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|Cuba

«Não pode haver soberania política sem soberania tecnológica»

Rolando Pérez Rodríguez, antigo director e actual assessor científico da BioCubaFarma, empresa estatal cubana de biotecnologia e farmacêutica, falou com o AbrilAbril sobre como décadas de investimento da revolução em ensino, ciência e tecnologia permitiram que Cuba desenvolvesse várias vacinas para a Covid-19 e superasse, com organização e dedicação, inúmeras dificuldades durante a pandemia.

Rolando Pérez Rodríguez, antigo director e actual assessor científico da BioCubaFarma, empresa estatal cubana de biotecnologia e farmacêutica
Rolando Pérez Rodríguez, antigo director e actual assessor científico da BioCubaFarma, empresa estatal cubana de biotecnologia e farmacêuticaCréditos / AbrilAbril

Uma conversa sobre o papel do socialismo no desenvolvimento da ciência e tecnologia, a importância do conhecimento para a emancipação dos povos e a sua soberania, tentando sempre contornar o bloqueio norte-americano, que afecta toda a capacidade de desenvolvimento do país.

P.: O que é BioCubaFarma?

Há pouco mais de dez anos ocorreu a fusão dos centros da indústria biotecnológica cubana com a indústria farmacêutica. A BioCubaFarma é hoje um grupo que conta com 32 empresas e cerca de 20 mil trabalhadores. Temos 11 centros de Investigação e Desenvolvimento e 16 empresas e representações no exterior, porque somos uma organização com actuação global. A alta tecnologia exige um nível de investimento que um mercado como Cuba, tão pequeno, não consegue recuperar. Então, se quiser ter alta tecnologia, um país pequeno tem de ter projecção global, tem que sair para o mercado global. Além de desenvolver produtos inovadores é preciso também cooperar, pois nem toda tecnologia pode ser feita dentro de portas. É por isso que temos associações e empresas mistas, apesar do bloqueio.

P: Estas representações no estrangeiro, apesar do bloqueio, são empresas parceiras?

A maioria são empresas mistas (joint ventures) que efectivamente fazem acordos de licenciamento e desenvolvimento. Na investigação clínica é necessário um determinado número de pacientes, mas porque Cuba é um país pequeno às vezes não temos pacientes suficientes para um ensaio clínico num prazo razoável. Por isso é bom fazer parcerias. Este tipo de associação, como vocês dizem, «corre riscos»: são produtos que estão ainda em investigação. Mas, depois, se o resultado for o adequado, os benefícios serão repartidos, e o mercado será partilhado, ou seja, é um co-desenvolvimento. Assim, já temos, sobretudo nos países desenvolvidos, acordos deste tipo na Europa e, incrivelmente, temos uma empresa mista nos Estados Unidos, a única na história, até agora. Temos uma série de produtos contra o cancro que são realmente inovadores e promissores. O Departamento do Tesouro dos EUA deu-nos uma licença especial para que pudéssemos trabalhar em conjunto. Essa licença, que foi mantida mesmo com a administração Trump, foi criada durante [a administração] Obama e é uma excepção completa ao bloqueio.

«Ao longo da história, a ciência foi consequência do desenvolvimento económico. Ou seja, os países que acumularam mais riqueza tinham pessoas que podiam ou tinham condições de investir. […] Os países que ficaram para trás nunca poderiam ter ciência e inovação e, por isso, continuaram a ficar ainda mais para trás. Isto tem outra consequência: não pode haver soberania política sem soberania tecnológica. Não se é livre quando se depende da tecnologia de outros, e a Covid-19 demonstrou-nos isso»

P.: A aposta de Cuba na ciência, inclusive na formação de quadros, é algo que vem desde o início da revolução. Como foi essa mudança?

