A inteligência e a «falha»
No momento em que o Hamas lançou a operação «Dilúvio sobre al Aqsa», no passado dia 7 de Outubro, expondo uma «falha de inteligência de Israel» que os peritos de inteligência consideram pouco provável, ou mesmo impossível, o governo de Ramallah revelou-se absolutamente ineficaz para encabeçar a resistência palestiniana na Cisjordânia num momento de tantas incertezas, perigos e, certamente, traições. Um governo inerte, corrupto, desligado das realidades e do povo, além de acomodado.
Ao longo de mais de 15 anos, a Autoridade Palestiniana pouco fez perante o avanço da colonização, um processo gradual de anexação de território até que chegue o momento – eventualmente já atingido – em que não existirão condições para instaurar um Estado Palestiniano independente e viável.
Em contraste, através do impacto emocional, e até místico dos seus métodos, junto da resistência palestiniana em geral, e dos mundos árabe e islâmico, o Hamas procura estender a base de apoio entre as populações árabes da Palestina e da diáspora. O Hamas, porém, não tem grande apreço pela criação de um Estado independente e por negociações: afirma que defende o fim de Israel; e as forças nacionais que apostaram no «processo de paz», e claramente num Estado independente ao lado de Israel, estão neutralizadas. O que reflecte o carácter sombrio e intrigante das relações dos islamitas com Israel.
Uma das características das agressões israelitas contra Gaza, que alternam com períodos de acalmia aproveitados pelo aparelho sionista para reforçar os mecanismos de controlo sobre Ramallah, é o seu reduzido e controlável impacto sobre o aparelho militar e as estruturas de apoio do Hamas. A sensação que prevalece é a de que os danos não impedem o seu contínuo desenvolvimento.
Passaram as operações arrasadoras de 2008, 2014 e chega-se a 2023 com um Hamas forte como nunca em equipamento militar, em termos quantitativos e qualitativos, e capacidade operacional.
Em todos os períodos de agressão israelita mais intensa contra Gaza as principais vítimas foram as populações e não as estruturas do Hamas. Milhares e milhares de palestinianos de Gaza, na verdade refugiados das limpezas étnicas praticadas em outras regiões da Palestina ao longo de 75 anos, ficaram pelo caminho durante essas agressões. Agora, numa proporção directa da envergadura da operação desencadeada pelo Hamas, entrou na ordem do dia, do lado de Israel, a «transferência» da população de Gaza, começando pela «limpeza» do norte do território.
«Em todos os períodos de agressão israelita mais intensa contra Gaza as principais vítimas foram as populações e não as estruturas do Hamas.»
A punição colectiva é evidente e intencional. Como explica o presidente israelita, Isaac Herzog, «uma nação inteira é responsável» pela violência, isto é, não há inocentes na população de Gaza. Amir ou Amina, nascidos há poucos dias, já chegaram a este mundo como «terroristas». Ou «animais humanos», citando o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, extremoso defensor dos «nossos valores».
Por outro lado, as acções de violência contra civis, não distinguindo entre os cidadãos comuns e os militares, praticadas pelas hostes do Hamas, não servem nem poderiam servir a causa palestiniana. Não é por replicar os métodos do ocupante que os ocupados conseguem ganhar vantagem e projectar a sua razão. O massacre no kibutz de Kfar Aza, por exemplo, é um acto indigno de uma resistência popular e também faz jorrar a propaganda assente nas lágrimas de crocodilo de todos os fariseus que, na verdade, não querem saber das pessoas nem das populações sob ocupação.
Nesta matéria, porém, há que partir do princípio de que nem tudo o que parece é. O Estado de Israel funciona como um dos mais credenciados centros de propaganda, embora nem sempre tenha em conta certa o estado real de estupidificação da opinião pública ocidental. A história dos 40 bebés decapitados pelo Hamas só convenceu alguns «jornalistas» mais zelosos, que rapidamente tiveram de voltar com a palavra atrás depois de até o governo israelita confessar que não confirmava o crime. Foi um caso de falta de imaginação ou facilitismo: muita gente ainda se lembra do descrédito em que caiu a história dos bebés do Koweit roubados de incubadoras pelos soldados iraquianos de Saddam Hussein, no início dos anos noventa.
Além disso, a inspiração na «matança dos inocentes», ordenada pelo rei Herodes, pretende explorar sub-repticiamente um mero episódio bíblico fora de prazo, ocorrido há exactamente 2023 anos.
Num quadro factualmente objectivo, porém, o Hamas partiu para a operação militar parecendo não ter em conta (ou se o teve é porque está deliberadamente a usar o seu povo como carne para canhão) a enorme desproporção de forças militares e militarizadas no terreno. Deste modo, descontadas as primeiras vantagens decorrentes do «factor surpresa», as acções islamitas acabaram por dar oportunidades de ouro aos sectores dominantes israelitas que defendem a violência arrasadora capaz de proporcionar uma alteração qualitativa da situação no terreno e, eventualmente, matar de vez as possibilidades de criar o Estado Palestiniano inscrito há 75 anos no direito internacional.
