas antes, nas eleições que entronizaram Sebastián Piñera, discípulo de Pinochet, como presidente do Chile. Sensivelmente na mesma ocasião foi detectada mais uma gigantesca fraude na eleição de Juan Hernández nas Honduras, de tal modo que os Estados Unidos e a própria e domesticada Organização dos Estados Americanos (OEA) demoraram mais de um mês a reconhecê-la.

E que dizer do Brasil, onde as eleições presidenciais se realizaram depois de encarcerado e impedido de concorrer o candidato que, segundo as sondagens, tinha a eleição praticamente assegurada?

A «ilegitimidade» de Maduro, estabelecida apesar da coexistência de cenários deste tipo, vai ser, doravante, o combustível das acções de guerra contra a Venezuela.

Eis que se fala da Rússia

Não é novidade que a campanha contra a Venezuela tem um contexto mais abrangente. Os Estados Unidos confirmam-no ao colectivizarem os objectivos, de modo a englobarem também Cuba, a Nicarágua, a Bolívia, Estados que não prescindem da sua soberania e seguem caminhos próprios de desenvolvimento.

Não se trata apenas, porém, de abater regimes insubmissos. A estratégia global dos Estados Unidos e aliados implica o reforço de mecanismos de dominação de âmbito militar regional que desencorajem a formação de governos independentes e com pouca vocação para acatar as ordens emanadas do Norte. A intensa actividade do Comando Sul (SouthCom) do Pentágono, a reactivação da Quarta Esquadra norte-americana, os exercícios militares gigantescos e provocatórios são sinais permanentes a fazer lembrar que a guerra está em marcha.

Além disso, o Reino Unido prepara-se para juntar à ocupação militar das Malvinas argentinas a criação, a breve prazo, de uma base aeronaval na região das Caraíbas. Provavelmente na Guiana, admitindo-se que a ebulição política em que este país mergulhou, em 21 de Dezembro, não seja desenquadrada desse objectivo de Londres – e que o Canadá tenha ajudado.

No contexto geral, porém, também é certo que os países que apostam na soberania política e económica, como a Venezuela, têm diversificado as suas relações com nações e regiões de outros continentes. Pelo que os interesses dos Estados Unidos e aliados no «quintal das traseiras» de Washington não são os únicos no terreno. Outros foram sendo estabelecidos, oriundos de outras regiões.

As relações entre Caracas e Moscovo têm-se aprofundado, do mesmo modo que as da Venezuela com a China. Não sendo de ignorar também o volume de investimento que Pequim tenciona fazer num novo canal interoceânico, alternativo ao do Panamá, a abrir na Nicarágua.

Além disso, como é de conhecimento geral, a relação de forças mundial está em mudança significativa – a própria supremacia militar é hoje muito mais repartida.

Daí que esteja a ganhar forma a possibilidade de a Rússia vir a construir uma base aeronaval na ilha de Orchila, em território da Venezuela4, a mesma onde o presidente Hugo Chávez esteve encarcerado durante algumas horas, em 2002, enquanto decorria a tentativa de golpe de Estado coordenada pela administração de George W. Bush.

Uma base na qual Moscovo encara a possibilidade de estacionar bombardeiros estratégicos, o que traz à memória as angústias vividas pelo establishment de Washington por ocasião da chamada «crise dos mísseis» em Cuba, em 1962.

Pelo que, por muitas razões, e mais esta, uma guerra na América Latina iniciada com uma agressão dos Estados Unidos e colónias contra a Venezuela soberana pode não ser uma simples e vingativa degola de inocentes5

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