Houve uma mudança de paradigma. Ao longo da história, a ciência foi consequência do desenvolvimento económico. Ou seja, os países que acumularam mais riqueza tinham pessoas que podiam ou tinham condições de investir. A pessoa fazia ciência que, por sua vez, desenvolvia mais os seus países. O que acontece é que o mundo teve um desenvolvimento desigual e estamos a entrar na chamada era do conhecimento, na economia do conhecimento, onde activos intangíveis, como a propriedade intelectual, se tornaram muito importantes em qualquer negócio ou investimento, seja qual for o risco. Devido ao desenvolvimento desigual entre os países, essa brecha está a aumentar. Os países que ficaram para trás nunca poderiam ter ciência e inovação e, por isso, continuaram a ficar ainda mais para trás. Isto tem outra consequência: não pode haver soberania política sem soberania tecnológica. Não se é livre quando se depende da tecnologia de outros, e a Covid-19 demonstrou-nos isso. Numa emergência, de saúde ou outra, quem não tem um nível de resiliência, de uma certa soberania tecnológica, fica à mercê de outros. Fidel Castro foi muito claro sobre isso quando disse que o futuro de Cuba deveria ser o futuro de homens de ciência e de pensamento. Apostámos e investimos no talento e no desenvolvimento da inteligência do nosso povo. Isso foi consistente, houve a campanha de alfabetização, um grande investimento na educação e depois nos centros de investigação. Quando a revolução começou em Cuba existiam poucas universidades e hoje existem universidades em todas as províncias do país.

R.: Até porque com a revolução muitas pessoas que tinham cursos superiores também deixaram o país.

Efectivamente, como os médicos. Mas foi feita uma enorme reforma universitária que incluiu, primeiro, a universalização do ensino. As nossas universidades também incorporaram a investigação, ou seja, é uma universidade científica não é só uma universidade de ensino. E hoje também incorpora a inovação, portanto, é uma universidade docente, científica, mas também inovadora, que fornece soluções tecnológicas e faz parcerias com a indústria e empresas, estabelece uma relação academia-empresa. Fidel viu isso claramente e as universidades cresceram e transformaram-se, incorporando a actividade científica. Nos anos 90, quando o campo socialista europeu ruiu, de um dia para o outro, 80% da nossa actividade comercial desapareceu. Nessa altura, Fidel pensou, de facto, não só em toda aquela aposta que tinha sido feita. Disse: não há dúvida que Cuba não tem grandes recursos naturais, não temos grandes reservas de petróleo, nem de lítio, ou recursos hidráulicos. Cuba tem de viver da inteligência do seu povo e, portanto, temos de continuar a desenvolver o capital humano, temos que continuar a desenvolver a exportação de serviços científicos e tecnológicos. Não se trata, evidentemente, de exportação de matérias-primas, que é o que fazem os países mais pobres, ou mesmo de produtos, mas de tecnologia e de serviços.

«Apostámos e investimos no talento e no desenvolvimento da inteligência do nosso povo. Isso foi consistente, houve a campanha de alfabetização, um grande investimento na educação e depois nos centros de investigação. Quando a revolução começou em Cuba existiam poucas universidades e hoje existem universidades em todas as províncias do país»

P: Porquê?

Porque o nosso capital fundamental é o capital humano, o capital intelectual. Fidel disse que esse era o futuro de Cuba, era a sua visão. Assim saímos do Período Especial, porque precisamente a forma de sair daqueles anos 90 foi reconvertendo a economia com base no investimento que o país tinha feito na educação e na ciência. Penso que, neste mundo moderno, mesmo nos países ricos, um factor limitante do desenvolvimento são os novos conhecimentos. Há décadas, a ciência avançava, gerava conhecimento e depois aplicava-o e transformava-o em tecnologia. Mas com o rápido avanço da revolução industrial, esse conhecimento esgotou-se e por isso, hoje, a solução está nos novos conhecimentos, para que existam realmente novas tecnologias. Isso significa que quem tiver capacidade de gerar ciência e conhecimento é quem terá o poder económico. Então a força motriz da ciência, que historicamente foi a preocupação do cientista, a curiosidade...

P.: …o perguntar porquê.

Essa é a curiosidade. A pergunta que é feita – isso continuará a existir. Mas há mais do que a pergunta: há uma procura real de conhecimento, caso contrário o progresso humano pára. Exemplo claro: o cancro. Hoje, para resolver o problema do cancro não basta aplicar os conhecimentos que já temos da ciência biológica.