Perante as condições proporcionadas, Israel não hesita em provocar uma vaga de terror e desespero na martirizada população de Gaza, capaz de a fazer aceitar qualquer solução que não seja a morte, destino a que parece cada vez mais condenada; além disso, para tornarem mais credível a ideia de que não hesitarão numa solução final, os militares sionistas dedicam-se à matança de palestinianos em massa numa amplitude poucas vezes ou mesmo nunca conhecida em sete décadas e meia.
A limpeza étnica surge mais uma vez, aos olhos dos condenados, como um mal menor que já está em andamento. Como revela o ex-ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Danny Ayalon, o plano é «forçar os palestinianos a entrar no espaço quase infinito do Sinai», onde podem «viver em cidades de tendas». Enquanto os políticos ocidentais, tomados pela histeria, se embrulham em bandeiras sionistas, felizes e emocionados com o genocídio.
«Num quadro factualmente objectivo, porém, o Hamas partiu para a operação militar parecendo não ter em conta (ou se o teve é porque está deliberadamente a usar o seu povo como carne para canhão) a enorme desproporção de forças militares e militarizadas no terreno.»
A ideia do «esvaziamento» da Faixa de Gaza não é um objectivo novo do sionismo. Há muito tempo que se fala do projecto de «transferir» a população do território para a Península e deserto do Sinai, uma região aliás já anteriormente ocupada por Israel e devolvida ao Egipto na sequência dos acordos de Camp David. O mar de Gaza tem petróleo e gás natural; as costas mediterrânicas de Gaza prometem resorts paradisíacos para as oligarquias judaicas e afins.
Na verdade, é difícil acreditar que o mais monstruoso aparelho mundial de espionagem e informações, exportando até gadgets inovadores para regimes autoritários assumidos ou maquilhados de «democratas», estivesse distraído perante os laboriosos preparativos de invasão por parte do Hamas.
Como é que organizações de espionagem como as sionistas, que certamente dispõem de milhares de informadores numa população tão densa e caótica como a de Gaza, não tinham sequer uma luzinha sobre o que o Hamas estava a preparar e que não pode ter nascido de uma noite para o dia? E que dizer dos avisos que o Egipto – e parecem não ter sido os únicos – fez chegar a Israel prevenindo de que alguma coisa estava para acontecer a partir de Gaza. Distracção? Incompetência? Sonolência? Seria difícil acreditar em tantas falhas de segurança em cadeia mesmo que se tratasse de uma estrutura de amadores, quanto mais dos serviços de espionagem e informações que são habitualmente apresentados como os mais aptos do mundo.
Efrat Fenigsen, ex-oficial de inteligência das tropas israelitas, escreveu em 7 de Outubro: «Servi na inteligência das FDI (Forças de Defesa de Israel) durante 25 anos. Não há possibilidade de Israel não saber o que estava para acontecer. Até um gato movendo-se na cerca accionaria todas as forças, quanto mais isto…». Fenigsen acrescenta: «esta cadeia de acontecimentos é muito incomum e não é típica do sistema israelita de defesa.»
A coisa dá que pensar. A oportunidade para a operação foi oferecida de bandeja ao Hamas: nem faltou a provocação de uma multidão de colonos contra a mesquita de Al Aqsa, em Jerusalém, uma «linha vermelha» para qualquer instituição muçulmana.
«Servi na inteligência das FDI (Forças de Defesa de Israel) durante 25 anos. Não há possibilidade de Israel não saber o que estava para acontecer. Até um gato movendo-se na cerca accionaria todas as forças, quanto mais isto…».
Efrat Fenigsen, ex-oficial de inteligência das tropas israelitas
Mas existe ainda uma pergunta por fazer: confirmando-se a impossibilidade de Israel desconhecer previamente o ataque do Hamas, o governo e as forças armadas do país aceitaram sacrificar mais de um milhar de compatriotas a um objectivo que consideram mais importante do que as suas vidas?
Não adivinhamos, não conhecemos, nunca conheceremos os meandros desta conjugação de acontecimentos. Nem se a criatura escapou ao criador. Sabemos, isso sim, que está uma alteração qualitativa em andamento no processo israelo-palestiniano, que põe objectivamente em causa a instauração de um Estado Palestiniano independente e viável. É a primeira transformação de fundo, e em sentido contrário, súbita e não gradual, desde as medidas autonómicas incompletas decorrentes do «processo de paz». Está em curso uma nova etapa da Nakba (a catástrofe), a limpeza étnica dos palestinianos da Palestina iniciada em 1948; e com a cumplicidade do «mundo civilizado», aceitando placidamente o diktat sionista.