P: Essa é a sua especialidade, o cancro.

Sim, trabalho com o cancro. Não basta aplicar o conhecimento existente para gerar produtos ou tecnologia. Com isso melhoramos, sim. Mas a solução definitiva para o problema do cancro passa pela geração de novos conhecimentos. Isso é ciência. O que quero dizer é que o desenvolvimento nos exige, nos reclama. Antes, o modelo era linear: a ciência gerava conhecimento que era traduzido em tecnologia, a tecnologia num produto com impacto económico e social, que era introduzido no mercado. Hoje tornou-se um modelo circular de ciência e inovação. Para resolver um determinado problema da humanidade são necessários novos conhecimentos e essa demanda torna-se na força motriz da ciência muito para além da curiosidade científica. Há hoje uma intencionalidade na ciência que exige progresso, exige desenvolvimento. Ciência o que é? É o processo de geração de novos conhecimentos. O que é a economia? O processo de criação e distribuição de riqueza. O que é inovação? A tradução de novos conhecimentos em geração de riqueza.


P: Qual é então o papel do socialismo neste processo?

Essa é a pergunta. No capitalismo, esta força motriz é estreitamente governada pelo mercado de um ponto de vista puramente do lucro, da utilidade para um empresário. Nós também temos um mercado, mas o nosso mercado é, pelo menos em Cuba, orientado pelas necessidades da população. Por exemplo, na saúde, onde trabalho: quais são as nossas prioridades, no desenvolvimento e na investigação, os principais problemas de saúde do país? Não é só porque vou comercializar um produto que me dá mais dinheiro, mas porque vou ter um produto que resolve um problema de saúde, que reduz a mortalidade, que aumenta a sobrevivência dos pacientes. Existe uma maneira de orientar a prioridade da ciência e da tecnologia para um impacto. Temos de ter sustentabilidade financeira em qualquer sistema, claro, porque senão isso não aconteceria – queremos ser justos, equitativos, distribuir, mas se não se tem nada para distribuir, o que se pode distribuir é nada.

P: É necessário produzir.

Precisamente. Penso que no socialismo as prioridades estão aí. Além disso, a saúde como conceito é uma falha de mercado. Os problemas de saúde não podem ser resolvidos apenas como um problema de mercado, de oferta e de procura. É por isso que o socialismo é superior. O socialismo tem outra coisa importante, pelo menos a meu ver, que é o conceito de planeamento estratégico. Não é que se planeie agora que uma empresa só pode fazer isso ou aquilo, mas existe, como governo, como sistema, uma visão, objectivos estratégicos, onde e como chegar lá. Por exemplo, em Cuba temos o programa Plano de Desenvolvimento 2030, com indicadores. Queremos mudar a matriz energética e ter mais energia renovável. Queremos reduzir a mortalidade em 10%. Ou seja, estabelecem-se metas e depois os recursos são colocados em função delas. Acredito que o socialismo é precisamente uma vantagem para a governação de qualquer sistema de ciência e inovação.

Rolando Pérez Rodríguez: A BioCubaFarma é hoje um grupo que conta com 32 empresas e cerca de 20 mil trabalhadores. Temos 11 centros de Investigação e Desenvolvimento e 16 empresas e representações no exterior, porque somos uma organização com actuação global Créditos / AbrilAbril

P.: É necessário esclarecer, para o ocidente capitalista, que o desenvolvimento das vacinas contra a Covid-19 em Cuba não foi, por isso, algo que nasceu com a pandemia, mas sim o resultado de todas estas políticas, desta visão. Vamos falar um pouco sobre como surgiram as vacinas.

Havia a clareza de Fidel: para um país pobre, bloqueado e isolado como Cuba, o investimento em ciência e inovação foi grande. Dir-me-ia: por que não investiram mais em ter uma maior variedade de calçado ou de cosméticos, e investiram em ciência e tecnologia? Acredito que isto nos deu soberania tecnológica e a soberania tecnológica também nos deu soberania política. Significa que a revolução investiu no capital humano. A revolução investiu cedo na biotecnologia, na indústria farmacêutica, e é precisamente esse investimento que nos permitiu, no momento em que houve aquela emergência sanitária, já ter capacidades científicas, tecnológicas, industriais e humanas. E esse é o factor, na verdade, a vontade das pessoas, o compromisso, a motivação, porque, vejamos... [silêncio. Emociona-se]

P: Foi um período muito difícil.

Isto emociona-me um pouco... Porque no fundo, repare, se não tivéssemos feito o investimento pretérito que fizemos em biotecnologia, em educação, em formação humana de qualidade, isto não teria sido possível. Não é um milagre, nem é uma coincidência. Acredito que isso efectivamente faz parte de um sistema socialista, porque fazer a vacina em tão pouco tempo foi um trabalho altamente integrado em muitas instituições, não foi uma única empresa, houve uma coordenação.

P.: Nem foi um cientista génio.

Nem o génio, nem o que pediu dinheiro e que, se não ganhasse tanto, não o faria. Ou seja: ética, valores, princípios, organização. Disse aos meus colegas que uma conquista fundamental que permitiu superar a Covid foi a nossa organização social, isto é, a forma como a sociedade cubana está organizada, que com tão poucos recursos, o conseguiu. Li e ouvi dizer sobre os milhares de milhões de dólares que circulavam no mundo, não gostaria de dar um número, em dólares, sobre o que Cuba investiu, mas digo-lhe que foram dezenas, não centenas de milhões. E houve quem com mil milhões não o conseguisse. Porquê? Porque o dinheiro foi colocado nas coisas essenciais, naquilo em que tinha de ser colocado. Mais, o trabalho foi coordenado entre as nossas empresas, com as universidades que cooperaram com os centros científicos, todos juntos. O socialismo permite isso, porque existe essa organização social. Mas não foi só isso: vamos supor que já tínhamos a vacina. O problema da vacina não é ter o medicamento, é a campanha de vacinação.

P: Essa foi ainda outra organização.

Precisamente. Como é que Cuba conseguiu vacinar quase toda a população em seis meses? Além disso, para crianças com mais de dois anos, fomos o primeiro país do mundo a vacinar a população pediátrica. Isto teve um impacto enorme no controlo da doença, porque as crianças, regra geral, tinham uma evolução melhor, ou seja, eram assintomáticas. Mas havia o avô. O avô era infectado e morria. Então também cortámos a transmissão, não só de doenças graves, mas também, diria, da morbilidade, porque ao proteger a população pediátrica eliminou-se muita transmissão do vírus. Agora até parece que foi um acto heróico do sistema de saúde: foram montados centros de vacinação a nível comunitário, nas escolas, nas creches, foram criadas todas as condições, com médicos, enfermeiros e famílias.

«Os problemas de saúde não podem ser resolvidos apenas como um problema de mercado, de oferta e de procura. É por isso que o socialismo é superior. O socialismo tem outra coisa importante, pelo menos a meu ver, que é o conceito de planeamento estratégico. […] Ou seja, estabelecem-se metas e depois os recursos são colocados em função delas. Acredito que o socialismo é precisamente uma vantagem para a governação de qualquer sistema de ciência e inovação»

P: Mas também havia muita informação científica.

Houve uma grande compreensão das pessoas e isso foi importante. Os Estados Unidos tomaram a vacina primeiro, alguns meses antes, e vacinaram apenas 50% da população porque lá existe um movimento anti-vacinas, num país que se supõe ser mais desenvolvido, com pseudociência, obscurantismo, ignorância. Como é possível um país assim? No socialismo isso não existe. Creio que o outro grande sucesso das vacinas não veio só do laboratório, dos cientistas. Nós, cientistas, tínhamos dois chapéus: um chapéu científico e um chapéu de comunicador social. Fomos à televisão, fui muitas vezes, outros colegas também, para explicar às pessoas o que estávamos a fazer, com que resultados, como estávamos a progredir. A ciência tinha uma cara, um rosto. Não andávamos às escondidas com a vacina. Não. A vacina é esta, nós estamos a fazer isto, estes são os nossos resultados, e, bom, houve uma participação massiva da população na vacinação.

P: As pessoas queriam ser vacinadas.

O povo queria. As crianças queriam. A ciência entrou nos lares cubanos, nas suas casas. Mas entrou, diria, e de alguma forma, num momento tão difícil para o país, elevou o orgulho nacional.

P: Houve, no entanto, inúmeras limitações.

Foi muito difícil, houve limitações enormes. Sofremos muito por isso, porque poderíamos tê-lo feito em menos tempo. Mas graças aos donativos de agulhas e seringas, conseguimos. Portugal foi um país que nos apoiou. Porque, imagine, às vezes a gente tinha o produto, mas não tinha seringa. Foi terrível. Às vezes, não tínhamos o recipiente. Ou não tínhamos certos produtos que eram necessários e tínhamos de procurar soluções através de amigos, através de empresas que compravam em seu nome o que precisávamos, e depois mandavam para Cuba. Foi assim, fazendo algumas trampas [artifícios, armadilhas] por causa do bloqueio.

P: Muitas pessoas pensam que o bloqueio é uma espécie de fantasma. É muito importante ver como ele afecta coisas específicas do seu quotidiano. Por exemplo, chega ao laboratório e não há o que precisa, e nem consegue comprar?

Às vezes, vamos comprar e temos o dinheiro. Aí surgem problemas de transporte – conseguimos através de barcos ou aviões, mas depois não chegam. Por vezes, tínhamos dinheiro e não podíamos pagar porque havia bancos que se recusavam a fazer as transacções financeiras. Porque o bloqueio também é financeiro, é um bloqueio comercial, económico e financeiro. E também foi intensificado [por Trump] durante a pandemia. Sabe o que mais me incomoda? Por que razão no meio de uma emergência deste tipo não houve uma trégua connosco? Quando houve guerras no mundo, problemas dessa natureza...

Rolando Pérez Rodríguez: Temos uma carteira com cerca de 400 projectos de pesquisa e desenvolvimento que se dividem em produtos biotecnológicos e biofarmacêuticos [...] em que 75% são projectos em que temos patentes próprias e elevada capacidade inovadora Créditos / AbrilAbril

P: Uma espécie de cessar-fogo?

Uma bandeira branca. Meus senhores, vamos chegar a um acordo? E depois continuamos a luta. Mas primeiro vamos resolver este problema. Não! Usaram a pandemia como mais um elemento para nos fazer claudicar. E não conseguiram. O bloqueio é muito, muito real. Aqui, em Portugal, muitas empresas não fazem transacções connosco porque temem retaliações, porque para essa empresa o mercado americano pode ser importante. É um problema de negócios. Não creio que seja um sentimento contra Cuba. E o bloqueio é realmente muito violento. Outra consequência negativa do bloqueio: por exemplo, materiais de embalagem que eram para outros medicamentos. Como havia a prioridade da vacina, isso teve um custo: faltavam para os outros medicamentos. Tivemos de apertar muito o cinto porque havia uma prioridade, e cumprimo-la, mas isso teve um custo e danos. E dos milhares de milhões que existiam no mundo, nem um quilo do que foi a campanha mundial das vacinas chegou a Cuba. Nada chegou. Disseram-nos, vamos mobilizar, vamos ver como Cuba coopera com outros países. Concordamos. Mas tem de haver uma compensação mínima, porque Cuba está a deixar de produzir outros medicamentos de que necessita para poder fazer esta vacina. As capacidades industriais que tínhamos e eram utilizadas para outros produtos estavam agora todas concentradas na vacina. Deixámos de produzir outras vacinas e outros produtos.


P: Como foi a cooperação?

Disseram-nos: por que não nos juntamos? Se alguém fizer um investimento, ajudamos países que podem sempre compensar com um preço muito justo, que nos permitiria sustentar o investimento – senão, como o faríamos? A ideia era, por exemplo, transferir tecnologia. E foram feitos acordos com alguns países até para transferência de tecnologia, porque a ideia era ajudar, mas não somos mágicos. Se não temos recursos ou não temos como produzir... repito: conseguimos vacinar toda a população num curto espaço de tempo e depois produzir as doses de reforço. E trabalhámos com países em que as agências reguladoras aprovaram o nosso produto e a operação comercial ou mesmo transferência de tecnologia podia ser realizada. Sempre nos criticaram porque não houve certificação da Organização Mundial de Saúde. Mas não fomos rejeitados, estamos ainda neste processo, lentamente, porque temos uma agência reguladora própria e a nossa prioridade é a população cubana. Produzimos em Cuba onze vacinas diferentes para o Programa de Vacinação Infantil, produzimos para o Programa Nacional de Vacinação, e isso tem de ser para as nossas crianças, não pode ser só para a Covid.

P.: Apesar do investimento em capital humano feito pela revolução, uma das crises que Cuba atravessa hoje é também a fuga de cérebros e especialmente de cientistas altamente qualificados. Isso também é consequência do bloqueio.

De facto. Mas, repare, sempre tivemos essa ameaça e não é só Cuba, acho que todos os países latino-americanos.

P: Portugal também.

Exactamente, é um problema dos países periféricos. Os outros, claro, oferecem mais. Penso que evidentemente este é um problema que existe e com este agravamento do bloqueio e a situação geral de crise global se acentua. Temos um problema demográfico, não só de fuga de cérebros, em geral, há um êxodo que estamos a tentar resolver porque obviamente o país exige um equilíbrio do ponto de vista demográfico. Cuba flexibilizou a sua política de imigração e não podemos recuar em relação a isso. É uma realidade que temos de enfrentar. Temos de continuar a trabalhar com a emigração cubana. Os emigrantes hoje não são nossos inimigos, como eram no início da revolução, são seres humanos que procuram um projecto de vida onde possam cumprir uma determinada expectativa, que não conseguem alcançar no país, porque o país está a passar por uma situação muito difícil. É compreensível e, de alguma forma, em algum momento, essas pessoas poderão ajudar-nos novamente, de onde quer que estejam ou voltando para Cuba, se houver condições. Mas, olhe, eu tive a experiência de trabalhar noutros países, de fazer formação no exterior, e esse fenómeno de instabilidade laboral, não só de emigrar para outro país, mas países onde os cientistas, mesmo os jovens, não têm um cargo permanente e só têm uma bolsa atrás de outra bolsa...

P.: Essa é a realidade da ciência em Portugal, instabilidade e precariedade.

Imagine-se essa instabilidade! Em Cuba, estamos habituados ao facto de um trabalhador ser sempre nosso, isto é, começa connosco, desenvolve a sua carreira, e reforma-se. Felizmente continuamos a formar muita gente, temos uma ampla rede e matrículas universitárias. Não creio que a emigração nos impeça de continuar a desenvolver a ciência no nosso país.


P.: Por fim, que outros projectos estão a ser desenvolvidos pela BioCubaFarma, em colaboração com o exterior, ou em protótipo, num futuro próximo.

Temos uma carteira com cerca de 400 projectos de pesquisa e desenvolvimento que se dividem em produtos biotecnológicos e biofarmacêuticos. E também medicamentos genéricos, porque precisamos de substituir importações. Também desenvolvemos equipamentos médicos, produtos de origem natural, e temos um portfólio em biotecnologia agrícola, para a produção de alimentos. Agora, os produtos mais inovadores estão concentrados nos biofarmacêuticos, em que 75% são projectos em que temos patentes próprias e elevada capacidade inovadora. Existem vários, mas a principal novidade são alguns produtos inovadores no cancro e doenças neurodegenerativas. Temos produtos que já estão em fase de ensaio clínico para a doença de Alzheimer, com resultados positivos. Estamos a negociar com algumas empresas no estrangeiro. Também temos produtos muito avançados no seu desenvolvimento para imunoterapia contra o cancro. Temos um acordo com o Roswell Park Cancer Centre, em Buffalo, Nova Iorque, uma empresa mista, com quem estamos a desenvolver um ensaio clínico de uma vacina terapêutica contra o cancro do pulmão, com resultados bastante promissores.

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